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Proc. nº 1089/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. R... interpôs recurso para o Tribunal Administrativo do Círculo do Porto da deliberação do Conselho de Administração da Caixa Geral de Aposentações que negou provimento ao recurso hierárquico por si interposto do despacho da Direcção da Caixa Geral de Aposentações, no qual se considerou extinta a pensão de aposentação que lhe havia sido fixada em 1967.
Os dados da questão eram os seguintes:
–R... aposentou-se em 1967 do cargo de Secretário de Finanças de 2ª classe da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, com base no tempo de serviço prestado nos períodos de 17 de Junho de 1944 a 2 de Janeiro de 1945 e de 5 de Janeiro de 1945 a 30 de Dezembro de 1966;
– a partir de Fevereiro de 1970, prestou serviço no então designado Instituto de Obras Sociais, que hoje se chama Centro Regional de Segurança Social. Foi-lhe reconhecido o direito à aposentação por limite de idade (70 anos), por despacho de 3 de Fevereiro de 1992, e foi-lhe abonada uma segunda pensão, a partir de 1 de Junho de 1993;
– entre 1 de Junho de 1993 e 30 de Dezembro de 1993, R... recebeu duas pensões;
– em Dezembro de 1993, a Caixa Geral de Aposentações considerando ter existido
'erro dos serviços', extinguiu a primeira pensão, por aplicação do artigo 80º, nº 2, do Estatuto da Aposentação, tendo passado a abonar-lhe uma pensão cujo cômputo assenta unicamente na contagem do tempo de serviço prestado no Centro Regional de Segurança Social. Foi este o despacho que constituiu objecto do recurso para o Tribunal Administrativo do Círculo do Porto. O recorrente invocou desde logo a inconstitucionalidade do artigo 80º do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro (Estatuto da Aposentação), por desconformidade com o artigo 63º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa: o despacho da Caixa Geral de Aposentações que considerou extinta a pensão que auferia desde 1967, com base no disposto no artigo 80º do Estatuto da Aposentação, mantendo-lhe apenas a segunda, que passou a auferir desde 1993, é, em sua opinião, ilegal e viola o princípio constitucional de que todo o tempo de trabalho deve ser computado para efeitos de aposentação.
2. O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, analisando o teor do artigo 80º do Estatuto da Aposentação, considerou estar o mesmo em evidente oposição com o artigo 63º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. Decorrendo da norma constitucional, após a revisão de 1989, o princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho para efeitos de pensões de velhice e invalidez, e tendo o direito à segurança social o regime dos direitos, liberdades e garantias, não pode a lei restringir aquilo que a Constituição expressamente consagra. Nas palavras daquele tribunal,
'No caso concreto a ideia de aproveitamento de todo o tempo é o núcleo essencial do direito consagrado no nº 5 do artº 63º da CRP. Portanto, em meu entender, o legislador ordinário não pode ao regular «os termos da contagem» do tempo de trabalho efectuado pôr em causa essa trave mestra: todo (e não parte) o tempo de trabalho entrará no cômputo da pensão.
«O acto recorrido ao aplicar o artº 80º do E. A. e não atender assim ao tempo de trabalho prestado nos períodos de 17-06-44 a 02-01-45 e 05-01-45 a 30-12-66
(cfr. alíneas A) e C) da matéria de facto), é ilegal porquanto aplicou como fundamento jurídico uma norma inconstitucional.'
Decidiu, assim, conceder provimento ao recurso, anulando a deliberação recorrida.
3. O Ministério Público, perante a recusa de aplicação, por parte do tribunal, de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, interpôs recurso obrigatório da sentença para o Tribunal Constitucional,
'em virtude de nela se ter recusado a aplicação do artº 80º, nº 1, do Estatuto da Aposentação – D.L. nº 498/72, de 9 de Dezembro – com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do artº 63º, nº 5, da C.R.P.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional concluiu as suas alegações afirmando que a norma do nº 1 do artigo 80º do Estatuto da Aposentação, não admitindo a acumulação de pensões de aposentação concedidas sucessivamente, foi inconstitucionalizada pelo nº 5 do artigo 63º da Constituição da República Portuguesa. Daí decorria, na sua perspectiva, que ao recurso devesse ser negado provimento.
4. No acórdão nº 1016/96 (fls. 75 destes autos), o Tribunal Constitucional decidiu não conhecer da questão, por considerar que não se encontrava preenchido o pressuposto processual exigido pela alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a recusa de aplicação, na decisão recorrida, da norma cuja inconstitucionalidade era invocada. Entendeu então o Tribunal Constitucional que a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa se fundou na recusa de aplicação do nº 2 do artigo 80º do Estatuto da Aposentação, e não do nº 1 do mesmo artigo, como vinha indicado no requerimento de interposição de recurso.
5. Em face da rejeição do recurso pelo Tribunal Constitucional, os autos prosseguiram os seus termos, tendo a Caixa Geral de Aposentações interposto recurso da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto para o Supremo Tribunal Administrativo.
Nas alegações produzidas junto do Supremo Tribunal Administrativo, a Caixa Geral de Aposentações sustentou a não desconformidade constitucional das normas do artigo 80º do Estatuto da Aposentação. Este dispositivo legal implica, na sua óptica, que a concessão de uma segunda pensão extinga ope legis o direito a auferir a primeira. O Supremo Tribunal Administrativo confirmou a decisão recorrida, pronunciando-se no sentido da desconformidade constitucional entre o artigo 80º, nº 2, do Estatuto da Aposentação e o artigo 63º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, nos seguintes termos:
'Assim, a norma do nº 2 do art. 80º do Estatuto da Aposentação (Dec-Lei nº
498/72, de 9/12), ao não permitir a contagem do tempo de serviço anterior à primeira aposentação para efeitos de cálculo da segunda pensão, nos casos em que se opte por esta, foi inconstitucionalizada pelo nº 5 do art. 63º da Constituição, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/89. A norma em causa padece, deste modo, de inconstitucionalidade superveniente, devendo considerar-se caducada a partir da entrada em vigor daquela Lei Constitucional.'
6. Inconformada com esta decisão, veio a Caixa Geral de Aposentações dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pedindo a fiscalização da constitucionalidade da norma
'do nº 2 do artigo 80º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº
498/72, de 9 de Dezembro, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo artigo 8º da Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro, na interpretação que dela foi feita no douto acórdão do STA que antecede, que recusou a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade'.
Nas alegações produzidas, a Caixa Geral de Aposentações apresentou as seguintes conclusões:
'1º– A norma cuja declaração de legalidade se requer não é inconstitucional por não ferir o disposto no nº 5 do artigo 63º da Constituição.
2º– Os seus âmbitos materiais de aplicação são perfeitamente compatibilizáveis, resultando o preceito legal de imperativos constitucionais em matéria de estabilidade de emprego, de acumulação de cargos públicos e de segurança social.
3º– A aplicação do regime que resultava, até à revogação pela Lei nº 30-C/92, da norma sindicada permitia aos interessados a contagem de todo o tempo de serviço nos termos em que o STA interpretou o princípio constitucional em causa, estando esse facto dependente da sua disponibilidade para manterem uma carreira contributiva sem fracturas artificialmente provocadas.
4º– Os princípios gerais em matéria de segurança social – a que não é estranho o conceito de risco –, pela densificação que permitem fazer do princípio constitucional ínsito no nº 5 do artigo 63º da Constituição, levam a interpretá-lo no sentido de apenas exigir que todo o trabalho, como tal definido na lei, releve para efeitos previdenciais.
5º– Ora, se cabe à lei definir o que se deve entender como tempo de trabalho, como claramente decorre dos trabalhos preparatórios da Lei nº 1/89, por maioria de razão lhe há-de assistir o direito de definir situações em que o tempo de trabalho prestado deva ser especialmente considerado.
6º– Todo o tempo de trabalho do ora recorrido relevou, nos termos da Constituição e da lei, para efeitos previdenciais.
7º– O entendimento da recorrente é o único que permite salvar o actual – velho de décadas – edifício previdencial, assente, entre outros pilares, no da impossibilidade legal de contar mais de 36 anos de serviço para aposentação.'
O recorrido, R..., pronunciou-se uma vez mais no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 80º, nº 2, do Estatuto da Aposentação. II
7. A norma objecto do presente recurso de constitucionalidade é o nº 2 do artigo 80º do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro. Dispunha o mencionado artigo 80º, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo artigo 8º da Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro:
'Artigo 80º
(Nova aposentação)
1. Se o aposentado, quer pelas províncias ultramarinas, quer pela Caixa, tiver direito de inscrição nesta última pelo novo cargo que lhe seja permitido exercer, poderá optar pela aposentação correspondente a esse cargo e ao tempo de serviço que nele prestar, salvo nos casos em que lei especial permita a acumulação das pensões.
2. Não será de considerar para cômputo da nova pensão o tempo de serviço anterior à primeira aposentação.'
A decisão recorrida recusou a aplicação desta norma por desconformidade com o princípio consagrado no artigo 63º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (na versão actual), de aproveitamento total, para efeitos de aposentação, do tempo de serviço prestado pelo requerente da aposentação. A recorrente, por seu turno, afirma que não há qualquer incompatibilidade entre a norma do nº 2 do artigo 80º e a Constituição, uma vez que a Lei Fundamental remete para 'os termos da lei' a fixação do tempo de serviço susceptível de contar para efeitos de aposentação e essa lei seria, precisamente, o artigo 80º do Estatuto da Aposentação.
8. A história da inserção, aquando da revisão constitucional de 1989, do nº 5 no artigo 63º da Constituição da República Portuguesa foi sucintamente relatada pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, no anterior recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público (do qual resultou o acórdão nº 1016/96, a que já se fez referência).
A aprovação da referida norma constitucional foi fruto de uma proposta do Partido Socialista, no âmbito da revisão constitucional de 1989, a qual gerou grande controvérsia. Justificando a alteração proposta, afirmou um deputado socialista que 'a ponte que hoje falta entre os vários sectores de actividade deve ser lançada no sentido de todo o tempo de trabalho contribuir – nos termos da lei – para o cômputo das pensões de aposentação ou reforma. Não vemos razão para que um tipo de trabalho seja, neste domínio, sobrevalorizado em relação a outro' (Diário da Assembleia da República, II Série, número 23-RC, de
7 de Julho de 1988, pág. 654). Um outro deputado do grupo parlamentar socialista pronunciou-se no sentido de
'dever ser evidente que uma norma deste tipo não implica homogeneidades lesivas, por exemplo, dos trabalhadores da função pública que têm regime próprio. Esta norma é uma norma de máximo aproveitamento – aquilo a que se poderia chamar em bom rigor uma norma de economia de tempos, mas não uma norma que impulsione ou vincule a homogeneidade de regimes, designadamente homogeneidade lesiva da situação específica dos trabalhadores da função pública'. Afirmou-se ainda na discussão parlamentar que a Constituição passaria a admitir, após a alteração, uma intercomunicabilidade de regimes de aposentação (entre a função pública e o sector privado). 'A questão é que [a intercomunicabilidade] faz-se em termos que permitem manter a identidade de dois regimes; os regimes são diferentes, pode-se transitar de um regime para o outro, há aproveitamento integral do tempo de serviço prestado e, digamos, dos tempos não só de trabalho como dos tempos equivalentes que tenham sido vividos num regime e noutro. Não há perda de tempo, por assim dizer, é essa a preocupação fundamental. Daqui não deve emanar nenhuma preocupação de homogeneidade de regimes, isto é, de unificação, por esta razão, de regimes. Mas é preciso deixar isso claro' (Diário da Assembleia da República, II Série, nº 81-RC, de 9 de Março de 1989, pág.
2388). A alteração constitucional de 1989 pretendeu, assim, promover um aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, independentemente do sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e desde que tenha efectuado os descontos legalmente previstos.
É ainda hoje essa a intenção, que se encontra claramente manifestada no nº 4 do artigo 63º da Constituição (versão de 1997):
'Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado.'
10. Quando o texto constitucional remete para 'os termos da lei', fá-lo para efeitos de concretização do direito, não a título de cláusula habilitativa de restrições. A utilização da expressão 'todo o tempo de trabalho...' , em conjugação com o segmento 'independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado' impõe, nesta matéria, a obrigação, para o legislador ordinário, de prever a contagem integral do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, sem restrições que afectem o núcleo essencial do direito. Como o direito à contagem do tempo de serviço para efeitos de aposentação tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, aplica-se-lhe o regime destes – constante do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa –, por força da extensão operada pelo artigo 17º da Constituição. A admitir-se a solução propugnada pela recorrente, a norma constitucional ficaria esvaziada no seu sentido e o direito à contagem de todo o tempo de serviço seria afectado no seu núcleo essencial. Tal consequência está vedada pelo nº 3 do artigo 18º da Lei Fundamental. Se a lei fraccionar o tempo de trabalho para efeitos de aposentação – assim eliminando uma parte do tempo de trabalho prestado –, já não será todo o tempo de trabalho a contribuir para o cálculo das pensões, mas apenas uma parte dele. Tal solução implicaria interpretar a Constituição de acordo com a lei e não interpretar a lei de acordo com a Constituição, como se impõe.
11. O argumento da Caixa Geral de Aposentações, de que o pensionista R..., ao requerer uma segunda pensão de aposentação, pretendeu abdicar da primeira – pois a segunda era de maior valor – não colhe. Ele assenta no pressuposto de que o tempo de serviço pode ser fraccionado para efeitos de cálculo de pensão, o que afronta o princípio constitucional do total aproveitamento.
É certo que a lei não indica um mecanismo técnico que permita fazer um cálculo conjunto dos vários tempos prestados pelo beneficiário ao serviço de diferentes entidades, em diferentes períodos ao longo da sua vida. Tratando-se porém de um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e ainda que a norma constitucional necessite, para a sua actuação prática, de uma mediação legislativa – nomeadamente, para definir o que se deve entender por 'tempo de trabalho' –, sempre a Administração está directamente vinculada a retirar do texto constitucional a maior utilidade (cfr. o artigo 18º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa).
No âmbito das normas atributivas de direitos fundamentais, o intérprete/aplicador deve optar por uma interpretação conforme à Constituição, ou antes, por uma interpretação conforme aos direitos fundamentais. Daí que, mesmo não existindo uma fórmula técnica que permitisse fazer o cômputo global dos tempos de serviço do requerente, a Caixa Geral de Aposentações devesse ter realizado um cálculo em conformidade com as exigências constitucionais. Dito por outras palavras, a segunda pensão deveria ter sido calculada em função da soma dos tempos de serviço, e não em função apenas de um dos períodos de trabalho – no caso, o período posterior à primeira aposentação.
12. Sublinhe-se por fim que as disposições dos nºs 3 e 4 do artigo 80º do Estatuto da Aposentação, aditadas pela Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento para 1993), demonstram que, no caso de o aposentado optar por manter a primeira aposentação (diferentemente da hipótese prevista nos nºs 1 e 2, que se refere ao caso em que o aposentado opta pela segunda pensão), é considerado para o cálculo da pensão 'todo o tempo de serviço prestado'. Dispõem os números 3 e 4 do artigo 80º, aditados pela mencionada Lei:
'3. Nos casos em que o aposentado opte por manter a primeira aposentação, haverá lugar à divisão da pensão respectiva, a qual só pode ser requerida depois da cessação de funções a título definitivo e é devida a partir do dia 1 do mês anterior ao da apresentação do pedido.
4. O montante da pensão a que se refere o número anterior é igual à pensão auferida à data do requerimento multiplicada pelo factor resultante da divisão de todo o tempo de serviço prestado, até ao limite máximo de 36 anos, pelo tempo de serviço contado no cálculo da pensão inicial.'
Este é mais um argumento que confirma não existir justificação para a norma que exclui do cômputo da segunda pensão o tempo de serviço anterior à primeira aposentação.
13. Conclui-se deste modo que a norma do artigo 80º, nº 2, do Estatuto da Aposentação contraria o princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, consagrado no artigo 63º, nº
4, da Constituição.
III
14. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional o nº 2 do artigo 80º do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, por violação do artigo 63º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa; b. Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida