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Proc. nº 686/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A... e outros interpuseram recurso contencioso do acto de registo da oferta pública de aquisição, realizado em 21 de Setembro de 1993, no uso de poderes delegados pelo Conselho Directivo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, pelo vogal Dr. AV...
A oferta pública em causa dizia respeito à aquisição pela Sonae – Turismo, S.A., de acções da Orbitur – Intercâmbio de Turismo, S.A..
Os recorrentes, accionistas da Orbitur – Intercâmbio de Turismo, S.A., pediram a declaração de nulidade do acto recorrido com fundamento em falta de fundamentação, nos termos do artigo 133º, nº 1, do Código de Procedimento Administrativo.
O Juiz da 1ª Secção do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por sentença de 16 de Novembro de 1994, julgou os recorrentes partes ilegítimas, com fundamento em que o acto recorrido, ainda que sofresse do vício invocado de falta de fundamentação, seria meramente anulável e da sua anulação não adviria qualquer efeito para a esfera jurídica dos recorrentes, uma vez que mesmo essa eventualidade não determinaria a invalidade das operações de transmissão de títulos efectuadas.
2. A... interpôs recurso desta decisão. Nas suas alegações invocou a inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, com o sentido que lhe foi atribuído na sentença recorrida, por contrariar os artigos 268º, nº 5, 20º, nº 1, e 18º, nº 1, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 13 de Maio de 1997, limitou o objecto do recurso jurisdicional à apreciação da legitimidade activa do recorrente e considerou que as restantes questões suscitadas pelo recorrente, respeitando a aspectos de fundo, só no momento da decisão de fundo podem ser conhecidas.
Partindo do princípio de que a legitimidade activa se caracteriza, em geral, pelo 'interesse pessoal, directo e legítimo dos recorrentes' e que
'tal interesse existe quando da procedência da pretensão resulte uma vantagem imediata para a esfera jurídica dos recorrentes', o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que, no caso, da eventual anulação do acto de registo da oferta pública de aquisição de acções não derivaria para o recorrente qualquer vantagem imediata, 'porque as operações de compra e venda dos títulos representativos do capital da Orbitur efectuados à sombra da OPA não deixariam de produzir os efeitos centrais da transmissão da respectiva propriedade se o registo fosse anulado, como deriva do artigo 534º do CMVM que vincula o oferente a lançar oferta em virtude da deliberação do Conselho de Administração [da sociedade] e da sua publicitação pelo anúncio preliminar'.
Analisando os efeitos do registo, aquele Tribunal considerou que 'o registo da oferta não confere a faculdade de a realizar', que 'as irregularidades do registo, ou mesmo a sua falta, não determinam a invalidade da oferta, nem das transmissões de acções que no seu âmbito se processem' e que, por tudo isso, 'o direito a eventuais indemnizações dos portadores de títulos abrangidos pela OPA, por virtude de deficiências do anúncio e da nota informativa [...] não deriva do registo, nem da sua anulação, mas de deficiências, incidentes sobre matéria de informações insuficientes ou inexactas, acções ou omissões de que a lei faz derivar responsabilidade civil, na medida em que sejam causadoras de prejuízos [sendo] portanto um direito a indemnização por informações, que vincula a empresa que as emite, e não o órgão que aceita a efectivação do registo da OPA, isto é, o direito àquela indemnização pode ser desencadeado independentemente de recurso contra o acto de registo e da respectiva anulação ou declaração de nulidade, pelo que fica demonstrado que não será deste recurso, nem da respectiva procedência, que o recorrente pode retirar aquele efeito ressarcitório, directa ou reflexamente'.
Pronunciando-se quanto à questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, o Supremo Tribunal Administrativo afirmou:
'Não colhe ainda a argumentação do recorrente de que a interpretação do art. 46º citado viola o disposto em preceitos constitucionais, como o art. 268º, nº 5, porque a garantia de acesso à justiça administrativa não significa garantia de uma decisão de fundo, bem podendo, por falta de pressupostos processuais, esse acesso dar lugar apenas a uma decisão que recuse outra mais aprofundada. Assim como não existe restrição do direito de acesso à justiça ou de garantias consagradas constitucionalmente, na disposição do art. 46º RSTA, na interpretação adoptada, e no cotejo com os artigos 18º e 20º da CRP, visto que a garantia de acesso aos tribunais se refere à defesa dos direitos e interesses legítimos (art. 20º), não tendo esta característica o exercício de direitos por aqueles a quem não dizem respeito, que não podem, por isso mesmo, ser os respectivos titulares legítimos'.
Com estes fundamentos, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
3. É deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade por A..., com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma do 'nº 1 do art. 46º do Regulamento do STA, aplicada ex vi do art. 24º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, na revelação e aplicação que dela foi feita nos autos', que o recorrente considera contrária aos artigos 2º, 18º, nº 1, 20º, nº 1, 205º, nº 2, e 268º, nº 5, da Lei Fundamental [versão de 1989].
3.1. O recorrente concluiu assim as suas alegações:
'1. Nos termos do disposto no art. 4º, als c) e f), e no art. 5º, als a) e e) do Código do MVM, e nas normas supra invocadas que, em seu desenvolvimento, especificamente, regulam a instrução, apreciação e decisão de pedidos de registo de operações públicas de aquisição de acções, os destinatários da oferta gozam de um direito legalmente protegido e são interessados quer para intervirem no respectivo procedimento administrativo (art. 53º-1 do CPA) quer para ulteriormente interporem recurso contencioso da decisão final nele produzidas, ao abrigo do disposto no art. 268º-4 da CRP, directamente aplicável, como é o caso do recorrente; pelo que,
2. O recorrente tem legitimidade para o respectivo processo jurisdicional;
3. A norma aplicada, dada como extraída do nº 1 do art. 46º do Regulamento do STA, ex vi al. b) do art. 24º da LPTA, viola os princípios e normas constitucionais consignados nos arts. 2º , 17º, 18º-1-2, 20º-1, 205º-2 e 268º-4 e 5 da Lei Fundamental;
4. A norma do referido Regulamento tem de ser entendida em conformidade com os princípios e normas constitucionalmente consagrados, supra invocados;
5. De outro modo, a respectiva disposição legal tem de haver-se como revogada pelo art. 290º-2 da CRP; pelo que,
6. Com a devida vénia, se requer seja a decisão recorrida revogada, ordenando-se que os autos sigam os seus legais e normais termos, para que se cumpra, a final, a garantia constitucional de acesso à justiça administrativa, de que o recorrente não pode ser excluído.'
3.2. Em contra-alegações, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários suscitou uma questão prévia quanto ao conhecimento do recurso, por considerar que o recorrente não reporta o vício de inconstitucionalidade à norma objecto de impugnação – o artigo 46º do RSTA – mas à própria decisão recorrida, matéria que se encontraria subtraída ao controlo de constitucionalidade. Quanto à norma objecto do recurso, e para o caso de não ser acolhido aquele entendimento, concluiu:
'30ª. Face ao quadro normativo descrito forçoso é concluir que mesmo quando cotejada com o complexo normativo do Código do Mercado de Valores Mobiliário pertinente para o caso, a norma do artigo 46º do RSTA não se mostra desconforme nem com o disposto nos artigo 20º, nº 1 e 268º, nº 4, nem com o disposto no artigo 18º, todos da nossa Lei Fundamental. Não é, pois, censurável do ponto de vista jurídico-constitucional que o legislador exija um interesse directo, pessoal e legítimo no recurso de anulação de um acto administrativo porquanto essa exigência é conatural ao fim mesmo do direito de acesso aos tribunais e à garantia da justiça administrativa (tutela de direitos e interesses legalmente protegidos), nem se mostra desconforme à Constituição que a satisfação do fim desse direito não possa ser alcançada por um meio processual que, no caso, se mostra improfícuo para a salvaguarda das posições jurídicas subjectivas dos particulares. Neste contexto, irrelevante se torna chamar à colação sequer como parâmetro aferidor da norma impugnada os artigos 205º, nº 2 e 290º, nº 2, ambos da Constituição.
31ª. Do mesmo modo não resultam violados nem o artigo 2º, nem o artigo 268º, nº
5 da Constituição. Com efeito, não pode ter-se por violado o princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, nem o princípio do acesso à justiça administrativa porquanto, conforme já atrás se explanou, o ordenamento jurídico aplicável ao caso não deixa de acolher instrumentos normativos que consagram o acesso à justiça para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos accionistas de uma sociedade sobre a qual é lançada uma OPA. Ponto é que esses instrumentos sejam adequadamente utilizados, contra as decisões que efectivamente comportem a possibilidade de afectar tais direitos e interesses dos accionistas e não através de mecanismos processuais
(como o da impugnação contenciosa do acto de registo) que não produz quaisquer efeitos nas esferas jurídicas daqueles accionistas.'
3.3. A recorrida Sonae – Turismo, S.A., alegou:
'Os direitos e garantias constitucionais que o recorrente considera terem sido violados pela decisão recorrida não podem ser entendidos em termos amplos e genéricos, de tal modo que devam tutelar interesses meramente abstractos. A lei constitucional tutela interesses concretos e pessoais. E, porque assim, no respeitante ao acesso à Justiça, é sempre exigível a verificação de todos os pressupostos processuais. Não é quem quer que pode recorrer aos Tribunais para obter uma sentença, mas sim quem tem um interesse legítimo em obtê-la. Esse interesse há-de ser pessoal e directo. Como no acórdão recorrido se sustenta, o recorrente não logrou mostrar que possui um tal interesse, pois não demonstra, nem se divisa, nenhum efeito útil que pudesse retirar da nulidade ou da anulação do acto de registo da OPA. De resto, tal acto foi praticado para cumprimento de uma obrigação legal, sujeita a responsabilidade contra-ordenacional, pelo que, como se diz na decisão recorrida, é uma condição de regularidade e não de validade. A decisão recorrida, portanto, não violou as normas constitucionais que são apontadas pelo recorrente, pois fez delas uma correcta aplicação. Ao presente recurso deve, portanto, ser negado provimento, com as legais consequências.'
3.4. Ouvido sobre a questão prévia suscitada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, o recorrente pronunciou-se no sentido de que a mesma não deveria ser atendida por este Tribunal.
II
4. Suscitou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários a questão prévia do não conhecimento do recurso, por considerar que o recorrente não reporta o vício de inconstitucionalidade a uma norma mas à própria decisão recorrida.
Verifica-se porém que, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, o recorrente invocou a questão da inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, com o sentido que lhe foi atribuído na sentença então recorrida, que considerou contrária aos artigos 268º, nº 5, 20º, nº1, e 18º, nº 1, da Constituição. Também no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, e nas alegações aqui apresentadas, o recorrente reporta o vício de inconstitucionalidade directamente à norma que impugna e não a um acto jurisdicional.
Deve assim considerar-se suscitada pelo recorrente, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo – ou dessa norma na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido –, estando portanto preenchido o requisito estabelecido na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual foi interposto o presente recurso.
É deste modo desatendida a questão prévia colocada pela recorrida Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
5. O presente recurso tem por objecto a norma do nº 1 do artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, aprovado pelo Decreto nº 41.234, de 20 de Agosto de 1957.
Incluído na 'subsecção I – Da legitimidade para recorrer', da
'secção II – Dos recursos interpostos directamente para o Supremo Tribunal Administrativo', o artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo dispõe o seguinte:
'Artigo 46º
(Legitimidade activa) Os recursos [os recursos interpostos directamente para o Supremo Tribunal Administrativo] podem ser interpostos:
1º Pelos que tiverem interesse directo, pessoal e legítimo na anulação de acto administrativo susceptível de recurso directo para a secção;
2º Pelo Ministério Público.'
A norma do nº 1 do artigo 46º foi interpretada pelo acórdão recorrido (e, já antes, pela sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa) no sentido de que só tem legitimidade para recorrer quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação do acto (no caso, o acto de registo de oferta pública de aquisição de acções da Orbitur – Intercâmbio de Turismo, S.A.).
Na perspectiva do recorrente, a norma é inconstitucional por contrariar os artigos 2º, 18º, nº 1, 20º, nº 1, 205º, nº 2 [actualmente, 202º, nº 2], e 268º, nº 5 [actualmente, 268º, nº 4], da Constituição da República Portuguesa.
6. A discussão do problema que constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade exige em primeiro lugar, e fundamentalmente, o confronto entre os pressupostos do conceito de legitimidade processual no âmbito do contencioso administrativo, que decorram de uma análise do artigo 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (versão de 1997) – na perspectiva de uma análise das condições de acesso à justiça administrativa –, e a norma do artigo
46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, a fim de verificar se tal norma é restritiva do conceito constitucional de interesse processual no âmbito contencioso- -administrativo e se limita o direito à tutela jurisdicional efectiva.
6.1. A caracterização do interesse processual feita na norma citada assenta nas três qualidades que esse interesse deve revestir, como vínculo que se estabelece entre a parte e o objecto do recurso [o recurso interposto directamente para o Supremo Tribunal Administrativo]: ser directo, ser pessoal e ser legítimo. A tripartição utilizada, já tradicional no nosso contencioso administrativo e na jurisprudência administrativa, foi objecto da atenção de Marcello Caetano
(Manual de Direito Administrativo, II, 10ª edição, 4ª reimpressão, Coimbra,
1991, p. 1356 s). Segundo este autor, o interesse é directo 'quando o provimento do recurso implique a anulação ou declaração de nulidade de acto jurídico que constitua obstáculo à satisfação de pretensão anteriormente formulada pelo recorrente (quer essa pretensão seja positiva, quer negativa) ou seja causa imediata de prejuízos infringidos pela Administração'; é pessoal 'quando o recorrente alegue esperar uma utilidade concreta para si próprio ou para a sua função, do provimento do recurso, isto é, seja pessoa em cuja carreira, em cuja esfera jurídica ou actividade se vá produzir o efeito da declaração pretendida'; enfim, é legítimo 'se a utilidade proveniente do provimento do recurso não for reprovada pela ordem jurídica'. Com estas três qualidades, Marcello Caetano, defensor de uma teoria objectivista da natureza do recurso de anulação, pretendia restringir o acesso aos tribunais administrativos apenas àqueles que fossem destinatários directos do acto recorrido (que detivessem a titularidade do interesse prejudicado pela emissão do acto) e que pudessem retirar alguma vantagem da anulação ou da declaração de nulidade. A exigência da legitimidade do interesse relacionava-se com a sua não reprovabilidade pela ordem jurídica.
6.2. Esta era a concepção vigente no momento em que foi aprovada a Constituição da República Portuguesa de 1976. A Lei Fundamental não pretendeu estabelecer qualquer conceito de legitimidade especial para o contencioso administrativo. No seu nº 2, o artigo 269º da Constituição tinha por objectivo garantir o acesso à justiça administrativa, nomeadamente para exercício do direito ao recurso de anulação:
'2. É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios.'
6.3. A alteração constitucional de 1982 alargou, por um lado, o leque de actos recorríveis através da introdução do segmento 'independentemente da sua forma' (cfr. o artigo 268º, nº 3, da Constituição). Com esta expressão, teve-se em vista impedir que razões formais impedissem o acesso à tutela jurisdicional contenciosa- -administrativa, nomeadamente evitar situações em que, através da utilização de formas legislativas, o Governo emite decisões individuais – actos administrativos encapotados –, a fim de se furtar ao controlo da sua legalidade pelos tribunais administrativos. Por outro lado, a Constituição lançaria as bases para a consagração legislativa de um novo meio processual: a acção para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos. Esta acção viria a ser introduzida em 1985, pelo artigo 69º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho. No que diz respeito ao problema da legitimidade no contencioso administrativo, a neutralidade do texto constitucional não se alterou com a revisão de 1982. Disso deu conta o Tribunal Constitucional no acórdão nº 258/88 (Diário da República, II, nº 35, de 11 de Fevereiro de 1989, p. 1541 s; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., p. 725 ss). Afirmou então o Tribunal:
'[...] Ora, a este propósito, das duas uma: ou se entende, com o acórdão recorrido, que o nº 3 do artigo 268º da Constituição se limita a garantir aos interessados o recurso contencioso, «deixando à lei ordinária a definição dos requisitos da legitimidade», ou se aceita que é a própria Constituição a
«contemplar apenas os recursos desencadeados pelos titulares de interesse pessoal no provimento do recurso», como escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º Vol., 1985, nota IX ao artigo 268º. Parecendo preferível a primeira alternativa, tem de reconhecer-se que, ao exigir que o interesse seja pessoal, directo e legítimo, está o artigo 46º, nº 1, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo a delimitar o conceito de
«interessado» e não a restringir esse mesmo conceito. Não deve chocar, por isso mesmo, a aparente diferença de regimes que se pretende ver nos casos previstos no nº 3 do citado artigo 268º e nº 1 do mesmo artigo: neste, ou seja, no direito dos cidadãos a serem informados do andamento dos processos em que são interessados, é a própria Constituição a exigir o interesse directo; no outro, isto é, no direito ao recurso contencioso, permite a Constituição que tal exigência, ou outra, seja feita pelo legislador ordinário.'
6.4. A revisão constitucional de 1989, porém, modificou significativamente a redacção do nº 3 – que passou a nº 4 – do artigo 268º, suprimindo o segmento
'definitivos e executórios' na referência aos actos administrativos impugnáveis. A alteração, que tem sido muito discutida na doutrina e na jurisprudência, foi objecto da atenção do Tribunal Constitucional no acórdão nº 9/95 (Diário da República, II, nº 69, de 22 de Março de 1995, p. 3160 ss; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 333 ss). Uma vez que no caso sub judice o pressuposto processual que se analisa é a legitimidade das partes e não a impugnabilidade do acto, não interessa agora aqui discutir de forma directa o sentido de tal alteração. No entanto, não se podem ignorar os efeitos reflexos que ela acarreta. O Tribunal Constitucional concluiu no citado acórdão nº 9/95:
'O sentido da garantia constitucional de recurso contencioso contra actos administrativos ilegais é, portanto, esta: ali onde haja um acto da Administração que defina a situação jurídica de terceiros, causando-lhe lesão efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, existe o direito de impugná-lo contenciosamente, com fundamento em ilegalidade. Tal direito de impugnação contenciosa já não existe, se o acto da Administração não produz efeitos externos ou produz uma lesão de direitos ou interesses apenas potencial.'
E reiterou no acórdão nº 115/96 (Diário da República, II, nº 105, de 6 de Maio de 1996, p. 6002 ss):
'No domínio do contencioso de anulação [...] há-de no entanto excluir-se todo e qualquer acto que não esteja a concretizar lesões, todo o acto que no procedimento serve apenas actos de primeira grandeza.'
6.5. A orientação constitucional vai, assim, no sentido de que deve abrir-se a via contenciosa sempre que o recorrente sofra uma lesão actual na sua esfera jurídica, provocada pela emissão do acto administrativo. O particular pode não ser destinatário directo do acto – fenómeno muito comum nos dias de hoje, quando avultam os procedimentos de massa e os actos multilaterais –, mas, desde que sofra uma lesão actual, deve ter acesso à via jurisdicional, sob pena de se assistir a uma restrição ilegítima do seu direito à tutela jurisdicional, com assento no nº 4 do artigo 268º da Lei Fundamental, após a revisão constitucional de 1997. Como nota Vasco Pereira da Silva (Para um contencioso administrativo dos particulares, Coimbra, 1989, p. 127, 128),
'Uma concepção adequada da legitimidade, no contencioso administrativo de anulação, é aquela que procura assegurar a ligação entre a relação material substantiva e a relação processual, fazendo com que os participantes no recurso sejam os sujeitos efectivos da relação material e não uma concepção que pretenda substituir-se à consideração das situações jurídicas substantivas das partes e arvorar-se em critério exclusivo de determinação do acesso ao juiz. [...] «ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista, e terá legitimidade como réu, se for a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida». A função deste pressuposto processual é a de evitar que a decisão deixe de produzir o seu efeito jurídico útil, por «não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida» [...], razão pela qual têm legitimidade, «em regra, as partes na relação jurídica litigada» [...].'
Uma concepção constitucionalmente adequada de legitimidade – leia-se: uma concepção que articule a possibilidade do acesso ao direito com a utilidade desse acesso, isto é, com as efectivas necessidades de tutela jurisdicional – exigirá portanto a verificação do preenchimento do critério da lesão actual na esfera jurídica do recorrente provocada pelo acto administrativo objecto do recurso de anulação. Uma vez provada a lesão, terá que se viabilizar a sindicância jurisdicional da legalidade do acto, a fim de permitir ao recorrente o exercício do seu direito à tutela jurisdicional efectiva. E só haverá lesão actual, em termos constitucionalmente relevantes, se o recorrente puder retirar alguma utilidade do provimento do recurso, se da anulação do acto resultar o desaparecimento daquela lesão.
7. No presente processo, o recorrente invocou ainda a violação das normas dos artigos 2º, 18º, nº 1, 20º, nº 1 e 205º, nº 2 [na versão actual, artigo 202º, nº 2], da Constituição da República Portuguesa. As disposições constitucionais invocadas reforçam a ideia de que a tutela jurisdicional efectiva decorre do princípio do Estado de Direito Democrático; de que, sendo um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (e também uma garantia de todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados), a tutela jurisdicional efectiva goza de aplicabilidade directa a todas as entidades, públicas e privadas; de que é aos tribunais que cabe assegurar a efectivação desse direito. Assim sendo, a apreciação da conformidade da norma constante do artigo 46º do RSTA com estas normas constitucionais não tem autonomia relativamente à análise da conformidade da norma impugnada com o preceito do artigo 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. Por isso o Tribunal entendeu centrar a discussão, em primeira linha, no confronto entre a norma do artigo 46º do RSTA e o artigo 268º, nº 4, da Constituição (que correspondia, à data de interposição do recurso, ao nº 5 do mesmo artigo), sede do direito à tutela jurisdicional efectiva no domínio especificamente contencioso-administrativo.
Sublinha-se agora apenas que, não sendo o direito de acesso à justiça e aos tribunais um direito absoluto, não existe qualquer contradição entre a garantia constitucional de acesso à justiça e a delimitação pelo direito ordinário dos pressupostos ou requisitos de natureza processual de efectivação dessa garantia. Pode até considerar-se que existe um certo paralelismo entre a caracterização do recurso contencioso de anulação no texto constitucional, designadamente no artigo 268º, fazendo apelo à noção de 'tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos', e o critério determinante da legitimidade constante da norma do artigo 46º do RSTA, assentando no 'interesse directo, pessoal e legítimo' do recorrente na anulação do acto.
A Constituição garante o direito ao recurso contencioso, deixando à lei ordinária a definição dos requisitos ou pressupostos da legitimidade. O artigo 46º do RSTA procede à conformação desse direito ao recurso contencioso em termos tais que não configura qualquer restrição a um direito, liberdade ou garantia – ficando assim afastada a violação do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. A norma questionada no presente processo limita-se a concretizar os requisitos ou pressupostos de efectivação da garantia geral de 'acesso ao direito e aos tribunais', para 'defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos', consagrada na norma do artigo 20º da Constituição, bem como da garantia dos administrados à justiça administrativa, para 'tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos', a que se refere o artigo 268º, nº
4 (e nº 5), da Constituição.
Não existe por isso violação dos artigos 2º, 18º, nº 1, 20º, nº 1,
202º, nº 2, e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
8. A Constituição não garante o acesso indiscriminado a juízo – pois isso seria susceptível de constituir grave obstáculo para o objectivo da célere administração da justiça –, antes exige o preenchimento do pressuposto processual do interesse das partes (dos lesados), interesse que justificará o direito de impugnar judicialmente a validade de um determinado acto administrativo e de obter a sua anulação ou a declaração da sua nulidade.
A verificação, em cada caso, dos requisitos ou pressupostos de que depende a legitimidade do recorrente pode exigir a coordenação do artigo 46º do RSTA com outras normas de natureza substantiva que regulem a situação material controvertida – no caso dos autos, as normas do Código do Mercado de Valores Mobiliários que regem as condições e os efeitos do acto de registo da oferta pública de aquisição de acções. Ora, em primeiro lugar, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a questão subjacente ao presente recurso de constitucionalidade, nomeadamente verificar se da anulação do acto impugnado decorre alguma vantagem para o recorrente, se daí deriva alguma alteração na respectiva esfera jurídica, sendo certo que o recorrente não questionou a conformidade constitucional das normas do Código do Mercado de Valores Mobiliários aplicáveis à situação litigiosa.
Por outro lado, pode acontecer que a aplicação da norma do artigo
46º do RSTA a uma situação concreta conduza à conclusão de que o meio processual escolhido pelo recorrente não é, no caso, meio idóneo de salvaguarda da respectiva posição jurídica. Tal resultado não pode porém justificar a imputação do vício de inconstitucionalidade à norma questionada. Recordando a expressão utilizada pelo Supremo Tribunal Administrativo nestes autos:
'[...] a garantia de acesso à justiça administrativa não significa garantia de uma decisão de fundo, bem podendo, por falta de pressupostos processuais, esse acesso dar lugar apenas a uma decisão que recuse outra mais aprofundada.'
9. Conclui-se assim que o sentido atribuído na decisão recorrida à norma do nº 1 do artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, confirmando a ilegitimidade do recorrente, por considerar não poder ele retirar da anulação do acto de registo de uma oferta pública de aquisição de acções qualquer efeito útil que possa repercutir-se na sua esfera jurídica, não se afigura ilegítimo à luz dos artigos 268º, nº 4, 2º, 18º, nº 1, 20º, nº 1, e
202º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 46º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, aprovado pelo Decreto nº 41.234, de 20 de Agosto de 1957, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, por considerar não existir violação dos artigos 2º, 18º, nº 1, 20º, nº 1, 202º, nº 2, e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa; b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida