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Proc. nº 632/97
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório A O objecto do recurso
1. A... interpôs recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho, proferido em processo sumário de execução de sentença para pagamento de quantia certa contra o Estado, que indeferiu liminarmente o seu requerimento inicial. Nesse recurso, a ora recorrente sustentou que o artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na redacção anterior à dada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, seria inconstitucional por violação dos artigos 62º, nº 1, e 18º, nºs 1 e 2, da Constituição, quando interpretado no sentido de que estão isentos de penhora todos os bens pertencentes ao Estado, salvo em execução para entrega de coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real.
O Tribunal da Relação, decidindo no que respeita à questão de constitucionalidade, considerou que não há 'uma situação injustificada de privilégio do Estado, mas tão somente um meio diferente de obter a cobrança, diferença essa decorrente dos interesses em jogo, nomeadamente da afectação mediata ou imediata do património do Estado, aos fins públicos por aquele desenvolvidos'. O Tribunal da Relação concluiu ainda que não é incompatível com a consagração constitucional do direito à propriedade privada a interpretação do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, no sentido de que tal preceito abrange todos os bens do Estado, sendo a diferente protecção do direito de crédito relativamente ao Estado devedor 'justificável pelo interesse público que o Estado prossegue'.
2. Deste acórdão do Tribunal da Relação recorreu a A..., S.A., para o Tribunal Constitucional, concluindo do seguinte modo:
(i) O artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa estabelece que a todos é garantido o direito a propriedade privada;
(ii) A garantia constitucional do direito a propriedade privada implica e acarreta necessariamente consigo a garantia, constitucional também, do direito do credor à satisfação do seu crédito;
(iii) O credor tem pois o direito, para garantir o seu crédito, de, em processo executivo, proceder a penhora de bens dos seus devedores;
(iv) O artigo 18º, nºs l e 2, da Constituição da República Portuguesa, obrigam o Estado a reconhecer os direitos e garantias que a Constituição confere aos cidadãos, incluindo evidentemente também as sociedades e demais pessoas colectivas, face ao disposto no nº 2 do artigo 12º da referida Constituição;
(v) Por força do nº 2 do artigo 18º da Constituição da Republica Portuguesa a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias que a Constituição consigna, entre os quais se conta precisamente o direito à propriedade, cuja garantia implica o direito do credor à satisfação do seu crédito, nos casos em que a Constituição expressamente prevê e determina;
(vi) Não existe preceito na Constituição da República Portuguesa que dê suporte ao disposto no artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na interpretação de tal norma no sentido de que todos os bens do Estado estão isentos de penhora, salvo em execução por coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real;
(vii) Deve, assim, reconhecer-se que o acórdão recorrido, enquanto interpretou o artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na versão aplicável à hipótese dos autos, no sentido de que o mesmo isenta todos os bens pertencentes ao Estado, salvo em execução por coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real, de penhora, viola os preceitos dos artigos 62º, nº 1, e 18º, ambos da Constituição da República Portuguesa, pelo que tal preceito se encontra ferido de inconstitucionalidade na citada interpretação;
(viii) Deve, portanto, julgar-se inteiramente procedente e provado o presente recurso e, em consequência, ordenar-se que o Tribunal da Relação de Lisboa substitua o seu acórdão por outro de harmonia com o juízo de inconstitucionalidade referido na conclusão anterior, assim se fazendo JUSTIÇA.
3. O objecto do presente recurso é pois a questão da constitucionalidade do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de
12 de Dezembro, na interpretação segundo a qual tal preceito isenta de penhora todos os bens pertencentes ao Estado, salvo em execução para a entrega de coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real.
No entender da recorrente, tal interpretação normativa viola os artigos 62º, nº 1, e 18º, nºs 1 e 2, da Constituição, que consagram o direito à propriedade privada e o regime de direito, liberdades e garantias constitucionais.
B A utilidade do recurso
4. O Ministério Público, em representação do Estado português, veio suscitar, nas contra-alegações no Tribunal Constitucional, a questão prévia de falta de utilidade do recurso, decorrente de a ratio decidendi do acórdão proferido pela Relação não se ter esgotado no artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil (na redacção anterior aos Decretos nºs 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro), mas residir ainda no artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Junho, que 'implica a necessidade de o credor, antes de recorrer à via executiva, interpelar a Administração, com vista ao ressarcimento pelas dotações orçamentais do montante da condenação'. Deste modo, o Ministério Público considerou que um eventual juízo de inconstitucionalidade não contornaria a decisão recorrida.
A recorrente respondeu à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, propugnando a sua improcedência por considerar que o artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85 'é um preceito aplicável única e exclusivamente às decisões proferidas pelos Tribunais de Contencioso Administrativo' e que 'nos autos está em causa a questão de inconstitucionalidade da alínea a) do nº 1 do artigo 823º do Código de Processo Civil, hipótese a que não são aplicáveis as disposições constantes da denominada Lei de Processo dos Tribunais Administrativos'.
5. Está, pois, confrontado o Tribunal Constitucional com a questão prévia da utilidade do recurso, decorrente exactamente da controvérsia sobre a relevância do artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85 na fundamentação da decisão constante do acórdão recorrido, norma cuja inconstitucionalidade não foi suscitada. No caso de a questão prévia não vir a proceder, o Tribunal Constitucional terá que julgar a eventual contrariedade do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código do Processo Civil aos artigos 62º, nº 1, e 18º, nºs 1 e 2, da Constituição .
6. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
A A questão prévia do interesse no conhecimento do recurso
7. O dilema resultante da controvérsia acerca da utilidade do recurso é apenas o seguinte: fundamentou o Tribunal recorrido o não provimento do agravo no artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85 e não apenas no próprio artigo
823º, nº 1, alínea a), do Código do Processo Civil?
Não é, todavia, relevante para a decisão da questão prévia a invocada (pelo recorrente) não aplicabilidade de tal norma ao caso dos autos. Com efeito, se o acórdão recorrido fundamentou nessa norma a sua decisão, ainda que cumulativa ou alternativamente com o artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, então, não tendo o recorrente suscitado a inconstitucionalidade daquela norma durante o processo, estaria prejudicada a utilidade de um eventual julgamento de inconstitucionalidade do artigo 823º, nº
1, alínea a) do Código de Processo Civil. Um tal julgamento não poderia interferir na decisão de não provimento constante do acórdão recorrido, por ser inultrapassável a ausência da 'condição de procedibilidade' que o artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85 significaria (relativamente a fundamentações cumulativas, conjugadas ou alternativas, várias vezes se pronunciou o Tribunal Constitucional
- cf., entre outros, o Acórdão nº 1168/96, de 20 de Novembro de 1996, inédito).
Por outro lado, como não compete ao Tribunal Constitucional decidir sobre a aplicabilidade de normas num plano prévio ao da questão de constitucionalidade, a este Tribunal caberá apenas decidir se a norma do artigo
74º do Decreto-Lei nº 267/85 constitui ratio decidendi do acórdão recorrido – isto é, se foi efectivamente aplicado - e julgar nessa medida a utilidade da questão de constitucionalidade.
8. Ora, o acórdão do Tribunal da Relação, ao confirmar o despacho de indeferimento liminar da 1ª instância, não aplica, explícita ou implicitamente, o referido artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85. Apenas o cita para corroborar a sua interpretação do artigo 823º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil, isto é, para referir que também esse preceito legal acolheu o sentido correspondente à interpretação do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, segundo a qual estão isentos de penhora todos os bens do Estado.
Por outro lado, resulta do acórdão recorrido que o objecto de confirmação é o despacho de indeferimento liminar, na medida em que considerou inviável a penhora dos bens do Estado. Assim, o acórdão recorrido refere que 'No despacho liminar foi julgada a pretensão inviável face à impenhorabilidade dos bens do Estado e por isso se indeferiu liminarmente o requerimento inicial'.
9. Todavia, o acórdão recorrido quando resolve a própria questão de constitucionalidade considera que o meio para satisfazer a pretensão do credor é
'dirigir-se à entidade administrativa competente para fazer a inscrição no orçamento da verba em dívida e requerer que a inscreva. Se o pedido for tácita ou expressamente indeferido, o cidadão credor deve recorrer desse acto para o tribunal administrativo'.
Mas a 'aplicabilidade' do artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85 só é concebida como razão da não inconstitucionalidade da norma sub judicio e não como directo fundamento - ainda que alternativo - da decisão recorrida, nomeadamente por se referir a qualquer condição de procedibilidade do Processo Civil. Assim, também não é aceitável um raciocínio segundo o qual a averiguação da constitucionalidade do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código do Processo Civil, isto é, a própria averiguação da constitucionalidade da impenhorabilidade de todos os bens do Estado, esteja prejudicada pelo facto de existir um regime legal alternativo que permite a satisfação do credor do Estado. Com efeito, este
último facto é apresentado pelo acórdão recorrido como razão jurídica da não inconstitucionalidade e, consequentemente, terá de ser apreciado nesse plano lógico como razão (válida ou não) da não inconstitucionalidade.
10. Em conclusão, improcede o argumento de falta de utilidade do recurso, pois de modo algum se constata que o artigo 74º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Junho, tenha sido ratio decidendi do acórdão recorrido, nem mesmo por via de confirmação do despacho proferido em 1ª instância. Assim, não é por não ter sido seguido o processo previsto no referido artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85 que a pretensão de penhorar os bens do Estado não foi atendida. E a invocação do artigo 74º como razão de não inconstitucionalidade do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código do Processo Civil não permite autonomizar o primeiro preceito como verdadeira ratio decidendi.
B A questão da constitucionalidade do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil
11. Violará o artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil os artigos 62º, nº 1, e 18º, nºs 1 e 2, da Constituição? Não existirão razões que tornem aceitável um regime diferenciado para os bens do Estado-Administração Central?
A isenção de penhora dos bens do Estado-Administração Central, mesmo que não estejam directamente afectados à utilidade pública, não constitui necessariamente uma restrição desproporcionada do direito de propriedade na dimensão em que impõe a possibilidade de execução de dívidas. Indispensável será que o regime de isenção se articule com uma forma alternativa de ressarcimento do devedor através do património do Estado (o já referido artigo 74º do Decreto-Lei nº 267/85, conjugado com o artigo 12º do Decreto-Lei nº 256-A/77, de
17 de Junho) e seja justificado pela possibilidade concreta de afectação de bens do Estado ao interesse público a qualquer momento, como poderá acontecer, indiscutivelmente, com um automóvel pertencente aos serviços prisionais.
III Decisão
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar não inconstitucional a norma do artigo 823º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de
12 de Dezembro, e quando interpretada no sentido de que estão isentos de penhora todos os bens pertencentes ao Estado, salvo em execução para a entrega de coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real. Nega-se, consequentemente, provimento ao recurso. Lisboa, 22 de Junho de 1999- Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Alberto Tavares da Costa Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida