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Proc. nº 541/96
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em Julho de 1989, L... propôs, no Tribunal do Trabalho de Oliveira de Azeméis, contra a U..., Lda., acção emergente de contrato de trabalho, com processo ordinário, na qual, alegando ter sido ilicitamente despedido, pediu a condenação da ré: ao pagamento de uma indemnização por antiguidade; ao pagamento de todas as prestações vencidas e vincendas, desde a data do despedimento até à data da sentença; ao pagamento de uma indemnização por danos morais; e à reintegração do autor no seu posto de trabalho, se por tal ele vier a optar.
O Tribunal do Trabalho de Oliveira de Azeméis, por sentença de 3 de Maio de 1990 (fls. 99), julgou a acção parcialmente procedente, tendo condenado a ré a reintegrar o autor no seu posto de trabalho e a pagar-lhe determinada quantia correspondente a diferenças salariais.
Pronunciando-se sobre recurso interposto pela U..., o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 20 de Maio de 1991 (fls. 139), decidiu anular o julgamento, ordenando aditamentos ao questionário. A U... interpôs novo recurso, mas, encontrando-se o processo ainda no Tribunal da Relação do Porto, veio o autor apresentar requerimento em que pediu o arquivamento dos autos, com fundamento na amnistia das infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas de capitais públicos, estabelecida pelo artigo 1º, alínea ii), da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, por entender que, ao tempo da prática das infracções, a ré era uma empresa de capitais públicos. Em acórdão de 9 de Dezembro de 1991 (fls. 179), o Tribunal da Relação do Porto indeferiu a pretensão do requerente, tendo invocado como fundamento da decisão a natureza jurídica actual da U... – sociedade anónima de capitais totalmente privados – e ainda a inconstitucionalidade da norma do artigo 1º, alínea ii), da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
Deste acórdão interpôs recurso o Ministério Público, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Pelo acórdão nº 173/94, de 17 de Fevereiro de 1994 (fls. 247), o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 1º, alínea ii), da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, e ordenou a reforma do acórdão recorrido.
3. Na sequência da decisão do Tribunal Constitucional, o Tribunal da Relação do Porto proferiu o acórdão de 24 de Outubro de 1994 (fls. 253), em que concluiu:
'[...] por a R. U... se ter convertido de pessoa colectiva de direito público em pessoa colectiva de direito privado com a categoria de sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos mercê do D. L. 353/88, de 6 de Outubro, publicado ao abrigo da Lei 84/88, de 20 de Julho, e por os ilícitos disciplinares constantes da nota de culpa de fls. 27 e seguintes do processo disciplinar apenas serem situados no dia 11 de Janeiro de 1989 e posteriormente, por a mesma R. U... se ter convertido em sociedade anónima de capitais totalmente privados através do D. L. 170-A/90, de 26 de Maio, acorda-se em revogar o despacho recorrido de fls. 179 e seguintes, I Volume, devendo os autos prosseguir os seus termos, tendo em atenção a anulação do julgamento e a determinação imposta ao Sr. Juiz da 1ª instância, como tudo consta do acórdão de fls. 139 e seguintes, I volume.'
Tanto a U... como L... pediram a aclaração do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de Outubro de 1994. No acórdão que se pronunciou sobre os pedidos de aclaração (acórdão de 18 de Dezembro de 1995, fls. 276), o Tribunal da Relação do Porto sumariou as diversas fases do processo e decidiu:
'A fls. 161 dos autos, o recorrido-autor veio requerer o arquivamento dos autos, por entender que, sendo a recorrente uma empresa de capitais públicos ao tempo em que as alegadas infracções disciplinares foram cometidas, se teriam de haver por amnistiadas as ditas infracções, nos termos da alínea ii) do artº 1º, da Lei nº 23/91, de 4 de Julho. Por acórdão de fls. 179 e segs, decidiu-se que a referida Lei da amnistia só era aplicável às empresas públicas ou de capitais públicos, e que, sendo a recorrente, à data em que se teriam praticado as infracções, uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, não lhe podia ser aplicada aquela lei. Mais se decidiu que, mesmo que a recorrente pudesse ser considerada empresa de capitais públicos, a amnistia não lhe seria aplicável, em virtude de a já referida al. ii) do nº 1 se encontrar ferida de inconstitucionalidade, na medida em que, aplicando-se apenas às infracções cometidas pelos trabalhadores das empresas públicas e de capitais públicos, discriminava os trabalhadores das restantes empresas, assim violando o princípio constitucional da igualdade, consignado no artigo 13º, nº 1, da CRP. Deste acórdão foi interposto recurso pelo MºPº para o Tribunal Constitucional, relativamente apenas à questão da declarada inconstitucionalidade. O TC decidiu julgar constitucional a norma referida, assim concedendo provimento ao recurso. O TC não se pronunciou, nem o podia fazer, sobre a aplicação ou não da amnistia
às empresas que, como a recorrente, eram de capitais apenas maioritariamente públicos. Contrariamente ao que entende o recorrido, a referência que no acórdão daquele tribunal (fls. 247) é feita a empresas de capitais maioritariamente públicos não tem o sentido de que a lei da amnistia se aplica àquele tipo de empresas. O que acontece é que o acórdão do TC remete a sua fundamentação para a fundamentação e conteúdo decisório do seu acórdão nº 153/93 (Diário da República, II série, de 23.6.93), que dá por reproduzidos. Com a referência que
é feita às empresas de capitais maioritariamente públicos, o TC quis apenas afirmar que as razões de declaração de constitucionalidade da norma em causa expendidas no acórdão nº 153/93 são válidas quer a empresa seja pública quer seja de capitais exclusivamente públicos ou apenas de capitais maioritariamente públicos. Em obediência ao acórdão do TC, foi proferido o acórdão de fls. 253 e seguintes. Nele se revogou expressamente o acórdão de fls. 179 e se ordenou a remessa dos autos à 1ª instância para repetição do julgamento nos termos ordenados no acórdão de fls. 139 segs. Devia o acórdão ter-se pronunciado sobre a aplicação da amnistia ou não no caso dos autos. O certo é que a parte decisória do acórdão não se refere directamente a tal questão, embora ela se encontre implícita na ordem de prosseguimento dos autos, para repetição de julgamento, conforme acórdão de fls. 139. Mostram-se, por isso, pertinentes os pedidos de esclarecimento formulados pela recorrente e recorrido. E respondendo às suas dúvidas, esclarece-se que no acórdão de fls. 253 se entendeu não ser aplicável a lei da amnistia às infracções imputadas ao recorrido, em virtude de a recorrente, à data da alegada prática das mesmas, ser empresa privada de capitais maioritariamente públicos e de a referida lei se aplicar tão somente às empresas públicas ou de capitais exclusivamente públicos como aliás tem decidido o nosso mais alto tribunal (Acs. STJ de 12.5.93 e
12.1.94, CJ-acs STJ - I/280 e II/270, respectivamente).'
4. Do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Outubro de 1994, aclarado pelo acórdão de 18 de Dezembro de 1995, interpôs L... o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recorrente contesta a interpretação restritiva
– 'qualificação de empresa de capitais públicos ao caso de empresa de capital exclusivamente público' – feita pelo Tribunal da Relação do Porto.
O Tribunal da Relação do Porto não admitiu o recurso, por entender que não se encontrava preenchido o pressuposto da alínea a) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, disposição ao abrigo da qual o recurso foi interposto: o tribunal não teria recusado a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade (fls. 284). O recorrente reclamou do despacho que não admitiu o recurso.
5. Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional, foi ordenada a sua devolução ao Tribunal da Relação do Porto, para cumprimento do disposto no artigo 688º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artº 69º da Lei do Tribunal Constitucional. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 13 de Maio de 1996 (fls. 311), admitiu o recurso, nos seguintes termos:
'O acórdão de que foi interposto recurso não julgou inconstitucional qualquer norma, nomeadamente não declarou inconstitucional o disposto na al. ii) do artº
1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho. Apenas fez determinada interpretação daquele normativo legal. Por isso, e aparentemente, o recurso para o TC não seria de admitir. Todavia, o TC tem vindo a entender que, no âmbito da fiscalização concreta da inconstitucionalidade, não é necessário para que o recurso seja admissível, que a recusa de aplicação da norma assente numa declaração expressa da sua inconstitucionalidade; é suficiente que tal declaração esteja meramente implícita na decisão e que desta possa ser extraída por simples interpretação
(Ac. nº 210/95, DRª, II Série, de 24.6.95, pág. 6981). Salvo melhor opinião, entendemos que a infracção imputada ao reclamante não se encontra amnistiada, em virtude da Lei nº 23/91 não ser aplicável às empresas que à data da sua entrada em vigor, já eram totalmente privadas (como era o caso da U..., cuja 2ª fase de privatização, ao abrigo do disposto no D. Lei nº
170-A/90, de 26 de Maio, teve lugar na Bolsa de Valores do Porto, em 28.6.90). Contudo, admitindo-se que tal entendimento possa conter uma implícita questão de inconstitucionalidade, cuja apreciação cabe ao TC, acorda-se em admitir o recurso [...].'
6. Tendo os autos subido de novo ao Tribunal Constitucional, o recorrente produziu alegações, em que concluiu:
'A. O Recorrente trabalhador da U... S.A., foi despedido em 11/01/89 [esta referência não está correcta, pois a decisão final do Conselho de Administração da empresa ordenado o despedimento do trabalhador data de 12 Junho 1989 – cfr. doc. 95 do processo disciplinar apenso] na conclusão de um processo disciplinar onde lhe eram imputadas infracções disciplinares. B. Por sentença de 20/05/91, foi declarada a ilicitude do despedimento, tendo a recorrida interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto. C. A natureza jurídica da recorrida, aprovada pelo Dec. Lei nº 353/88, de 6/10 era então uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos. D. A propósito da visita do Papa João Paulo II e no espírito de harmonia na sociedade portuguesa foi publicada a Lei nº 23/91. E. No âmbito da qual se aplica expressamente a amnistia às infracções laborais – artº 1º, al. ii). F. Desde que as empresas sejam públicas ou tenham capitais públicos. G. Nos Doutos Acórdãos de 24/10/94 e 18/12/95 o Tribunal da Relação, obstaculizando a aplicação da alínea ii) do artº 1º da citada Lei nº 23/91, à questão sub judice, com o fundamento que o referido preceito só é aplicável às empresas de capitais exclusivamente públicos, recusou a aplicação de tal norma, invocando o acórdão do S.T.J. de 12/05/93, publicado na CJ, AC. S.T.J. – I/280. H. É certo certíssimo que é entendimento unânime do Tribunal Constitucional que o preceito plasmado na alínea ii) do nº 1 da Lei nº 23/91 é aplicável às empresas de capitais maioritariamente públicos como à saciedade se demonstra no Douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº 210/95, de 20/04/95, que mandou reformar o supracitado Acórdão do S.T.J. (D.R., II série nº 144, de 24/06/95, a folha 6981) I. Pelo que devem ser mandadas alterar as decisões ora recorridas no sentido da aplicação do disposto na alínea ii) do nº 1 da Lei 23/91 de 4/7 às empresas de capitais maioritariamente públicos seja qual for a forma societária que assumam, e desde que as infracções sejam anteriores à sua entrada em vigor.'
7. A U..., por seu turno, defendeu a inaplicabilidade do artigo 1º, alínea ii), da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, à situação do recorrente, assentando a sua argumentação no carácter totalmente privado que a empresa reveste, desde
28 de Junho de 1990 – anteriormente, portanto, ao início de vigência da Lei nº
23/91 –, altura em que se procedeu à privatização total do seu capital na Bolsa de Valores do Porto.
II
8. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade'. O recorrente invoca a recusa de aplicação, pelo Tribunal da Relação do Porto, da norma do artigo 1º, alínea ii), da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, com fundamento em alegada inconstitucionalidade.
9. Porém, a Relação do Porto não recusou a aplicação da norma referida com fundamento em inconstitucionalidade. Na sequência do juízo de não inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional, no acórdão nº 173/94, de 17 de Fevereiro de 1994 (fls. 247), a Relação do Porto reformou a sua decisão anterior. Procedendo a uma interpretação declarativa da norma, aquele tribunal concluiu que tal norma não abrange no seu
âmbito de aplicação as empresas privadas. Por essa razão excluiu a U... do
âmbito normativo da amnistia, 'por a mesma R. U... se ter convertido em sociedade anónima de capitais totalmente privados através do D.L. 170-A/90, de
26 de Maio' (cfr. acórdão de 24 de Outubro de 1994, fls. 253). No acórdão que decidiu os pedidos de aclaração (acórdão de 18 de Dezembro de
1995, fls. 276), tão-pouco se suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade, antes se limitou o tribunal a fixar o âmbito de aplicação da norma. Recordem-se as suas palavras: 'esclarece-se que o acórdão de fls. 253 se entendeu não ser aplicável a lei da amnistia às infracções imputadas ao recorrido, em virtude de a recorrente, à data da alegada prática das mesmas, ser empresa privada de capitais maioritariamente públicos e de a referida lei se aplicar tão somente às empresas públicas ou de capitais exclusivamente públicos'. Finalmente, no acórdão de 13 de Maio de 1996 (fls. 311), que admitiu o recurso de constitucionalidade, fica bem clara a retórica argumentativa do tribunal a quo e a inexistência de qualquer recusa de aplicação normativa, com fundamento em inconstitucionalidade: 'O acórdão de que foi interposto recurso não julgou inconstitucional qualquer norma, nomeadamente não declarou inconstitucional o disposto na al. ii) do artº 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho. Apenas fez determinada interpretação daquele normativo legal' e, mais adiante, 'entendemos que a infracção imputada ao reclamante não se encontra amnistiada, em virtude da Lei nº 23/91 não ser aplicável às empresas que à data da sua entrada em vigor, já eram totalmente privadas (como era o caso da U..., cuja 2ª fase de privatização, ao abrigo do disposto no D. Lei nº 170-A/90, de 26 de Maio, teve lugar na Bolsa de Valores do Porto, em 28.6.90)'.
10. Apesar da argumentação utilizada, o Tribunal da Relação do Porto, por razões de cautela – por entender que a decisão sobre a matéria de constitucionalidade compete ao Tribunal Constitucional – admitiu o recurso.
Mas essa decisão sobre a admissibilidade do recurso não vincula o Tribunal Constitucional, como expressamente se estabelece no artigo 76º, nº 3, da Lei nº
28/82. Ora, no caso dos autos, a ratio decidendi da não aplicação do artigo 1º, alínea ii), da Lei nº 23/91, pelo Tribunal da Relação do Porto – que aliás estava a reformar anterior decisão em cumprimento de uma determinação do Tribunal Constitucional – não foi a inconstitucionalidade da norma. A decisão assentou na delimitação do âmbito da norma invocada, que, segundo se entendeu, não abrange na sua previsão as empresas de capitais maioritariamente públicos. A questão posta a este Tribunal é assim diferente da que foi tratada no acórdão nº 799/93
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., p. 257 ss). Conclui-se assim que não está verificado o pressuposto processual do tipo de recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, isto é, não está verificada a recusa de aplicação de uma norma, pelo tribunal a quo, com fundamento em inconstitucionalidade.
III
11. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta.
Lisboa, 22 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Artur Maurício Luís Nunes de Almeida