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Proc. nº 538/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em Setembro de 1999, MV, tesoureira da Fazenda Pública de 2ª classe, prestando serviço na Tesouraria da Fazenda Pública de Alcobaça, interpôs perante o Tribunal Central Administrativo, recurso contencioso de anulação do indeferimento tácito imputável ao Ministro das Finanças, na sequência do recurso hierárquico que oportunamente lhe dirigiu, onde reclamou o abono por inteiro do quantitativo que considera ser-lhe devido a título de compensação de produtividade.
Nas alegações, a recorrente formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
'A) A recorrente tem direito a receber abono para falhas, de harmonia com o disposto no artº 18, nºs 3 e 4, do DL 519-A1/79, de 29.12. B) É igualmente credora do suplemento criado no âmbito do Fundo de Estabilização Tributário (FET), que visa premiar a produtividade dos funcionários da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI), entre outros. C) Por virtude da aplicação do artº 3º, nº 3, do DL 335/97, de 02/12, viu deduzido do quantitativo a que tinha direito por força da aplicação das regras de cálculo do suplemento do FET o montante que entretanto lhe havia já sido pago a título de abono para falhas. D) Em resultado de aplicação dessa norma legal violadora da Constituição, a saber o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º, e o princípio «para trabalho igual, salário igual», previsto no artº 59º, nº 1, a), preceitos directamente aplicáveis por força do artº 18º, nº 1, todos da Constituição. E) É que o escopo e intenção do suplemento respeitante a «compensações»
(prémios) de produtividade do trabalho dos funcionários e agentes da DGCI (entre outros), por um lado, e do abono para falhas atribuído aos funcionários das TFP encarregados do serviço de caixa e aos tesoureiros gerentes dessas mesmas tesoureiras, por outro, são inteiramente distintos. F) O próprio círculo de beneficiários é distinto; o círculo dos beneficiários do suplemento de produtividade resultante do FET é mais amplo do que aquele que abrange os beneficiários do abono para falhas, o qual inclui no seu seio. G) Enquanto o suplemento de produtividade é devido a todos os funcionários da DGCI que preencham os requisitos estabelecidos na Portaria nº 132/98, de 04/03, tratando-se, assim, de um suplemento, além de variável, incerto; o abono para falhas, ao invés, é certo, embora variável, pois é devido apenas aos funcionários da DGCI investidos em serviço de caixa nas TFP – e aos respectivos tesoureiros gerentes – por força do risco, que eles e só eles correm no exercício das suas funções. H) Estamos perante situações substancialmente desiguais, pelo que o indeferimento tácito recorrido ao manter a aplicação da lei (artº 3º, nº 3, do DL 335/97 de 02/12) por si perfilhada no procedimento, ofende directamente o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º da Constituição, bem como o princípio segundo o qual «para trabalho igual, salário igual», que se desprende da norma do artº 59º, nº 1, a), ambas da Constituição. I) Os invocados preceitos constitucionais, porque relativos a direitos, liberdades e garantias, são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas (artº 18º, nº 1, da CRP).
[...] M) O indeferimento tácito recorrido aplicou, pois, norma (o artº 3º, nº 3, do DL
335/97, de 02/12) inconstitucional por ofensa dos artºs 13º e 59º, nº 1, a), da Lei Fundamental.'
Por sua vez, a autoridade recorrida – o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ao abrigo de delegação de poderes – contra-alegou, tendo concluído:
'[...]
3º. O princípio da legalidade impõe à Administração o respeito pela lei vigente e o seu cumprimento.
4º. O nº 3 do art. 3º, do DL 335/97, de 02-12, foi revogado pelo art. 2º do DL
532/99, de 11-12.
5º. Foi intenção deste novo Diploma, de acordo com o seu preâmbulo, «... a adaptação de um novo critério de atribuição do abono para falhas...».
6º. O acto administrativo contenciosamente impugnado foi praticado em estrita obediência ao disposto nos n.(s) 1 e 3, do DL 335/97, de 02-12, então em vigor.
7º. Quando a lei vincula estritamente a actividade administrativa, os princípios da legalidade e da igualdade têm um significado coincidente: aplicando a lei, os seus actos serão iguais para casos iguais.
8º. A Administração não violou, pois, no caso presente, o princípio da igualdade.
9º. Uma vez que não competia à Administração apurar da constitucionalidade do citado art. 3º do DL 335/97, decidindo, de acordo com a sua apreciação, aplicá-lo, ou não, por a tal se opor o princípio da segurança jurídica.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento, pelos fundamentos invocados pela recorrente.
2. Por acórdão de 6 de Julho de 2000 (fls. 56 e seguintes), o Tribunal Central Administrativo, julgando inconstitucional a norma do artigo 3º, nº 3, do Decreto-Lei nº 335/97, de 2 de Dezembro, concedeu provimento ao recurso.
O Tribunal Central Administrativo fundamentou a sua decisão nestes termos:
'No caso dos autos, temos uma norma – artº 3º, nº 3, do DL nº 335/97, de 02.12
–, que veio permitir a redução do suplemento de produtividade de determinados funcionários – fazendo deduzir o montante do abono para falhas, que já auferiam, ao montante do suplemento por produtividade –, quando este foi criado, sem qualquer fundamento racional ou material. Ora, tal norma, ao permitir tal dedução dos montantes processados a título de suplemento de produtividade, viola o princípio da igualdade, na vertente de trabalho igual salário igual, porque o suplemento de produtividade é devido a todos os funcionários da DGCI e da DGITA que estejam em condições de preencherem os requisitos estabelecidos na Portaria nº 132/98, de 04.03, sejam ou não detentores do direito ao abono para falhas. Com efeito, os funcionários que já auferem um abono para falhas, porque exercem funções de caixa ou são tesoureiros gerentes, não podem ser discriminados
(prejudicados) na atribuição do suplemento por produtividade, em virtude de já beneficiarem daquele abono para falhas, que tem finalidade distinta deste outro suplemento, sem que não seja violado o princípio da igualdade – artº 13º da CRP
– o qual proíbe toda e qualquer discriminação, sem qualquer fundamento material ou racional, bem como proíbe o tratamento igual de situações que são desiguais. Assim sendo, a norma contida no artº 3º, nº 3 do DL nº 335/97, de 02.12, ao estabelecer que «o abono para falhas atribuído ao pessoal das tesourarias da Fazenda Pública é considerado para efeitos do valor a que se refere o nº 1 do presente artigo (suplemento do FET) é materialmente inconstitucional por violar o princípio da igualdade consagrado no artº 13º da CRP, na vertente de tratamento desigual para situações desiguais, assim como viola o disposto no artº 59º, nº 1-a) da CRP, o qual, concretizando o princípio da igualdade, genericamente consagrado no artº 13º, no âmbito da relação jurídica laboral, identifica o factor que permite diferenciações remuneratórias – a natureza, a qualidade e a quantidade do trabalho –, esclarecendo que, na ausência de variação de tal factor, vale a regra de atribuição de salário igual («para trabalho igual salário igual»).
[...] Assim sendo, atentos os fundamentos referidos, e ao abrigo do disposto no artº
4º, nº 3 do ETAF e artº 207 da CRP, julga-se inconstitucional a norma contida no artº 3º, nº 3 do DL nº 335/97, de 02.12, recusando-se a sua aplicação. Em consequência, o presente recurso merece provimento, procedendo as conclusões das alegações da recorrente, estando o acto recorrido ferido de vício de violação de lei, por ter aplicado norma violadora dos citados preceitos constitucionais.'
3. É deste acórdão que vem interposto, pelo Ministério Público, o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea a), da LTC, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do nº 3 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 335/97, de 2 de Dezembro. O recurso foi admitido por despacho de fls. 71.
4. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público concluiu assim as suas alegações:
'1º – Não constitui solução legislativa arbitrária ou manifestamente discricionária, violadora do princípio da igualdade, a que se traduziu em ter o legislador optado por unificar, durante certo período temporal, o regime dos suplementos remuneratórios dos funcionários da administração tributária, ligados
à cobrança coerciva de receitas fiscais – atribuindo um único suplemento de produtividade e considerando por ele consumido o tradicional abono para falhas dos funcionários em exercício de funções nas tesourarias da Fazenda Pública.
2º – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada.'
MV também apresentou alegações, em que, louvando-se no acórdão recorrido, concluiu:
'[...] deve julgar-se materialmente inconstitucional a norma constante do artº
3º, nº 3, do DL 335/97, de 02/12, quando interpretada e aplicada como permitindo a dedução do valor recebido pela recorrida a título de abono para falhas no montante que lhe é, igualmente, e a outro título, devido como prémio de produtividade (no âmbito do FET), negando-se provimento ao recurso e confirmando-se o douto Acórdão recorrido, com as legais consequências.'
II
5. O presente recurso tem por objecto a apreciação da conformidade constitucional da norma constante do nº 3 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 335/97, de 2 de Dezembro, que o Tribunal Central Administrativo julgou inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, e que, nos termos do artigo 204º da mesma Constituição, se recusou a aplicar.
É o seguinte o teor da norma questionada neste processo:
'Artigo 3º Suplementos
[1. Os suplementos a que se refere o nº 4 do artigo 24º do Decreto-Lei nº
158/96, de 3 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 107/97, de 8 de Maio, visam estimular e compensar a produtividade do trabalho dos funcionários e agentes da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI) e da Direcção-Geral de Informática e Apoio dos Serviços Tributários e Aduaneiros
(DGITA), sendo o seu valor o resultante da aplicação de uma percentagem ao vencimento base referente aos respectivos cargos e categorias, o qual será o do
índice do 1º escalão, nos casos em que a estrutura salarial inclua vários escalões.
2. (...)]
3. O abono para falhas atribuído ao pessoal das tesourarias da Fazenda Pública é considerado para efeito do valor a que se refere o nº 1 do presente artigo.
[...]'
6. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma em causa, tendo julgado que a mesma não contraria a Constituição.
No acórdão nº 37/01 (ainda inédito), depois de analisar a referida norma no contexto da ordem jurídica portuguesa e de recordar o sentido do princípio da igualdade na jurisprudência constitucional, o Tribunal disse:
'Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importará então saber se a norma em crise o violará. Tal norma, como é evidente, não deve perspectivar-se no sentido de prescrever uma qualquer diminuição do montante a perceber pelo pessoal das tesourarias da Fazenda Pública referentemente ao suplemento de compensações por produtividade regulamentado pela Portaria nº 132/98, mas sim no sentido de, na realidade prática, dela decorrer que, no cômputo global do quantitativo a auferir a título de vencimento, suplementos e abono para falhas (e enquanto este subsistiu nos termos do artº 18º do Decreto-Lei nº 519-A1/79), se não inclui o montante correspondente a este último. Sendo isto assim, torna-se claro que, em face da prescrição contida na norma desaplicada na decisão sub iudicio, isso significou que o suplemento de compensações por produtividade dos funcionários da Direcção-Geral dos Impostos
(que são os que unicamente agora relevam) veio, concernentemente ao pessoal das tesourarias da Fazenda Pública e como faz notar o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação, a «integrar» ou «consumir» o abono para falhas, que somente era atribuído a este último pessoal e cujo valor era inferior ao do daquele suplemento. Colocada desta forma a questão, fácil é descortinar que o juízo de inconstitucionalidade a que chegou a decisão recorrida só se poderia alcançar se, por entre o mais, se partisse do princípio de que estaria vedado ao legislador proibir a atribuição de abonos para falhas anteriormente concedidos, nomeadamente em situações em que, como a ora em análise, da não atribuição do abono não resultasse, na prática, uma diminuição global dos réditos dos funcionários e agentes em face da adopção de novos mecanismos que, objectivamente, asseguram essa não diminuição. Ora, é justamente desse princípio que se não pode partir. Na realidade, se se aceitasse o postulado de que «arranca» o acórdão lavrado no Tribunal Central Administrativo, a violação da igualdade residiria, afinal, em a norma sub specie ter acabado com uma «discriminação positiva» de que desfrutaria o pessoal das tesourarias da Fazenda Pública reportadamente ao restante pessoal da Direcção-Geral dos Impostos. Como assinala o recorrente, «em sede de estabelecimento e definição do âmbito de suplementos remuneratórios vigora uma ampla margem de discricionariedade legislativa, podendo o legislador infraconstitucional, para realização de objectivos práticos e de eficácia dos serviços, optar por diferentes figurinos quanto à configuração de tais remunerações complementares ou acessórias», pelo que «a ‘discriminação’ operada quanto a determinados funcionários da administração tributária em, afinal, os sujeitar ao regime genericamente estabelecido, para o efeito de suplementos remuneratórios, quanto a todos os funcionários da administração fiscal, ligados funcionalmente à arrecadação de receitas tributárias - não constitui solução legislativa arbitrária». E assim é, de facto. Como se vincou no Acórdão deste Tribunal nº 663/99, «[p]retender fazer valer uma igualdade formal em matéria de uma regalia específica ou norma específica, desconsiderando todo o universo de diferenças que a justifica, bem como o sentido da própria regulamentação globamente considerada que a impõe (diverso, como se disse, perante relações de direito privado e no domínio público), seria desconsiderar o próprio sentido do princípio da igualdade, que exige o tratamento diferenciado do que é diferenciado tanto quanto exige o tratamento igual do que é igual. Sendo certo, aliás, que a igualação de uma circunstância pode, no conjunto, agravar a desigualdade – basta que tal igualização se faça a favor da parte mais favorecida em todas as outras circunstâncias, menos naquela». Não se pode, efectivamente, dizer que é constitucionalmente imposto ao legislador ordinário, em nome do princípio que se extrai da alínea a) do nº 1 do artigo 59º da Constituição, que, relativamente a determinado pessoal, maxime pertencente à Administração Pública, que tenha especificidades funcionais que impliquem o manuseio e arrecadação de quantitativos pecuniários, lhe conceda compensações monetárias com o escopo de compensar eventuais lapsos pelos mesmo cometido em razão daqueles manuseio e arrecadação. E, consequentemente, também não se pode dizer que a abolição de compensações desse jaez, que porventura tivessem anteriormente sido concedidas no âmbito da liberdade de conformação que se há-de reconhecer ao legislador infra-constitucional, constitua uma ofensa
àquele mesmo princípio. O normativo em apreço não viola, pois, o princípio da igualdade decorrente do artigo 13º da Lei Fundamental, não o violando também na sua precipitação constante da citada alínea a) do nº1 do artigo 59º do mesmo Diploma Básico.'
Este entendimento foi mantido nos acórdãos nºs 38/01 e 39/01, também ainda inéditos.
É esta jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos constantes do citado acórdão nº 37/01 – para o qual se remete –, reafirma-se que a norma constante do nº 3 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 335/97, de 2 de Dezembro, não viola o princípio da igualdade consagrado nos artigos 13º e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa. III
7. Tendo em conta o que antecede, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade o presente julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa