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Proc. nº 583/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde, L... e outros propuseram, contra P... e mulher, M..., acção especial de posse judicial avulsa, pedindo que lhes fosse reconhecida a posse sobre determinado prédio, que identificaram, e, consequentemente, que lhes fosse feita a entrega efectiva do mesmo.
Alegaram que o referido prédio lhes foi adjudicado em processo de inventário obrigatório; que a aquisição foi registada em seu favor; e que, por essas razões, os réus estão a habitá-lo sem qualquer título.
Os réus contestaram invocando que o prédio e respectivo recheio lhes foi dado de arrendamento.
O Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde considerou não provado o arrendamento alegado pelos réus, concluindo que a ocupação do prédio não tinha qualquer título legítimo e dando como verificados os requisitos de que a lei faz depender a entrega judicial do mesmo (artigos 1044º e seguintes do Código de Processo Civil, antiga redacção). O tribunal entendeu, por outro lado, ser inaplicável ao caso por analogia o diferimento da desocupação do prédio previsto nos artigos 102º e seguintes do Regime do Arrendamento Urbano. Nestes termos, julgou a acção procedente, investiu os autores na posse do identificado prédio e condenou os réus a entregarem-no imediatamente aos autores (sentença de 25 de Janeiro de 1999, a fls. 10 e seguintes dos presentes autos).
2. Desta decisão foi interposto recurso por P... e mulher. Nas alegações de recurso, os recorrentes sustentaram o diferimento da desocupação do prédio, quer por aplicação das normas contidas no Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, designadamente dos artigos 3º, 4º, 17º e 22º (a entender-se que não foram revogadas pelo artigo 3º, nº 1, alínea c), do diploma que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano), quer por aplicação analógica do regime estabelecido no artigo 102º do Regime do Arrendamento Urbano (na hipótese de se entender que o Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, foi revogado na globalidade).
Os recorrentes concluíram essas alegações afirmando:
'[...]
5ª. Doutro modo, se se aceitasse que o referido art. 3º do diploma preambular do RAU revogou o art. 22º do DL 293/77, tal interpretação normativa implicaria um nítido retrocesso social, passível de inquinar aquele preceito – ou essa sua interpretação – de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos arts. 65º e 81º/1 da Constituição da República.
6ª. Aliás, ao não aplicar analogicamente o disposto no art. 102º do RAU ao caso dos autos, a sentença recorrida não explicita os fundamentos da decisão, estando assim, por esse motivo, ferida de nulidade – cfr. art. 668º/1.b) do Código de Processo Civil.
[...]'.
3. O Tribunal da Relação do Porto delimitou nos seguintes termos o objecto do recurso que lhe era submetido:
'A questão objecto do recurso [...] consiste em determinar se é aplicável por analogia o regime legal do diferimento da desocupação – previsto no art. 102º do RAU – e se a sentença, na parte em que se recusou tal aplicabilidade, enferma de nulidade por omissão da fundamentação de facto.'
Começando pela questão enunciada em último lugar, o Tribunal da Relação do Porto decidiu que a sentença enferma de nulidade por não conter argumentação 'capaz de convencer, por demonstração, a posição assumida'. Considerou todavia que tal facto não obsta a que o tribunal conheça do mérito da pretensão dos recorrentes, face ao disposto no artigo 715º, nº 1, do Código de Processo Civil.
O Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se em seguida sobre o
'ponto nuclear colocado pelos apelantes, qual seja o de saber se há lugar à aplicação do instituto do diferimento da desocupação' do prédio no âmbito da acção de posse ou entrega judicial regulada nos artigos 1044º e seguintes do Código de Processo Civil – a acção de que os autores se socorreram nos presentes autos. Considerando que não foi provada no processo a existência de um título de ocupação e fruição do imóvel pelos apelantes, o tribunal concluiu não ser possível aplicar a norma do artigo 1049º, nº 2, do Código de Processo Civil
(vigente ao tempo da propositura da acção), segundo a qual 'só pode ser conferida posse que não prejudique o uso e fruição do contestante' (no caso, tratar-se-ia do uso e fruição do imóvel pelos réus, apelantes). Por outro lado, o tribunal entendeu que a cessação de vigência do Decreto-Lei nº 293/77 – qualificado como 'lei de emergência' social, actuando num quadro sócio-temporal particular – não originou qualquer lacuna de regulamentação quanto a um eventual diferimento de desocupação do prédio nas acções de restituição de posse ou de entrega judicial de prédios ocupados sem a cobertura legal de uma relação locatícia. Consequentemente, o Tribunal da Relação do Porto decidiu não ser de aplicar ao caso dos autos a norma do artigo 102º do Regime do Arrendamento Urbano – como pretendido pelos recorrentes –, por não existir qualquer lacuna na lei que justificasse o recurso à analogia.
Com estes fundamentos, o tribunal concedeu provimento ao recurso na parte em que se arguiu a nulidade da sentença por falta de fundamentação e, conhecendo da questão de mérito objecto do recurso, ao abrigo do artigo 715º, nº
1, do Código de Processo Civil, julgou improcedente a pretensão de aplicação analógica do artigo 102º (e 103º) do Regime do Arrendamento Urbano (acórdão de
31 de Maio de 1999, fls. 19 e seguintes).
4. P... e mulher pretenderam interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 3º, nº 1, alínea c), do diploma preambular do Regime do Arrendamento Urbano, que revogou genericamente o Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, por violação do direito à habitação consagrado nos artigos 65º e 81º da Constituição.
O recurso não foi admitido com fundamento em que 'a inconstitucionalidade invocada pelos recorrentes não foi suscitada durante os articulados vindo, meramente, a ser referida no requerimento de interposição do recurso' (despacho de fls. 30 destes autos).
5. P... e mulher reclamaram do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando que invocaram a inconstitucionalidade nas alegações de recurso de apelação e que esse é ainda momento adequado para invocar uma questão de inconstitucionalidade.
6. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
Embora reconhecendo que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, o Senhor Procurador-Geral Adjunto entende que 'o recurso de constitucionalidade é de qualificar como «manifestamente infundado», nos termos e para os efeitos do nº 2 do art. 76º da Lei nº 28/82, já que não pode manifestamente inferir-se da consagração na Lei Fundamental de um direito social – como é o invocado «direito à habitação» – a oponibilidade ao legítimo proprietário de um imóvel, abusivamente ocupado e fruído, ao longo do tempo, sem qualquer título – e que acabou de ver o seu direito judicialmente reconhecido – de uma pretensão ao diferimento da desocupação, que seja susceptível de paralisar a imediata exequibilidade da sentença condenatória proferida'. II
7. O fundamento invocado para a rejeição do recurso foi a não invocação da inconstitucionalidade durante os articulados.
O sentido funcional que o Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada durante o processo tem em vista dar oportunidade ao tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso.
Neste sentido, há que reconhecer que as alegações produzidas em recurso de apelação constituem momento adequado para suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, dado que o tribunal perante o qual o problema é colocado vai ainda proferir decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade.
Não procede portanto a razão invocada pelo Tribunal da Relação do Porto para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto por P... e mulher.
8. Todavia, há ainda que averiguar se estão verificados todos os pressupostos processuais do recurso que se pretendia interpor, já que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, nº 4, da Lei nº
28/82.
Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada por este Tribunal;
– que essa norma tenha sido aplicada na decisão recorrida, como seu fundamento normativo, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Tal como delimitado pelos ora reclamantes no requerimento de interposição do recurso, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade teria como objecto a norma do artigo 3º, nº 1, alínea c), do diploma preambular do Regime do Arrendamento Urbano (Decreto-Lei nº 321-B/90, de
15 de Outubro), norma que revogou genericamente o Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho.
O Tribunal da Relação do Porto, ao fixar o objecto do recurso que lhe era submetido, afirmou que a questão sobre a qual teria de se pronunciar consistia em saber se era aplicável por analogia o regime legal do diferimento da desocupação, previsto no artigo 102º do RAU (e ainda em saber se a sentença então recorrida, na parte em que recusou tal aplicabilidade, enferma de nulidade por falta de fundamentação – mas esta questão não tem relevância para o presente recurso de constitucionalidade).
Sobre a questão de mérito objecto do recurso de apelação, o Tribunal da Relação do Porto considerou que, no âmbito da acção intentada pelos autores nos presentes autos – a acção de posse ou entrega judicial regulada nos artigos
1044º e seguintes do Código de Processo Civil –, se admitia a possibilidade de a decisão ponderar o eventual prejuízo dos requeridos. Com efeito, o artigo 1049º, nº 2, do mencionado Código previa que apenas fosse conferida aos requerentes a posse do imóvel que não prejudicasse o uso e fruição dos réus. Exigia-se, para tanto, que os réus provassem a existência de um título de ocupação e fruição do imóvel. Não tendo sido feita essa prova no processo, o tribunal concluiu não ser possível aplicar tal norma do Código de Processo Civil.
Não tendo sido provada a existência do contrato de arrendamento invocado pelos réus, apelantes, o tribunal afastou a aplicação do regime contido no artigo 102º do Regime do Arrendamento Urbano.
E, entendendo que a cessação de vigência do Decreto-Lei nº 293/77 não originou qualquer lacuna de regulamentação quanto a um eventual diferimento de desocupação do prédio nas acções de restituição de posse ou de entrega judicial de prédios ocupados sem a cobertura legal de uma relação locatícia, o Tribunal da Relação do Porto decidiu não ser de aplicar ao caso dos autos a norma do artigo 102º do Regime do Arrendamento Urbano – como pretendido pelos recorrentes –, por não existir qualquer lacuna na lei que justificasse o recurso
à analogia.
Verifica-se assim que constituiu pressuposto da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto a revogação do regime constante do Decreto-Lei nº 293/77, operada pela norma do artigo 3º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro.
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 31 de Maio de 1999, de que os ora reclamantes pretendem interpor o recurso de constitucionalidade fundou-se, ao menos implicitamente, na norma impugnada – a norma do artigo 3º, nº 1, alínea c), do diploma preambular do R.A.U..
9. Tanto basta para concluir que se encontram verificados, no caso dos autos, os pressupostos processuais exigidos no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o recurso de constitucionalidade. Lisboa, 21 de Dezembro de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida