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Processo n.º 275/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, vieram os recorrentes A., B. e C., Lda., interpor recursos, para o Tribunal Constitucional, nos termos artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
Não tendo tais recursos sido admitidos no tribunal a quo, os recorrentes apresentaram as reclamações que serão aqui objeto de apreciação.
2. Os reclamantes foram condenados, pela prática, em coautoria, de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), numa pena e ainda no pagamento de uma indemnização.
Inconformados, recorreram para o Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 7 de julho de 2010, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedentes os recursos interpostos da sentença e de despachos interlocutórios.
Notificados de tal acórdão, os reclamantes requereram a aclaração do mesmo, tendo sido tal expediente igualmente utilizado por um outro coarguido.
Por acórdão de 9 de fevereiro de 2011, o Tribunal da Relação do Porto concluiu que, nos requerimentos apresentados, “nenhum lapso, obscuridade ou ambiguidade é realmente invocado, convertendo-se os pedidos num expediente meramente dilatório”. Assim, “por manifesta falta de qualquer fundamento válido”, foi determinada, ao abrigo do artigo 720.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal, a imediata remessa do processo à 1.ª Instância, para execução da decisão condenatória proferida.
3. O referido acórdão de 9 de fevereiro de 2011 mereceu as seguintes reações:
O coarguido, que havia igualmente requerido aclaração, apresentou arguição de nulidade da decisão.
A. e B. apresentaram requerimento, dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, expondo a sua discordância relativamente à aplicabilidade do artigo 720.º do Código de Processo Civil, no âmbito do processo penal, referindo que “a desconsideração da argumentação expendida (…) sufraga interpretação de molde a tornar inconstitucional a norma do artigo 4º do CP Penal, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º/1 da CRP, por violação do direito ao processo equitativo, artigo 20º/4 da CRP e dos direitos de defesa do arguido, plasmados no artigo 32º, 1” da Lei Fundamental, e peticionando que seja “revogada” a decisão tomada, “no segmento concretamente tido em mira, (…) por adotar interpretação desconforme à Constituição (…) da norma contida no artigo 4º do CPP, na medida em que permite a aplicabilidade ao processo penal do mecanismo “incidente manifestamente infundado” previsto no artigo 720º do CP Civil.”
C., Lda., apresentou requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, definindo como objeto respetivo “a interpretação que o acórdão recorrido fez dos artigos 151º, 153º e 163º do Cód. Proc. Penal, assim violando o artº 32º nº 1 e 4 da Constituição.”
Mais esclareceu que, na sequência de recurso do despacho da 1.ª Instância que indeferiu a realização de perícia requerida, foi proferido acórdão em que se refere que “A perícia que se impunha ao caso já tinha sido efetuada pelo DGCI e foi ela que deu origem ao inquérito. A realização da outra perícia apenas serviria para demorar o andamento da audiência.”
No requerimento de aclaração de tal acórdão – peça processual em que, segundo alega, cumpriu o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade - a reclamante refere ter pretendido que o Tribunal da Relação esclarecesse “se ao decidir que a perícia requerida já fora efetuada pela DGCI (…) interpreta as normas dos artsº 151º a 163º Cod. Proc. Penal, como aplicadas no documento de fls. 201 (obtenção do meio de prova pericial [com] observância das regras impostas pelos artºs 151º, 153º e 161º Cod. Proc. Penal), o que a ser assim entendido, essa interpretação do Acórdão incorre em violação do artº 32º nº 1, 4 da Constituição.”
4. O Tribunal da Relação do Porto decidiu, em acórdão proferido em conferência, datado de 20 de dezembro de 2011, indeferir a arguição de nulidade deduzida.
Relativamente ao recurso interposto pela reclamante C., Lda., mediante despacho do Relator, datado de 20 de dezembro de 2011, o Tribunal da Relação decidiu pela não admissão, com os fundamentos seguintes:
“Mostra-se manifesto que no Acórdão de que se pretende recorrer, não se procedeu à aplicação nem à interpretação das normas contidas nos arts. 151º (quando tem lugar a prova pericial), 153º (desempenho da função de perito) e 161º (destruição de objetos sob perícia) do Código de Processo Penal.
Mostra-se, igualmente, manifesto que na peça processual que se indica como sendo aquela em que a inconstitucionalidade foi suscitada (“o requerimento de aclaração do Acórdão recorrido”) não se procede – em relação às normas em causa -, de uma forma clara, percetível e coerente, à delimitação da dimensão normativa, conferida a cada uma daquelas normas que se tem por violadora da Constituição, e muito menos se demonstra que foram essas normas ou uma sua determinada interpretação que serviram de fundamento legal à Decisão recorrida. Não surge, assim, suficientemente delimitado e identificado o objeto do recurso.
O recurso em causa, mostra-se, desta forma, manifestamente infundado.”
No tocante ao requerimento apresentado por A. e B., o Tribunal da Relação, na mesma decisão do Relator, datada de 20 de dezembro de 2011, perspetivou a pretensão deduzida como correspondendo a requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade relativo ao último acórdão notificado, tendo fundamentado a sua não admissão com os seguintes argumentos:
“Não surge indicada a alínea do n.º 1, do art. 70° da LTC, ao abrigo da qual o recurso é interposto.
Porém, se tal poderia ser suprido com recurso ao convite para aperfeiçoamento, outras deficiências mais graves, não suscetíveis de aperfeiçoamento se mostram existentes.
Pretende suscitar-se a inconstitucionalidade de um segmento da Decisão, em si: aquele que considerou sem fundamento válido os requerimentos interpostos, e meramente dilatórios, demorando a execução da decisão condenatória proferida, e nos termos do art. 720° do CPC – aplicável subsidiariamente por via do art. 4° do CPP -, ordenou a imediata remessa do processo à 1ª Instância para execução do decidido, ficando neste Tribunal certidão do Acórdão aqui proferido e dos termos subsequentes.
Ora, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, não é admissível suscitar-se a questão da constitucionalidade de uma Decisão, ou de um segmento de Decisão, como ato de aplicação do Direito, mas sim, de normas que nela hajam sido aplicadas.
Por outro lado, ainda que se entendesse que estava a ser validamente suscitada a questão da constitucionalidade da aplicação subsidiária do art. 720° do C.P.C., e não da Decisão em si, mostra-se evidente a falta de fundamentação, ao se não justificar a pertinência da invocação das normas e princípios constitucionais objeto de alusão, que surgem apenas enunciados, sem qualquer concretização: «direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º/1 da CRP, por violação do direito ao processo equitativo, artigo 20°/4 da CRP e dos direitos de defesa do arguido, plasmados no artigo 32º, 1”.
Por estas razões, o recurso em causa mostra-se manifestamente infundado.”
Concluiu, desta forma, relativamente às pretensões dos aqui reclamantes:
“ A propósito do conceito de “recurso manifestamente infundado”, escreveu-se no Ac. 304/00, do TC, na esteira das palavras de Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pag 479), “que um recurso é assim qualificável quando a análise meramente literal permite concluir, com segurança, que as questões suscitadas são manifestamente improcedentes” ou quando “a sua improcedência é a um primeiro exame, evidente, ostensiva’ (cfr., também, Ac. 132/98 do TC).
E no Acórdão n.º 269/94 do TC, escreve-se: “o legislador, empenhado, como está, em impedir que o recurso de constitucionalidade sirva fins dilatórios, pretende que a questão de constitucionalidade só suba ao Tribunal Constitucional, quando (…) apareça, prima facie, dotada de uma certa atendibilidade”.(Acórdãos citados no Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª Ed. Coimbra Editora).
Pelo exposto, e nos termos do art. 76°, nº2, da Lei do Tribunal Constitucional, não se admite os recursos, supra referenciados, interpostos pela “C., Lda”, e pelo A. e B., por se mostrarem manifestamente infundados.”
5. Após notificação do acórdão de 20 de dezembro de 2011, os reclamantes A. e B. vieram, em 13 de janeiro de 2012, apresentar requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, referindo pretender que “o Tribunal Constitucional declare que a interpretação da norma plasmada no artigo 4º do CP Penal quando permite a convocação do instrumento do mecanismo “incidente manifestamente infundado” do artigo 720º, do Código de Processo Civil em sede de processo penal, é inconstitucional, por violação do direito de acesso aos Tribunais e por sacrificar as garantias de defesa do arguido, previstos, respetivamente, nos artigos 20º, n.º 4 e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”
6. Dos autos resulta que, apenas após a apresentação do requerimento de interposição de recurso referido em 5., foi suprido o lapso da secretaria, decorrente da falta de notificação atempada do despacho do Relator datado de 20 de dezembro de 2011 (cfr. fls. 153), pelo que se procedeu, nesse momento, a tal notificação.
Os reclamantes A. e B. apresentaram, então, a presente reclamação, interpretando o referido despacho como incidente sobre o seu requerimento, que deu entrada em Juízo a 13 de janeiro de 2012.
7. Para fundamentar a sua pretensão, invocam os reclamantes que, contrariamente ao que é referido no despacho reclamado, indicaram a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, ao abrigo da qual o recurso é interposto. Acresce que não invocaram a inconstitucionalidade da decisão – como no despacho se refere - mas de uma interpretação normativa cujo vício de desconformidade com a Lei Fundamental tinham suscitado no processo.
No tocante à invocada falta de fundamentação, quanto à pertinência da invocação das normas e princípios constitucionais enunciados, referem os reclamantes que nenhuma norma os obrigaria a tal fundamentação, limitando-se o n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC a exigir a mera indicação dos parâmetros constitucionais violados, exigência que, de resto, os reclamantes referem ter cumprido.
Concluem, desta forma, pedindo que a decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade seja revogada e substituída por outra que admita o recurso.
8. C., Lda., notificada do despacho de não admissão do seu recurso de constitucionalidade, igualmente apresentou reclamação.
Refere, para fundamentar a sua posição, que o tribunal a quo interpretou e aplicou normas sobre produção de prova pericial, apesar de se recusar a invocar as mesmas de forma expressa, pelo que não corresponde à verdade que a decisão recorrida não tenha aplicado, como ratio decidendi, os preceitos que a reclamante indica como objeto do seu recurso de constitucionalidade. Aliás, o requerimento de aclaração destinou-se exatamente a permitir que a reclamante ficasse esclarecida quanto à norma legal, que determinou a prolação da decisão aclaranda.
Acrescenta que o despacho reclamado não cumpriu o disposto no n.º 5 do artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, o que consubstancia nulidade, violando ainda o disposto nos artigos 6.º do Código Civil, 202.º, n.º 2, e 205.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Conclui, nestes termos, que o recurso de constitucionalidade deve ser admitido ou, se assim não se entender, deve ser cumprido o disposto no artigo 75.º-A da LTC.
9. O Ministério Público, pronunciando-se sobre a reclamação apresentada por A. e B., começa por fazer uma síntese das incidências processuais relevantes, chamando a atenção para a circunstância de, em rigor, o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, relativamente aos recorrentes A. e B., ter sido proferido antes da respetiva interposição, o que não constitui óbice a que se conheça da reclamação, atento o facto de a questão de constitucionalidade, cuja apreciação é pedida, se manter idêntica na peça processual, que o tribunal a quo considerou corresponder ao requerimento de interposição de recurso, e na peça que detém verdadeiramente tal natureza.
Após tal introito, refere que o verdadeiro requerimento recursório supriu as deficiências, que tinham sido apontadas ao requerimento em que era peticionada a “revogação” da decisão proferida.
Porém, manifesta o Ministério Público a sua concordância com a decisão reclamada, quanto à conclusão final da não admissão do recurso, considerando o mesmo manifestamente infundado relativamente à invocada inconstitucionalidade da norma plasmada no artigo 4.º do Código de Processo Penal, no sentido de permitir a aplicabilidade, em processo penal, do mecanismo previsto no artigo 720.º do Código de Processo Civil relativo ao “incidente manifestamente infundado”.
A esse propósito, refere que, se tal regime de “defesa contra demoras abusivas” não fosse aplicável em processo penal, a utilização indevida dos meios processuais abstratamente previstos poderia conduzir ao não cumprimento das decisões, “o que, isso sim, corresponderia a situações de denegação da justiça”. Mais refere que tal mecanismo é aplicável, em processo penal, não apenas aos arguidos, mas a todos os sujeitos processuais.
Relativamente à reclamação apresentada por C., Lda., refere o Ministério Público que, embora não seja concretamente identificada a decisão recorrida, parece poder concluir-se - da análise do teor do requerimento de interposição do recurso e da questão de constitucionalidade colocada - que a mesma corresponde ao acórdão do Tribunal da Relação, que negou provimento ao recurso.
Ora, é a própria recorrente que, no requerimento de interposição do recurso, afirma que suscitou a questão de constitucionalidade no “requerimento de aclaração do acórdão recorrido”, sendo certo que tal já não era o momento processual adequado para cumprir o ónus de suscitação prévia.
Na verdade, o cumprimento de tal ónus só se mostra verificado se a suscitação ocorrer antes de o tribunal a quo proferir a decisão que esgota o seu poder jurisdicional (artigo 666.º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, os recorrentes só estão dispensados de tal ónus, se a interpretação acolhida na decisão recorrida for surpreendente ou inesperada, caso em que os mesmos deverão explicar e demonstrar que lhes era inexigível prever a aplicação de tal critério normativo e do inerente vício de inconstitucionalidade. No caso, a reclamante nada referiu a este propósito, sendo que a “interpretação” adotada pelo Tribunal da Relação nada tem de surpreendente, face ao decidido pela 1.ª Instância e ao que consta da motivação do recurso interposto para aquele Tribunal.
Acrescenta ainda o Ministério Público que a recorrente não enuncia, no seu pedido de aclaração nem no requerimento de interposição do recurso, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, suscetível de constituir objeto idóneo do recurso para o Tribunal Constitucional.
Conclui, pelo exposto, que, faltando pressupostos de admissibilidade do recurso, a aplicação do disposto no artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, revelar-se-ia uma diligência inútil, uma vez que apenas poderia permitir a correção de deficiências formais de que padecesse o requerimento de interposição do recurso.
10. Os reclamantes foram convidados a pronunciarem-se sobre o teor do parecer apresentado pelo Ministério Público, em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69.º da LTC, mas não exerceram tal faculdade, no prazo legal.
Na verdade, apenas a reclamante C., Lda., veio pretender exercer o seu direito ao contraditório, mas fê-lo após expirado o prazo legal, como melhor demonstraremos infra.
De facto, o ofício de notificação respetivo seguiu, por via postal registada, em 31 de maio de 2012.
Assim, nos termos do n.º 3 do artigo 254.º do Código de Processo Civil, a notificação presume-se efetuada no dia 4 de junho de 2012.
A reclamante dispunha do prazo de dez dias para se pronunciar, contado desde a data da notificação, pelo que tal prazo terminou no dia 14 de junho, podendo o direito ainda ser exercido nos primeiros três dias úteis seguintes, mediante o pagamento de uma multa, nos termos do artigo 145.º do Código de Processo Civil, ou seja, até ao dia 19 de junho.
Tendo a reclamante C., Lda., apenas enviado a sua peça processual, em exercício do direito ao contraditório, por fax, a 20 de junho de 2012, verifica-se que o ato praticado é extemporâneo.
Nestes termos, a peça processual constante de fls. 196 e 197 é inadmissível por extemporaneidade, não podendo o seu conteúdo ser considerado.
Tratada tal questão prévia, cumpre apreciar e decidir a matéria das reclamações apresentadas, que pressupõe a apreciação dos pressupostos de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade interpostos.
II - Fundamentos
11. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos, pois, se tais requisitos se encontram preenchidos in casu ou se, pelo contrário, procedem os argumentos utilizados na decisão reclamada ou no parecer do Ministério Público, aqui reclamado.
12. Comecemos por analisar o recurso de constitucionalidade interposto por C., Lda.
Previamente, cumpre precisar que o julgamento da reclamação cabe à conferência, a que se refere o n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC (ex vi artigo 77.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Porém, não obsta à apreciação da reclamação a circunstância de a reclamante dirigir a respetiva peça processual ao Presidente do Tribunal Constitucional. Como se refere no Acórdão n.º 569/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, onde poderão ser encontrados os arestos doravante referidos), “haverá que tratar a referência do reclamante a Presidente deste tribunal como mera imprecisão terminológica que de modo algum preclude o conhecimento da reclamação”.
Não obstante a recorrente não identificar, de forma inequívoca, a decisão recorrida, expressamente refere que suscitou a questão de constitucionalidade, que pretende ver dirimida, no “requerimento de aclaração do acórdão recorrido”, assim se inferindo que identifica o acórdão de 7 de julho de 2010 – alvo do pedido de aclaração - como acórdão recorrido, relativamente ao presente recurso de constitucionalidade.
Delimitando o objeto do recurso, a recorrente refere que pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da “interpretação que o acórdão recorrido fez dos artºs 151º, 153º e 163º do Cód. Proc. Penal”.
Omite, deste modo, a enunciação da concreta interpretação normativa, cuja sindicância pretende, limitando-se a enumerar as disposições legais, que lhe servirão de suporte, e remetendo para o entendimento sufragado no acórdão recorrido, sem nunca explicitar os concretos termos do mesmo.
Incumpre, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Na verdade, por força do referido preceito, tem este Tribunal entendido que sobre a parte, que pretenda questionar a constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa, impende o ónus de enunciar expressamente tal interpretação, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido interpretativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
13. Como já referimos, a recorrente não enuncia, de forma clara e inequívoca, no requerimento de interposição do recurso, o específico critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se a mencionar três disposições legais, em que tal critério presumivelmente assentará.
Recorde-se que também impendia sobre a recorrente o ónus de suscitar previamente a questão de constitucionalidade, perante o tribunal a quo, “em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC),
Pelo exposto, deveria a recorrente ter suscitado a questão de constitucionalidade em momento anterior à prolação do acórdão de 7 de julho de 2010. Contudo, a mesma confessa que apenas suscitou tal questão no requerimento de aclaração do acórdão recorrido, ou seja, em incidente pós-decisório.
A suscitação, em tal momento, de qualquer questão normativa de constitucionalidade reportada ao acórdão aclarando sempre seria manifestamente intempestiva e, por isso, inidónea para garantir a admissibilidade do ulterior recurso de constitucionalidade respetivo.
Porém, independentemente do momento da suscitação, o requerimento de aclaração patenteia ainda outro vício obstativo da admissibilidade do recurso: a ausência de dimensão normativa da questão de constitucionalidade colocada.
De facto, analisando-se a referida peça processual, verifica-se que a questão que a recorrente coloca é a seguinte:
“(…) Ao decidir-se que a perícia que se impunha ao caso foi efetuado pelo DGCI, entende-se que o documento de fls. 201 e segs é um meio de prova pericial prevista no art. 153º e seg. CPP.?
(…) Ao decidir-se que o despacho de 1º Instância está correto e que a realização de outra “perícia”, entende-se que no processo já constou meio de prova pericial realizado, nos termos do artº 153º e segs.? (especificando-se onde consta esse meio de prova).
- O esclarecimento destas questões pode levar a que o entendimento perfilhado no Acórdão possa incorrer em violação do artº 32º nº 1, 4 da Constituição.”
Sintetizando o sentido da questão suscitada, refere a recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que o acórdão recorrido “interpreta as normas dos artsº 151º a 163º Cod. Proc. Penal, como aplicadas no documento de fls. 201 (obtenção de meio de prova pericial [com] observância das regras impostas pelos artºs 151º, 153º e 161º Cod. Proc. Penal), o que a ser assim entendido, essa interpretação do Acórdão incorre em violação do artº 32º nº 1, 4 da Constituição.”
Ora, da análise dos excertos transcritos resulta que a recorrente não autonomiza e enuncia uma questão relativa a um verdadeiro critério normativo – enquanto regra abstrata, potencialmente aplicável a uma generalidade de situações – extraível dos preceitos identificados – artigos 151.º, 153.º e 163.º, todos do Código de Processo Penal - e que nos mesmos encontre um mínimo de correspondência literal, sendo manifesto que a pretensão de sindicância deduzida incide sobre a própria decisão jurisdicional, na sua dimensão de qualificação jurídica de determinado documento.
Tal dimensão está, porém, excluída da sindicância do Tribunal Constitucional.
A esse propósito, cumpre relembrar as considerações aduzidas no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08, que se transcrevem:
“ (…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Nestes termos, resultando - quer da exposição plasmada no requerimento de interposição de recurso, quer da peça processual em que a recorrente refere ter cumprido o ónus de suscitação prévia - a natureza não normativa da questão de constitucionalidade suscitada, forçoso será concluir pela inidoneidade do objeto do recurso, circunstância que obsta à sua admissibilidade.
Face à natureza cumulativa dos pressupostos de admissibilidade do recurso, demonstrada que se encontra a natureza não normativa do objeto do recurso, mostra-se ociosa a discussão sobre a verificação dos restantes pressupostos.
Pelo exposto, não sendo o recurso admissível, improcede a reclamação deduzida.
14. Relativamente ao recurso interposto por A. e B., consigna-se que se apreciará o requerimento de interposição constante de fls. 142 a 146 (fax) e 147 a 151 (original), sendo a reclamação deduzida considerada como reação ao despacho de não admissão proferido no Tribunal da Relação.
A tal não obsta a circunstância de os reclamantes terem interpretado o despacho reclamado como incidente sobre o requerimento de interposição de recurso, que deu entrada em Juízo a 13 de janeiro de 2012, e não - como verdadeiramente é o caso – como decisão relativa a requerimento diverso, que deu entrada em Juízo a 24 de fevereiro de 2011 e que se encontra descrito supra, no ponto 3.
De facto, sendo idêntica a questão de constitucionalidade aludida nos dois requerimentos em análise, e tendo os reclamantes tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a situação exposta, evidenciada no parecer do Ministério Público, consideramos que nada obsta ao conhecimento da reclamação deduzida.
15. Os recorrentes referem pretender a apreciação da constitucionalidade “da norma plasmada no artigo 4º do CP Penal quando permite a convocação do instrumento do mecanismo “incidente manifestamente infundado” do artigo 720.º do Código de Processo Civil em sede de processo penal”, alegando que tal interpretação é inconstitucional “por violação do direito de acesso aos Tribunais e por sacrificar as garantias de defesa do arguido, previstos, respetivamente, nos artigos 20º, n.º 4 e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”
O tribunal a quo, qualificando o recurso como “manifestamente infundado”, proferiu despacho de não admissão.
O Ministério Público manifestou a sua concordância com tal fundamento, pugnado, assim, pela improcedência da reclamação.
Nos termos do n.º 2 do artigo 76.º da LTC, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido quando, tendo este sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º do mesmo diploma, for manifestamente infundado.
A respeito deste conceito, escreveu-se o seguinte, no Acórdão n.º 501/94:
“(…) é fundamental concretizar critérios de aferição do que seja um 'recurso manifestamente infundado' para delimitar tal conceito.
É desde logo evidente que não se pode, em sede de reclamação, antecipar a apreciação do mérito do recurso, procedendo a uma análise circunstanciada dos seus fundamentos. Não constitui objeto da reclamação avaliar a atendibilidade dos fundamentos do recurso, mas apenas apreciar a verificação das condições de admissibilidade do recurso. Em regra, tais condições possuem natureza formal, embora uma delas, concretamente a que ora nos interessa - ou seja, a de o recurso não ser 'manifestamente infundado' -, tenha uma irrecusável componente substantiva, na medida em que impõe uma certa avaliação dos fundamentos do recurso.
Porém, esta avaliação não pode ser idêntica à que teria lugar no julgamento do próprio recurso. Não é por entender que os fundamentos do recurso improcedem que o julgador pode, logo na apreciação da reclamação, considerar o recurso 'manifestamente infundado': por isso, a lei não se basta com que o recurso seja 'infundado', para determinar a não admissão do recurso e o subsequente indeferimento da reclamação, mas exige que o recurso seja 'manifestamente infundado'. Isto significa que o recurso só pode ser indeferido e a reclamação desatendida se uma avaliação sumária dos seus fundamentos permitir concluir, inequivocamente, pela sua inatendibilidade.”
Em sentido concordante, defende-se, no Acórdão n.º 269/94 (disponível no mesmo sítio da internet):
“(…) é 'manifestamente infundado' o recurso cuja inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva.
Isto significa que não há que averiguar se o recurso procede, nem se exige um determinado grau de probabilidade dessa procedência - caso em que se estaria a entrar, profundamente, na apreciação do respetivo mérito. O que o legislador exige é que se verifique, tão-só, se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis.
Daqui decorre que o recurso será, por exemplo, 'manifestamente infundado' quando nele falte qualquer fundamentação (ou seja, não se apresente - nem se vislumbre - argumentação no sentido da alegada inconstitucionalidade) ou quando a fundamentação revele contradições insanáveis de ordem lógica ou valorativa. Nestes casos, uma simples análise sumária ou liminar do requerimento de recurso basta para concluir pelo caráter 'manifestamente infundado' do recurso, sem necessidade de uma apreciação circunstanciada dos fundamentos, ou seja, sem entrar na apreciação do fundo do recurso que é reservada para um momento processual ulterior.”
Ora, no nosso caso, os recorrentes insurgem-se contra o entendimento, extraível da conjugação dos artigos 4.º do Código de Processo Penal e 720.º do Código de Processo Civil, segundo o qual o instrumento de defesa contra demoras abusivas, previsto nesta última disposição legal, é aplicável em processo penal.
É de notar, porém, que a parte substancial da fundamentação aduzida contra o referido entendimento, pelos recorrentes, baseia-se em argumentos hermenêuticos de natureza infra constitucional.
Sendo certo que ao Tribunal Constitucional não compete ajuizar se o critério normativo em análise corresponde à melhor interpretação ao nível do direito processual penal, apenas cumpre apreciar se tal critério enferma do vício de desconformidade com a Lei Fundamental.
O regime previsto no artigo 720.º do Código de Processo Civil insere-se no âmbito do poder-dever do juiz de providenciar pelo andamento regular e célere do processo, obviando a expedientes impertinentes e dilatórios.
Assim, não é logicamente compreensível a alegação de inconstitucionalidade do entendimento que preconiza a aplicabilidade do artigo 720.º do Código de Processo Civil, no âmbito do processo penal, por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Aliás, os recorrentes – que expõem vários argumentos em defesa da tese oposta, em termos infraconstitucionais – não aduzem uma argumentação substantivamente densificada, no âmbito constitucional, que justifique materialmente o juízo de inconstitucionalidade, reportado aos concretos parâmetros da Lei Fundamental, cuja violação é apenas simplisticamente alegada.
Não se percebe em que medida a consagração de um mecanismo, tendente a obviar a comportamentos injustificadamente dilatórios das partes, belisca o direito de acesso ao Direito e aos tribunais, sendo manifesto que o artigo 20.º da Constituição, que expressamente consagra o direito a uma decisão “em prazo razoável”, não abarca, – poderá mesmo dizer-se que, logicamente, exclui - no seu âmbito de proteção, um direito a um uso abusivo do processo, com fins dilatórios, que corresponderia à negação do próprio conceito de processo justo e equitativo.
Da mesma forma, não se compreende que a interpretação normativa posta em crise acarrete qualquer violação dos direitos de defesa do arguido, que não compreendem, logicamente, o reconhecimento de um direito a um uso abusivo do processo ou a expedientes meramente dilatórios.
A este propósito, no âmbito do Acórdão n.º 547/04, que indeferiu reclamação de decisão sumária, cuja fundamentação é transcrita, e em que estava envolvida a execução de uma pena de prisão, pode ler-se o seguinte:
“(…) a questão há de confinar-se, e tão só, à apreciação da harmonia constitucional do preceito ínsito no citado nº 2 do artº 720º do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que, tendo sido, num recurso interposto para o Tribunal Constitucional e onde foi proferida decisão nos termos do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, determinada a extração de traslado e a imediata remessa dos autos ao Tribunal a quo, a decisão de âmbito criminal neste proferida e impositora ao arguido de uma pena privativa de liberdade é de considerar como tendo constituído caso julgado provisório, sujeito à condição resolutiva do que eventualmente vier a ser decidido em contrário pelo Tribunal Constitucional.
Entende-se que a questão de inconstitucionalidade assim delineada é manifestamente infundada (…).
(…) não se pode olvidar que aquele nº 2 do artº 720º, para além de dele decorrer que do mesmo só se lançará mão em situações excecionais e devidamente ponderadas, insere-se, (…) numa perspetiva de ‘respeito pelas decisões dos órgãos jurisdicionais’ e de uma ‘forte probabilidade’ de a decisão tomada já pelo tribunal de recurso (…) não vir a ser alterada.
Ora, esta mencionada característica de «provisoriedade» do caso julgado condenatório, os cuidados, a excecionalidade da medida, e o respeito devido às decisões tomadas pelo último dos tribunais de recurso que estão implicados na norma do nº 2 do artº 720º do Código de Processo Civil e, por fim, a forte probabilidade de não vir a ser alterado o julgado do tribunal de recurso, confirmativo da decisão impugnada que impôs a pena de prisão, apontam para que a interpretação conferida ao referenciado preceito, quando aplicado a uma situação em que está em causa uma sentença penal condenatória em pena de prisão, para efeitos de ser essa pena executada, se não vislumbre como desproporcionadamente restritora do direito à liberdade ou da garantia da presunção de inocência, tendo, além disso, na sua base, a proteção de valores a que a Lei Fundamental não pode ser indiferente.
Por outra banda, não está identicamente posto em causa o asseguramento de todas as garantias do processo criminal, incluindo o direito ao recurso, postulado pela Lei Fundamental.
Com o sentido interpretativo em crise não só se não impede que o tribunal de recurso vá analisar as questões suscitadas após já ter sido tomada a sua decisão confirmativa da sentença impugnada que impôs a pena de prisão, como se deixa em aberto que, se porventura na sequência dessa análise, vier a alterar o anteriormente decidido, será dado sem efeito tudo o que foi praticado nos autos no tribunal recorrido em função da execução da sentença. Neste particular, essa hipotética alteração vai atuar como se se tratasse de um «recurso de revisão».
(…)
Aliás, não deverá passar-se em claro que em países com arreigada tradição democrática, assumidamente estados de direito democrático e em que o princípio de presunção de inocência não têm menor valia fundamental do que aquela consagrada constitucionalmente em Portugal, preveem, nos respetivos ordenamentos, que, uma vez proferida sentença condenatória em pena de prisão, mesmo que dela tenha sido interposto recurso, o arguido, que até então se encontrava detido, e na situação de privação de liberdade continuará após a interposição de recurso, se considera em cumprimento de pena, não lhe sendo conferido o estatuto de preso preventivamente.”
Face a todas as considerações expendidas, ao abrigo do n.º 2 do artigo 76.º da LTC, in fine, não se admite o recurso interposto, julgando-se, em conformidade, improcedente a reclamação deduzida por A. e B..
III - Decisão
16. Nestes termos, decide-se:
- julgar improcedentes as reclamações deduzidas.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de julho de 2012 – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos