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Proc. nº 74/98
2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Por sentença de 22 de Outubro de 1997, do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, foi R... condenado, como autor de um crime de furto essencialmente militar, previsto e punível pelo artigo 201º, nº 1, alínea b) do Código de Justiça Militar, na pena extraordinariamente atenuada de um ano de presídio militar.
Inconformado, o Promotor de Justiça interpôs recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal Militar, considerando que a pena aplicada fora excessivamente benévola, não devendo a mesma baixar da moldura penal constante do artigo 201º, nº 1, alínea b) do CJM.
Por sua vez, o arguido interpôs também recurso dessa decisão. Nas suas alegações, suscitou três questões de constitucionalidade.
Em primeiro lugar, suscitou a questão de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 309º e 313º do CJM, relativamente à competência dos tribunais militares; seguiu-se a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 258º do CJM, relativa ao defensor militar, por «não assegurar o direito à defesa consagrado no artigo 32 nº 3 da Constituição»; e, por fim, a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 201º do CJM, por violação dos artigos 3º, nº 2, 13º, nº 1 e 213º da Constituição na medida em que a pena nele prevista para a prática do crime de furto se revelava discriminatória e desproporcionada face ao regime penal comum.
Por sua vez, o Promotor de Justiça concluiu as respectivas contra-alegações pela forma seguinte:
1- A lei constitucional nº 1/97 de 20 de Setembro mantém em funções os Tribunais Militares, aplicando as disposições legais vigentes pelo que não verifica qualquer inconstitucionalidade, nestes autos.
2- O réu foi defendido em audiência por um Capitão licenciado em direito, totalmente independente no exercício das suas funções.
3- O artigo 201 do Código de Justiça Militar ao punir o crime de furto diversamente da legislação penal comum tem em atenção a especial acessibilidade e a especial afectação das coisas militares, pelo que não sofre de qualquer inconstitucionalidade.
2. Já no Supremo Tribunal Militar, o Promotor, no seu parecer, pronunciou-se no sentido da competência dos tribunais militares, porquanto se tratava de um crime essencialmente militar, «assim qualificado pelo CJM», e ainda, no tocante aos artigos 309º e 313º do CJM, sustentou não se verificar qualquer inconstitucionalidade dos mesmos, já que ainda não foi publicada a legislação regulamentadora prevista no artigo 197º da Lei Constitucional nº
1/97.
Relativamente à segunda questão, considerando, antes de mais, que a eventual violação se referiria ao nº 1 e não ao nº 3 do artigo 32º da Constituição, entendeu que a mesma se não verificava, desde logo porquanto o nº
2 do artigo 258º do CJM prevê que se privilegie, na nomeação de defensor oficioso, a posse de conhecimentos jurídicos, verificando-se ainda que os defensores que exercem funções nos Tribunais Militares Territoriais de Lisboa são todos licenciados em Direito; quanto ao aspectos da diferenciação de patentes e da dependência hierárquica entre o acusador e o defensor, considerou ainda improcedente tal questão, uma vez que o artigo 264º do CJM prevê a independência do defensor.
Por fim, com referência à questão de inconstitucionalidade do artigo
201º, nº 1, alínea b), do CJM, entendeu que «a partir da entrada em vigor do novo Código Penal passou a haver desproporcionalidade entre os dois regimes penais», o que seria violador dos artigos 18º, nº 2 e 13º da CRP, concluindo pela inconstitucionalidade da norma, mas apenas «na parte em que fixa a medida da pena abstracta do crime de furto de bens militares».
3. Por acórdão de 15 de Janeiro de 1998, o Supremo Tribunal Militar, concedendo provimento parcial ao recurso do arguido, julgou inconstitucional
«por violação dos princípios conjugados da proporcionalidade e da igualdade, consagrados nos art.ºs 18 nº 2 e 13 da CRP, o segmento da norma constante da al. b) do nº 1 do art. 201 do CJM, na parte em que fixa a medida da pena abstracta do crime de furto de bens militares». Condenou, assim, o arguido na pena de um ano de prisão, substituída por igual período de presídio militar, e, no mais, negou provimento a ambos os recursos.
4. É desta decisão que vêm interpostos os presentes recursos, do MP, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da LTC, por no acórdão recorrido «ter sido recusada a aplicação do segmento da norma constante da alínea b), do nº 1, do artigo 201º, do CJM, com fundamento na sua inconstitucionalidade», e do arguido, este ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação das seguintes questões de inconstitucionalidade:
- dos artigos 309º e 311º do CJM, «na medida em que definem a competência dos tribunais militares como a de conhecerem de crimes essencialmente militares, quando estes, mesmo em tempo de paz, só podem conhecer de crimes estritamente militares»,
- da norma constante do artigo 258º do CJM, «na medida em que o defensor aí consagrado não é idóneo e não garante todas condições de defesa exigidas pelo artigo 32º nº 1 e 3 da Constituição»;
- do artigo 201º do CJM, «dado que a medida legal da pena nele consagrada viola a regra da igualdade entre os cidadãos da República, prescrita pelos artigos 3º nº 2; 13º nº 1 e o 213º da Constituição e porque o crime de furto não é um crime estritamente militar»;
e, por fim, «por força da presente decisão do Venerando Tribunal Militar o artigo 35º do Código de Justiça Militar, porque quando o mesmo se adiciona à aplicação do artigo 203º do Código Penal, ao proibir a suspensão da pena de prisão, viola a regra da igualdade dos cidadãos portugueses perante a Lei, consagrada nos artigos 3º nº 2; 13º nº 1 e o 213º da Constituição da República».
5. Já neste Tribunal, o Ministério Público concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
É inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, em articulação, a norma do artigo 201º, nº 1, alínea b), do Código de Justiça Militar, na parte em que estabelece pena desproporcionadamente superior às previstas para o mesmo tipo de crime no Código Penal.
Por sua vez, o recorrente arguido formulou as seguintes conclusões:
Por força da entrada em vigor da Lei Constitucional nº 1/97 de 20 de Setembro passaram a ser inconstitucionais os seguintes artigos do Código de Justiça Militar: 309º e 313º, na medida em que definem a competência dos tribunais militares como podendo conhecer, em tempo de paz, de crimes que não são, por natureza, estritamente militares.
Esta incompetência dos Tribunais Militares, para julgarem crimes que não são, por natureza, estritamente militares, gera a incapacidade dos mesmos para julgarem o crime previsto no artigo 201º do Código de Justiça Militar e a nulidade de todo o processado, quer do processado no Tribunal Territorial de Lisboa, quer do processado no Supremo Tribunal Militar.
Assim, conclui-se que o artigo 201º, nas suas alíneas a) a e), é inconstitucional, dado nessas alíneas se estipularem medidas legais de pena imensamente superiores às que são aplicáveis pelo Código Penal, a condutas iguais às previstas no Código de Justiça Militar. Esta desproporção viola os artigos 3º, nº 2 e 13º, nº 1 e 213º da Constituição da República.
O mesmo, artigo legal é, ainda, inconstitucional na própria definição do tipo legal, isto é, no próprio corpo do artigo dado que: não estamos perante um crime, por natureza, estritamente militar; logo, nos termos das disposições da Lei Constitucional nº 1/97 de 20 de Setembro, já citadas, o Código de Justiça Militar não pode qualificar como crime, por natureza estritamente militar, um simples crime de furto, ao fazê-lo, viola expressamente as já citadas disposições da lei constitucional nº 1/97 de 20 de Setembro.
O artigo 258º do Código de Justiça Militar, na parte em que obriga a que o defensor oficioso seja um membro das forças armadas, de patente igual a capitão ou tenente, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição. A instituição militar não pode: investigar, acusar, julgar, defender, mesmo que seja título oficioso, e prender.
O artigo 35º do Código de Justiça Militar é inconstitucional, por violar, as disposições dos artigos 3º, nº 1, 13º, nº 1 e 213º da Constituição. Efectivamente a regra do tratamento igual em circunstâncias iguais é flagrantemente violada pela disposição que, pura e simplesmente, em termos universais, proíbe a suspensão da medida da pena aplicada.
O Ministério Público, nas respectivas contra-alegações, formulou as seguintes conclusões:
1º - Não deverá conhecer-se do recurso relativamente à questão de inconstitucionalidade das alíneas a), c), d) e e) do artigo 201º do Código de Justiça Militar, por tais normas não terem sido aplicadas pela decisão recorrida.
2º - Também não deverá conhecer-se do recurso quanto à questão de inconstitucionalidade do artigo 35º do mesmo código, por não ter sido suscitada
'durante o processo'.
3º - A disposição transitória constante do artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro, faz depender a cessação de funções dos tribunais militares da entrada em vigor da lei que vier regulamentar a composição dos tribunais que julguem crimes de natureza estritamente militar.
Competindo aos tribunais judiciais o julgamento dos crimes estritamente militares (logo que regulamentada a sua composição), e não aos actuais tribunais militares, improcede a alegação do recorrente de que são inconstitucionais os artigos 309º e 313º do Código de Justiça Militar.
4º - O artigo 258º do Código de Justiça Militar, ao prever para o arguido um defensor oficioso que, tal como o promotor de justiça, é membro das forças armadas, podendo ser de patente inferior à daquele, não viola os direitos de defesa constitucionalmente consagrados, por estar garantida ao defensor uma posição jurídica materialmente independente.
5º - Face às razões aduzidas pelo recorrente, o corpo do artigo 201º do Código de Justiça Militar, não se mostra constitucionalmente censurável.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
6. Antes de mais, há que proceder à delimitação do objecto do recurso.
Desde logo, no tocante aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido, cabe assinalar que, relativamente à norma do artigo
201º, nº 1, do Código de Justiça Militar, apenas o do Ministério Público - interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, ou seja, com fundamento na recusa de aplicação da norma pelo Tribunal a quo - pode ser objecto de conhecimento por este Tribunal.
Com efeito, o recurso do arguido, interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, só poderia ter por objecto norma ou normas jurídicas concretamente aplicadas pela decisão recorrida, pelo que apenas a alínea b) daquele artigo 201º do CJM poderia estar em causa, não tendo as outras alíneas sido aplicadas na decisão recorrida, por nem serem aplicáveis ao caso concreto. Ora, quanto a essa alínea b), e relativamente à parte em que se fixa a medida da pena, o tribunal recusou a sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, sendo certo que, nessa conformidade, nunca se poderia o recurso fundamentar na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC (nem, por outro lado, se poderia o recorrente abrigar na alínea a) do mesmo artigo, carecendo de qualquer interesse em agir para o efeito); e, quanto à parte em que se contesta a suposta qualificação do crime previsto na mesma alínea b) como crime estritamente militar, a verdade é que tal questão se reconduz à da também invocada inconstitucionalidade dos artigos 309º e 313º do CJM (competência dos tribunais militares).
Assim, relativamente à norma constante do artigo 201º do CJM, apenas se irá conhecer do recurso do Ministério Público, com fundamento na recusa da aplicação, pelo tribunal a quo da sua alínea b).
7. Por outro lado, não se pode tomar conhecimento do recurso referente à norma constante do artigo 35º do Código de Justiça Militar.
Com efeito, o recorrente apenas suscitou tal questão de inconstitucionalidade no requerimento de interposição do presente recurso, ou seja, em momento já não idóneo para abrir a via do recurso de constitucionalidade. Com efeito, é pressuposto deste, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado norma ou normas jurídicas cuja inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo.
Ora, a questão da suspensão da pena de prisão ao arguido nunca foi discutida nos autos, pelo que nem se pode afirmar que o tribunal a quo tenha
-aplicado a norma, nessa dimensão, nem se verifica que a questão tenha sido oportunamente suscitada pelo ora recorrente.
8. Passando a analisar a questão de inconstitucionalidade relativa
às normas constantes dos artigos 309º e 313º do CJM, cumpre reconhecer que a competência dos tribunais militares se encontra, depois da última revisão constitucional, restringida no artigo 213º da Constituição da República, ao julgamento de crimes estritamente militares e apenas durante a vigência do estado de guerra.
No entanto, nos termos do artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97,
«os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no nº 3 do artigo 211º da Constituição», pelo que se mantém transitoriamente inalterada a competência daqueles tribunais até à data da entrada em vigor da legislação que vier regulamentar a composição dos tribunais judiciais que julguem crimes de natureza estritamente militar. Esse o sentido da permanência em funções dos tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, o que só pode significar a manutenção do Código de Justiça Militar (em tudo o que não fosse já inconstitucional, face à versão anterior da Lei Fundamental).
Não sofrem, assim, os artigos 309º e 313º do CJM de qualquer inconstitucionalidade.
9. O recorrente suscitou, ainda, a questão de inconstitucionalidade referente à norma constante do artigo 258º do CJM, «na parte em que obriga que o defensor oficioso seja um membro das forças armadas», o que acarretaria a sua falta de idoneidade, não garantindo as condições de defesa.
A propósito da norma paralela constante do artigo 347º, nº 2, do CJM, afirmou-se, no Acórdão nº 34/96 (Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1996):
Porém, o plano para que o Supremo Tribunal Militar remete a questão invocada - um juízo de experiência sobre a competência do defensor militar e a sua melhor adequação ao processo penal militar - não revela uma razão decisiva à luz da Constituição. Na verdade, a competência exigida para a cabal realização do direito de defesa situa-se no plano dos conhecimentos jurídicos. O direito infra-constitucional reconhece-o claramente ao determinar que o juiz, em processo penal, nomeará como defensor do arguido que não constitua advogado, de preferência, um advogado ou advogado estagiário (artigo 62º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Não pode presumir-se que a experiência dos oficiais das Forças Armadas, só ocasionalmente juristas, é sempre suficiente para garantir o direito de defesa, nem se poderá presumir a menor competência de juristas não militares. A competência afere-se pelos conhecimentos jurídicos e não por outro saber técnico, para o qual se faz normalmente apelo através da prova pericial (artigo
151º e ss. do Código de Processo Penal).
[...] Por outro lado, a matéria dos crimes essencialmente militares não é, indiscutivelmente, a de '... infracções disciplinares militares caracterizadas como crimes pela sua gravidade e lesão social'. Um tal entendimento, podendo confundir ilegitimamente infracção disciplinar e crime não considera que, num Estado de direito democrático, crime é aquele comportamento que viola directamente uma ordem externa da sociedade e nunca, apenas, a ordem interna de uma instituição (assim, muito claramente, Stratenwerth Strafrecht, Allgemeiner Teil, 3ª ed., 1981, p. 31: '... o direito disciplinar não tem a ver com a ordem exterior, mas sim com a integridade e a fiabilidade da pessoa').
Há, deste modo, uma continuidade de natureza entre os crimes essencialmente militares e os crimes comuns, imposta pelo princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18º, nº 2, da Constituição), que constitui emanação do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição). A questão penal num Estado de direito democrático é só uma, apesar das suas diversas especializações.
O patrocínio judiciário, como instituto ao serviço das garantias de defesa, não é confundível com a prova pericial nem pode ser comprimido pela prossecução simultânea de fins disciplinares. Na nomeação de defensor deve privilegiar-se - também no processo penal militar - a posse de conhecimentos jurídicos. E, decisivamente, é condição necessária do exercício das garantias de defesa a independência do defensor do arguido.
Acontece, porém, que, in casu, como resulta dos autos, o defensor oficioso era um oficial das Forças Armadas licenciado em Direito, possuidor, portanto, de conhecimentos jurídicos, não tendo, pois, a norma em causa sido aplicada na dimensão em que se permite que a defesa seja assegurada por quem não garanta que o arguido disponha de uma defesa efectuada com o «saber técnico» adequado. Por outro lado, o defensor oficioso – que não exclui o direito de constituir advogado - actua com garantias de independência, nos termos do artigo
264º do CJM, onde se dispõe que «no exercício das suas funções, o defensor oficioso está unicamente subordinado à lei e aos ditames da sua consciência, defendendo os interesses legítimos do réu e tendo em vista a causa da verdade e da justiça».
Nesta conformidade, não se pode concluir pela inconstitucionalidade da norma em questão, na estrita dimensão em que foi aplicada.
10. Por fim, no tocante ao artigo 201º, nº 1, alínea b), do CJM, já este Tribunal teve ocasião de se pronunciar no Acórdão nº 334/98 (Diário da República, II Série, de 27 de Novembro de 1998). Aí se concluiu pela inconstitucionalidade desta norma, tendo-se afirmado o seguinte:
Assim, a fundamentação material bastante para uma diferente perspectiva na dosimetria abstracta da punição do furto no âmbito militar quando comparada com a fixada para o direito penal comum pode encontrar-se na diversa caracterização da comunidade civil quando comparada com a comunidade militar, fazendo esta apelo a deveres militares e a valores como a segurança e a disciplina das Forças Armadas e ainda a interesses militares de defesa nacional.
Porém, se em abstracto, tais referências podem dar consistência a uma justificação material para um tratamento diferente, todavia, esta diferenciação não pode deixar de respeitar o princípio da proporcionalidade implícito no artigo 18º, nº 2, segunda parte, da Constituição. Como se escreveu no Acórdão nº 958/96, atrás referido, 'A relevância do princípio da igualdade como critério de constitucionalidade das medidas legais das penas é, consequentemente, filtrada por uma complexa teia de condicionantes que impedem nivelações de sanções com base em abstractos juízos de valor orientados apenas pela importância objectiva dos bens jurídicos protegidos'.
Assim, e voltando ao caso concreto em apreço, temos que a pena prevista no Código de Justiça Militar para o crime de furto de objectos, se o respectivo valor for superior a 120 contos e não exceder 1.000 contos é a de prisão de oito a doze anos; no Código Penal, a pena para o furto qualificado, se o valor do objecto for consideravelmente elevado, é a de prisão de dois a oito anos.
Desta comparação ressalta claramente que o mínimo da pena do CJM corresponde ao máximo da pena comum (sendo certo que o 'fosso' ainda se alarga mais se se considerar quer o furto simples quer o furto qualificado de valor elevado - prisão até três anos ou com pena de multa e prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias).
Resulta, por consequência, claro, da comparação entre os dois regimes punitivos que, ao menos nos limites mínimos, o CJM dá um tratamento desproporcionadamente diferente a uma ilicitude material paralela, o que permite afirmar-se a existência de uma violação dos princípios conjugados da igualdade e da proporcionalidade.
É essa jurisprudência que aqui se reitera, sendo certo que, in casu, dado o valor dos objectos furtados, como se assinala no acórdão recorrido, é particularmente chocante a desproporção entre a pena prevista na norma impugnada
– oito a doze anos de prisão – e a pena prevista no Código Penal – prisão até três anos ou multa.
III – DECISÃO
11. Nestes termos, decide-se:
a) não tomar conhecimento do recurso relativamente às normas do artigo 35º e às alíneas a), c), d) e e) do nº 1 do artigo 201º do CJM;
b) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos
258º e 309º e 313º do CJM;
c) julgar inconstitucional a norma do artigo 201º, nº 1, alínea b), do CJM, na parte em que estabelece a medida da pena em oito a doze anos de prisão, por violação dos princípios conjugados da igualdade e da proporcionalidade;
d) consequentemente, negar provimento aos recursos, na parte em que deles se toma conhecimento.
Lisboa, 23 de Junho de 1999 Luís Nunes de Almeida Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa