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Proc. nº 11/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
F..., AG..., AR..., MP... e MC..., com os sinais dos autos, intentaram acção declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, com processo ordinário, contra o Estado Português, pedindo a declaração de nulidade do despedimento das AA. e a condenação do R. a pagar às AA. as prestações pecuniárias que se venceram desde a data do despedimento até decisão final e a reintegrar as AA. no seu posto de trabalho com a antiguidade a que tinham direito.
A acção foi julgada procedente e provada por sentença do Tribunal de Trabalho de Sintra (fls. 165 e segs.) que declarou ilícito o despedimento e condenou o Estado a reintegrar as AA. nos seus postos de trabalho com a antiguidade a que tinham direito e a pagar determinadas quantias às AA. a título de retribuições que deixaram de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença.
Desta sentença interpôs recurso o R. Estado para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de fls. 199 e segs., confirmou a decisão impugnada.
Inconformado, o Estado recorreu para o STJ, concluindo nos seguintes termos:
'Decidiu-se no douto acórdão recorrido que o contrato de trabalho a termo celebrado pelas autoras com o Estado se converteu em contrato de trabalho sem termo e, nesse pressuposto, que as mesmas autoras terão sido ilicitamente despedidas. Daí ter sido o Estado condenado nos termos gerais previstos no art. 13º do DL nº. 64-A/89, de 27-2. Entendemos, todavia, e salvo o devido respeito, que o douto acórdão recorrido não fez correcta aplicação do direito vigente aos factos provados, devendo, por isso ser revogado. Dão-se aqui por reproduzidas, por óbvias razões de economia, todas as lúcidas considerações já avançadas nas doutas alegações apresentadas pelo Ministério Público aquando do recurso de apelação, tendentes à demonstração de que não é admissível a prestação de trabalho subordinado na Administração Pública na modalidade de contrato de trabalho sem termo, ainda que pela via da conversão legal do contrato a termo certo. Nesse sentido, aliás, se tem pronunciado esse Supremo Tribunal em já numerosos arestos, alguns deles reverencialmente citados no douto acórdão agora em revista. Acresce que a solução adoptada no douto acórdão em recurso assenta numa interpretação inconstitucional do art. 14º do Decreto-Lei nº. 427/89, de 7-12, já que afronta o princípio geral da igualdade, princípio geral reafirmado, depois, no art. 47º, nº. 2, da Constituição da República, no que especificamente respeita ao acesso à função pública. Assenta, por outro lado, na atribuição de um conteúdo inconstitucional aos arts.
41º, 42º e 47º do DL 64-A/89 (diz-se, por lapso, 64-A/79), de 27-2, em conjugação com o disposto no art. 14º, nº. 3 do DL 427/89, na medida, em que, desse modo, se permitiria invadir, sem autorização legislativa da Assembleia da República, as bases do âmbito e regime da função pública, matéria que se integra na reserva relativa de competência daquela Assembleia. (alínea v) – do art. 168º da CR). Assim e concluindo:
1ª - A relação jurídica de emprego na função pública, apenas se pode constituir por nomeação e contrato de pessoal, podendo este revestir as formas de contrato administrativo de provimento e contrato de trabalho a termo certo.
2ª - O contrato de trabalho a termo rege-se pela lei geral sobre contratos a termo certo, com as especialidades constantes do DL nº. 427/89, de 7-12.
3ª - Ora, uma das óbvias especialidades desse diploma legal é a de não permitir a constituição de relações de emprego público fora do quadro de modalidades nele previstas.
4ª - Não sendo admissível, na Administração Pública, a celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado, é igualmente inaceitável a conversão de contratos a termo em contrato de trabalho sem termo.
5ª - Interpretação diversa, com a adoptada no douto acórdão recorrido, ofende, não só o princípio da igualdade dos cidadãos no acesso à função pública (art.
13º e 47º, 2 da C.R.), mas a reserva relativa da Assembleia da República (art.
168º, 1, v)- da C.R.) ao conferir aos arts. 41º, 42º e 47º do DL nº. 64-A/89
(diz-se, por lapso, 64-A/79), de 27-2, em conjugação com o disposto no art. 14º, nº. 3 do DL nº. 427/89, um alcance que se traduziria na invasão, sem autorização legislativa, quanto às bases do âmbito e regime da função pública.
6ª - Os contratos das autoras, ora recorridas, terminado o período legalmente admissível da sua renovação, entraram em colisão com norma legal imperativa, devendo, por isso, ser qualificados como nulos.
7ª - Assim sendo, a sua cessação não pode de modo algum configurar um despedimento, muito menos um despedimento ilícito, não cabendo, por isso, às autoras nem o direito à reintegração, nem o direito às retribuições, previstos no art. 13º do DL nº. 64-A/89, de 29-2.
8ª - O douto acórdão em revista violou, por erro de interpretação, e por inconstitucionalidade material e orgânica, o art. 14º nº. 3 do DL nº. 427/89, de
7-12, conjugado com os arts. 41º, 42º e 47º do DL nº. 64-A/89, de 29-2.'
Em contra-alegações, concluíram as recorridas, nos seguintes termos:
'1ª A Administração Pública não está proibida por lei de celebrar contratos de trabalho sem termo.
2ª Desde logo porque, nos termos do art. 11º da lei de Bases do Emprego Público, Remunerações e Gestão de Pessoal (DL 184/89) pode contratar com empresas a prestação de certas actividades laborais, as quais, assim, passam a ser directamente prestadas à Administração por trabalhadores em regime de contrato de trabalho, o qual pode ser com ou sem termo.
3ª Ou seja, onde cabe o mais cabe o menos, não fazendo sentido que a Administração possa contratar indirectamente o trabalho de trabalhadores em regime de contrato de trabalho sem termo e que não o possa fazer directamente.
4ª Acresce que, como é entendimento pacífico de doutrina há que distinguir entre actos de gestão públicos e actos de gestão privada, nada na lei impedindo que se aplique à Administração o regime da LCT, havendo até várias situações em que os contratos de trabalho sem termo são a solução imposta legalmente, de que é exemplo a solução prevista no art. 1º do DL 108/95, de 20/5.
5ª Os DL 184/89 e 427/89 visam regular realidade diferente da que está em discussão nos autos, isto é, visam regular o regime de emprego público e não incluem a proibição de, em certos casos, a Administração estabelecer contratos de trabalho sem termo.
6ª Como resulta da matéria dada como provada, as categorias das AA., aqui recorridas, não incluem funções que, pela sua natureza, as investisse em poderes de autoridade, única situação em que se poderia admitir estar afastada a possibilidade do contrato de trabalho sem termo.
7ª A relação jurídica entre as AA. e o R. Estado é, por isso, uma relação de trabalho e, por tudo o mais que ficou provado nos autos, deu-se a conversão dos seus contratos em contratos de trabalho sem termo, pelo que, assim sendo, o despedimento das AA. a que o R. Estado procedeu é ilícito.
8ª Assim não se entendendo e aplicando-se o regime de nulidade do art. 15º da LCT e dos arts. 280º e 294º do CC, estas normas assim interpretadas violariam os princípios constitucionais da protecção da confiança, da boa-fé, da igualdade e da segurança no emprego, regulados, nomeadamente, nos arts. 266º, 58º/1, 13º e
53º da CRP.
9ª Todavia, no caso em apreço é possível, se seguir esta via de solução do problema, uma interpretação das normas legais sobre a invalidade que seja conforme à Constituição.
10ª Tal interpretação é aquela que permite o aproveitamento do negócio jurídico em causa com base na vontade das partes.'
Decisivamente fundado no disposto nos artigos 1º, 3º, 14º nº. 1 e 43º do DL
427/89, de que resultaria a impossibilidade de constituição de uma relação de carácter subordinado, sem termo, no âmbito da Administração Pública – no que redundaria a admissibilidade de conversão de contratos de trabalho a termo certo em contratos sem termo – o STJ, por acórdão de fls. 230 e segs., concedeu a revista e revogou o acórdão recorrido e a sentença por ele confirmada, absolvendo o R. dos pedidos.
Deste acórdão interpuseram as AA. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82.
Conforme o respectivo requerimento de interposição (fls. 244) pretendem as recorrentes a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 14º nºs.
1 e 3, 18º nº. 1, 20º nº. 2 e 43º do DL 427/86 'quando interpretadas no sentido que lhes foi dado no referido aresto', normas essas que violariam as normas dos artigos 2º, 13º, 53º, 58º nº. 1 e 266º nº. 2 da CRP.
Ainda de acordo com o mesmo requerimento, a questão da inconstitucionalidade teria sido suscitada pelas recorrentes nas contra-alegações de recurso para o STJ.
Nas alegações as recorrentes apresentaram as seguintes conclusões:
'1ª O Acórdão recorrido, com base nas normas dos artigos 14º nºs. 1 e 3, 18º nº.
1, 20º nº. 2 e 43º do Decreto-Lei nº. 427/89, de 7 de Dezembro, decidiu que a Administração não podia celebrar com as recorrentes contratos a termo certo para satisfação de necessidades permanentes e que ao fazê-lo os contratos são nulos, nos termos dos artigos 286º e 294º do Código Civil, o que significa que teve na base o princípio da impossibilidade legal de conversão do contrato de trabalho a termo certo em contrato de trabalho sem termo.
2ª As normas dos artigos 14º nºs. 1 e 3, 18º nº. 1, 20º nº. 2 e 43º do Decreto-Lei nº. 427/89, na interpretação e aplicação que delas fez o douto Acórdão recorrido, são inconstitucionais por ofensa ao que promana dos referidos artigos 2º, 13º e 53º, 58º, nº. 1 e 266º, nº. 2 da CRP.
3ª Por consequência, devem julgar-se inconstitucionais as referidas normas na interpretação e aplicação delas feita pelo Acórdão recorrido quanto à impossibilidade de conversão do contrato de trabalho a termo certo das recorrentes em contratos de trabalho sem termo e quanto à nulidade do mesmo contrato.'
Em contra-alegações concluiu o Estado:
'1º - Não tendo as recorrentes suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade do 'bloco normativo' a que reportam o presente recurso e sendo a sua aplicação pelo Supremo Tribunal de Justiça previsível, falta um essencial pressuposto do recurso interposto, fundado na al. b) do nº. 1 do art.
70º da Lei nº. 28/82.
2º - A interpretação normativa dos artigos 14º, nº.s 1 e 3, 18º e 43º, nº. 1 do Decreto-Lei nº. 427/89, traduzida em considerar que a aplicação subsidiária da lei geral sobre contratos de trabalho a termo certo aos contratos dessa natureza celebrados ou mantidos irregularmente pela Administração – e, nulos, nos termos do artigo 294º do Código Civil – envolve a própria convertibilidade de tais relações laborais, necessariamente precárias e provisórias, em permanentes, de modo a facultar a reintegração, sem qualquer limite temporal, do trabalhador no seu 'posto de trabalho' – admitindo-se, por esta via, a constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública por uma forma não constante da enumeração taxativa que, a título claramente imperativo, consta dos artigos 3º e
14º do citado diploma legal – viola o princípio constitucional do acesso igualitário e não discricionário à função pública e a regra do concurso (artigo
47º, nº. 2, da Constituição da República Portuguesa).
3º - Na verdade, tal interpretação, ao criar inovatoriamente e contra lei expressa, uma via sucedânea de acesso, a título tendencialmente perpétuo e definitivo, ao emprego na Administração Pública permitindo que pessoal irregularmente contratado, com base num processo de selecção precário e sumário, veja consolidada a relação de emprego, ao abrigo da 'convertibilidade' de uma situação irregular em relação laboral permanente e duradoura propiciaria que, em verdadeira fraude à lei, os quadros de pessoal pudessem vir a ser providos, a título definitivo, sem qualquer precedência do concurso constitucional e legalmente exigido.
4º - Não constitui violação do princípio da igualdade, nem atenta contra o direito à segurança no em prego, a circunstância de estarem legalmente instituídos regimes específicos para os contratos de pessoal no âmbito da relação de emprego na Administração Pública, substancialmente diferenciados do regime geral vigente no direito laboral comum e adequados ao cumprimento das exigências formuladas pelo nº. 2 do artigo 47º da Lei Fundamental.
5º - Termos em que não deverá conhecer-se do recurso ou – subsidiariamente – deverá julgar-se o mesmo improcedente, confirmando-se inteiramente a decisão recorrida.'
Ordenada a notificação dos recorrentes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão prévia suscitada nas contra-alegações e sintetizada na respectiva conclusão 1ª, supra transcrita, nada disseram.
Cumpre decidir.
Sustenta o Exmo. Magistrado do Ministério Público , em representação do Estado, que as recorrentes não suscitaram a questão de constitucionalidade, que submetem
à apreciação deste Tribunal, durante o processo, só o tendo feito no requerimento de interposição do recurso.
Se assim for, não se mostra preenchido um dos requisitos do recurso previsto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82.
Na verdade, impõe o preceito citado que a questão de inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida haja sido suscitada durante o processo, o que vem sendo pacificamente entendido neste Tribunal, como exigindo que a recorrente (do recurso de constitucionalidade) tenha suscitado a questão num momento que, atendendo aos poderes de cognição do tribunal 'a quo', possibilite a esse tribunal a devida pronúncia.
Daí que não seja já oportuna a suscitação da questão no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, princípio a que apenas se tem aberto a excepção de a decisão recorrida constituir uma 'decisão-surpresa' , isto é uma decisão que razoavelmente a recorrente não podia prever, não lhe sendo exigível, portanto, um juízo de prognose que a 'antecipasse' para então suscitar a questão de inconstitucionalidade.
Não é, porém, o caso, pois a decisão recorrida insere-se numa linha jurisprudencial conhecida do STJ, como aliás logo se advertia no acórdão da Relação de Lisboa revogado, com a citação expressa do acórdão do STJ de 8/3/96 publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ – tomo 2, 1996.
Não se valeram as recorrentes daquela excepção pois, como se disse, indicaram, no requerimento de interposição de recurso, a peça processual em que teriam suscitado a questão de inconstitucionalidade, as contra-alegações no recurso interposto pelo Estado para o STJ.
E era esse, de facto, o momento adequado para o efeito já que, vencedoras em 1ª e 2ª instâncias, as recorrentes se confrontavam com a invocação das normas do DL nº. 427/89 (particularmente as dos artigos 14º e 43º deste diploma legal) no recurso de revista interposto pelo Estado para fundamentar a pretendida revogação do acórdão da Relação de Lisboa.
Necessário era que, a terem suscitado questão de inconstitucionalidade, as recorrentes se tivessem reportado às normas ou ao 'bloco normativo' cuja constitucionalidade, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, delimitador do objecto do recurso, pretendem ver apreciadas pelo mesmo Tribunal.
Essas normas (ou 'bloco normativo') eram – repete-se – as dos artigos 14º nº.s 1 e 3, 18º nº. 1, 20º nº. 2 e 43º do DL nº. 427/89.
Ora, como bem assinala o Exmo. Magistrado do Ministério Público, em contra-alegações do Estado, as recorrentes suscitaram na sua referida peça processual (contra-alegações no recurso para o STJ) a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 15º da LCT e 280º e 294º do Código Civil, por violação dos princípios da protecção da confiança, da segurança do emprego, da igualdade, quando entendidas no sentido de ser aplicável à situação das outras o regime de nulidade do contrato de trabalho (conclusão 8ª).
Mas não é este o bloco normativo que, como 'ratio decidendi', foi aplicado no acórdão recorrido, como aliás as recorrentes bem se aperceberam ao indicar as normas supra referidas e relativamente às quais nenhuma questão de constitucionalidade suscitaram no recurso para o STJ, quando era nelas e com a interpretação acolhida no acórdão impugnado que o Estado fundamentava o recurso de revista.
Previsível que era a aplicação, pelo STJ, das mesmas normas com o entendimento sustentado pelo Estado recorrente, não se pode, assim, julgar verificado o pressuposto do recurso previsto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82 – suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo.
3 – Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso por desrespeito do disposto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº.
28/82.
Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs, a cobrar nos termos do artigo 54º nº. 1 do DL nº. 387-B/87.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida