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Proc. nº 317/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. H... reclamou para a conferência da decisão sumária de fls. 109 e seguintes, na qual se decidiu, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não conhecer do objecto do recurso por si interposto para este tribunal. O objecto desse recurso encontra-se delimitado no correspondente requerimento
(fls. 106), traduzindo-se num pedido de 'declaração de inconstitucionalidade do art. 283º, n.º 3, alínea g), do Código de Processo Penal, pelo menos com a interpretação que lhe foi dada pela douta decisão recorrida, ao considerar satisfeita a exigência de assinatura da acusação com a aposição de uma mera rubrica'.
2. Na sua reclamação (fls. 119 e seguintes), H... aduz basicamente os seguintes argumentos no sentido da revogação dessa decisão: a) A reconstituição histórica dos autos subjacentes ao presente recurso evidencia que, desde o início, o cerne da querela residiu no sentido com que deve valer a exigência de assinatura que recai sobre o despacho de acusação, sob pena de nulidade, constante do artigo 283º, n.º 3, alínea g), do Código de Processo Penal, sendo que o recorrente sempre defendeu a orientação segundo a qual a acusação, em vez de assinada, havia sido meramente rubricada, pelo que fora violado o disposto naquele preceito, e as decisões impugnadas acolheram o entendimento de que a exigência nele contida se compadecia com a aposição de uma mera rubrica (n.º s 5 a 13 da reclamação); b) Escalpelizando o conteúdo do acórdão recorrido, verifica-se que neste se procede primeiramente a um ensaio no plano normativo da fundamentação da decisão que a final o tribunal visava proferir (declarando que a lei processual penal não distingue entre assinaturas e rubricas), para em seguida se conceder que o senso comum aponta para a sua diferenciação, embora a prática se tenha encarregado de a diluir, e para, posteriormente ainda, se evidenciar outros lugares do ordenamento jurídico que legitimariam o sentido final da decisão, pelo que se imporia a conclusão de que, para o tribunal recorrido, nada separa a assinatura da rubrica (n.º s 17 a 24); c) A passagem do acórdão recorrido em que se considera que a acusação se encontra assinada e não rubricada é coerente com a posição por si anteriormente sustentada, nos termos da qual a assinatura e a rubrica se identificariam integralmente (n.º s 25 e 26); d) A passagem do acórdão em que se admite a hipótese de a acusação estar rubricada, e em que se alicerça a decisão sumária para não conhecer do objecto do recurso, denuncia uma 'tergiversação' na linha de pensamento até aí seguida, pela qual o recorrente não pode ser penalizado, pois que logo de seguida se acolhe, em várias outras passagens, a interpretação segundo a qual a referência
à assinatura constante do anterior artigo 283º, n.º 3, alínea e), do Código de Processo Penal, engloba, não só a assinatura, como também a rubrica, podendo mesmo delas inferir-se que, para o tribunal recorrido, a acusação estava assinada porque estava rubricada (n.º s 27 a 40); e) Mesmo o trecho do acórdão recorrido em que se funda a decisão sumária para não conhecer do objecto do recurso tem um alcance que, apesar de duvidoso,
é passível de conciliação com os resultados a que conduz a interpretação de conjunto daquele acórdão (n.º s 41 a 50).
3. Na resposta à reclamação em causa (fls. 129 e seguintes), o Ministério Público pronunciou-se no sentido da sua manifesta falta de fundamento. Começou por registar que a questão de constitucionalidade enunciada pelo recorrente ao longo do processo carece de suporte razoável, por não ser possível inferir da Constituição os precisos requisitos formais dos actos processuais
(art. 2º), sendo descabido alegar que tal situação processual ofende as garantias de imparcialidade, dado que nada obsta à averiguação, junto do tribunal, da identidade dos magistrados que proferem as decisões (art. 3º). Acrescentou que não compete ao Tribunal Constitucional sindicar matéria que se situa inteiramente no âmbito do direito infraconstitucional, apreciando se a
'assinatura' aposta na acusação é verdadeira 'assinatura' ou mera 'rubrica' e, neste caso, se tal constitui nulidade ou irregularidade (art. 4º). Finalmente, entendeu que a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, além de manifestamente infundada, é inútil, dado que o acórdão recorrido concluiu que a acusação se mostra 'assinada' e que a sua eventual deficiência ou insuficiência formal está há muito precludida, por não ter sido tempestivamente arguida a eventual irregularidade cometida (arts. 5º e 6º).
II
4. A extensa argumentação do reclamante pode reconduzir-se a duas ideias centrais: tanto o processado até ao acórdão recorrido, como o texto deste globalmente considerado, apontam no sentido de que o tribunal recorrido aplicou o artigo 283º, n.º 3, alínea g), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual se considera satisfeita a exigência de assinatura da acusação com a aposição de uma mera rubrica. Por isso, haveria que conhecer do objecto do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional.
4.1. A circunstância de o processado até ao acórdão recorrido alegadamente apontar no sentido de o cerne da querela ter sempre residido no sentido com que deve valer a exigência de assinatura que recai sobre o despacho de acusação, sob pena de nulidade, constante do artigo 283º, n.º 3, alínea g), do Código de Processo Penal (supra, 2.1.), nada indicia quanto ao entendimento a final perfilhado pelo acórdão recorrido quanto à aposição de rubrica ou de assinatura na acusação do Ministério Público, nem quanto ao entendimento segundo o qual as duas se identificariam. Dito de outro modo: não é pelo facto de, durante o processo, o reclamante ter insistido que a acusação se encontrava rubricada e não assinada, que se pode inferir que o tribunal recorrido entendeu que ela se encontrava rubricada e não assinada, ou vice-versa, ou que a exigência de assinatura se satisfaria com a aposição de mera rubrica. Nesta medida, trata-se de argumento irrelevante, para efeitos da decisão quanto ao conhecimento do objecto do recurso. Há que partir do texto do acórdão recorrido, e não do até aí processado, a fim de averiguar se a norma acima indicada foi efectivamente aplicada, isto é, se ela constituiu o fundamento da decisão recorrida. Razão tem pois o reclamante ao ensaiar posteriormente uma interpretação do texto do acórdão, pois que é do texto que deve resultar essa aplicação.
4.2. A afirmação que acaba de se fazer não deve, porém, ser entendida como possibilitando o recurso ao sentido global do texto para neste vislumbrar uma decisão que manifestamente não foi proferida.
É isso que, erroneamente, faz o reclamante. Na verdade, o reclamante julga suficiente identificar vários trechos do acórdão recorrido em que se estabelece uma similitude entre rubricas e assinaturas – sob o ponto de vista da sua função
(garantir a fidelidade e a autenticidade), utilização prática ou tratamento na lei processual civil –, para demonstrar que o tribunal recorrido concluiu ou decidiu que a acusação se encontrava rubricada, ou que estava assinada porque estava rubricada. E assim menospreza a alegada 'tergiversação' do raciocínio expresso no acórdão, em que se apoiou a decisão sumária para não conhecer do objecto do recurso, em prol da lógica global do conjunto.
Mas tal conclusão – a de que o tribunal recorrido concluiu ou decidiu que a acusação se encontrava rubricada, ou que estava assinada porque estava rubricada – não corresponde ao sentido do trecho em que se afirma estar a acusação assinada (só por hipótese se admitindo a existência de rubrica) e ao sentido do trecho imediatamente antecedente, transcrito no ponto 5. da decisão sumária (na parte em que, per saltum, o tribunal recorrido passa a analisar o disposto na anterior alínea e) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, fundamentando a conclusão a que chegaria sobre a existência de assinatura). Registe-se, aliás, e quanto a este último aspecto, que tal fundamentação – a que o reclamante significativamente não faz referência, nos n.ºs 9., 10. e 25. da sua reclamação – seria supérflua, se as anteriores considerações sobre a similitude da assinatura e da rubrica (das quais se extrairia a afirmada lógica global do conjunto, a que haveria que atender em exclusivo) bastassem para a conclusão final. Como é evidente, não compete ao Tribunal Constitucional sindicar a coerência entre a decisão recorrida e os seus fundamentos, ou entre os fundamentos remotos e os imediatamente antecedentes da decisão, dado que para tanto existe o mecanismo da reclamação por nulidade do acórdão. Não competindo ao Tribunal Constitucional sindicar tal coerência, soçobra o segundo pilar da argumentação do reclamante, que mais não traduz do que um apelo ao sentido global do texto para neste vislumbrar uma decisão que manifestamente não foi proferida, mas que alegadamente se imporia pelas regras da lógica: a de que a acusação se encontrava rubricada, ou que estava assinada porque estava rubricada. E, como se disse no ponto 8. da decisão sumária e salientou depois o Ministério Público (supra, 3.), parece igualmente evidente que não compete ao Tribunal Constitucional sindicar este elemento de facto da decisão recorrida, apreciando se a 'assinatura' aposta na acusação é verdadeira 'assinatura' ou mera
'rubrica'. No presente caso, compete apenas ao Tribunal Constitucional apreciar se o tribunal recorrido aplicou o artigo 283º, n.º 3, alínea g), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual se considera satisfeita a exigência de assinatura da acusação com a aposição de uma mera rubrica. Ora, como se disse no ponto 8. da decisão sumária, tal norma não foi aplicada com esse sentido: desde logo o tribunal recorrido considerou existir assinatura e não rubrica, se bem que irregular ou ilegível, fundamentando a existência dessa assinatura, e, como tal, desenvolveu o raciocínio subsequente com base nesse pressuposto de facto, aplicando ao caso o regime das irregularidades
(artigo 123º do Código de Processo Penal) e não o das nulidades.
III
5. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta
Lisboa, 13 de Julho de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida