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Proc. n.º940/98
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. - S..., LDA veio impugnar no Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa a liquidação relativa ao registo nº10068, relativa à taxa de fazendas demoradas, no valor de
5% sobre o valor da mercadoria, prevista nos artigos 638º e 639º do Regulamento das Alfândegas. O Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa resolveu desencadear o mecanismo previsto no artigo 177º do Tratado da Comunidade Europeia e, depois de recebido o respectivo acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), por sentença de 2 de Maio de 1996 decidiu julgar a impugnação procedente e anular a liquidação. A decisão do TJCE foi no sentido de que o ordenamento comunitário não se opõe a que a 'autoridade aduaneira exija o pagamento de uma importância para além dos direitos aduaneiros e dos eventuais encargos pela armazenagem temporária das mercadorias para aceitar uma declaração destinada á sua colocação em livre prática depois de expirados os prazos previstos no artigo 15º, n.º1, do Regulamento (CEE) n.º 451/88', 'na condição de o montante dessa importância ser fixado no respeito do princípio da proporcionalidade e em condições análogas às existentes em direito nacional para infracções da mesma natureza e gravidade'. Não se conformando com a procedência da impugnação, a Fazenda Pública interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) que, por acórdão de 25 de Junho de 1998, decidiu conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e mantendo o acto de liquidação impugnado. Inconformada com o assim decidido, 'S..., Lda' veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional pretendendo que se aprecie a conformidade constitucional do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas As alegações apresentadas neste Tribunal concluíram pela forma seguinte:
'I- O art.639º, §2º, do Regulamento das Alfândegas, na redacção introduzida pelo Dec.Lei 483-E/88, de 28/12, aplicado pelo douto acórdão recorrido, viola o princípio da proporcionalidade, estando em consequência eivado de inconstitucionalidade material (arts. 266º, nº2 e 18º, nº 2 da CRP). II- A denominada 'multa ou taxa de leilões' introduzida por aquele diploma afecta de forma ostensiva as garantias de defesa consagradas no art. 32º, nºs 1,
2, 5 e 8 da CRP, uma vez que corresponde a uma sanção, sendo porém aplicada sem precedência de qualquer tipo de processo contraditório. III- O douto acórdão recorrido desprezou as preocupações patentes no acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias proferido por reenvio determinado pelo Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa nos presentes autos, que alertavam para a necessidade de qualquer tipo de sanção como o que ora se discute se dever adequar ao princípio da proporcionalidade. IV- A aplicação do art. 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, cria situações insuperáveis de injustiça e desigualdade, punindo de forma igual culpas distintas (mesmo sem culpa!), valores díspares, ou moras diferentes, resultando numa inadmissível responsabilização objectiva. V- A aplicação da 'taxa de leilões' de forma alguma assume 'condições análogas para infracções da mesma natureza e gravidade' – acórdão do TJCE. Com efeito, o adicional de 5% estabelecido no art. 639º, § 2º do RA, pode inclusive atingir valores superiores aos previstos no Regime Jurídico das Infracções Aduaneiras para o descaminho e para o contrabando. VI- A norma contida no art.639º, § 2º do Regulamento das Alfândegas, foi revogado pelo art.2º do D.L. 376-A/89, de 25/10, ofendendo a sua aplicação os princípios da tipicidade e legalidade informadores de todo o direito penal. Preceitos violados:
- arts. 266º, nº 2; 18º, nº2; 29º, 32º, nºs 1, 2, 5 e 8; 168º, nº 1, i) da CRP. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, com todas as suas legais consequências. Também a Fazenda Nacional apresentou alegações em que se formularam as seguintes conclusões:
'1ª O único preceito constitucional com o qual pode ser confrontado o douto acórdão recorrido é o artº 266º nº 2 da Constituição, o único cuja violação foi invocada pela recorrente ao longo do processo.
2ª Devem, deste modo, ser excluídos de apreciação todos os restantes preceitos, quer da Constituição, quer de lei simples, invocados pela recorrente nas suas alegações para esse Tribunal Constitucional.
3ª No que se refere ao invocado vício de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artº 266º nº 2 da Constituição, o mesmo não se verifica, porquanto: a. O pagamento do montante constante do § 2ºdo artº 639º do Regulamento das Alfândegas é uma alternativa à venda das mercadorias, oferecida à livre opção do operador económico, consequentemente não tendo a natureza de sanção nem a podendo ter, porque o excesso do prazo legal não é uma infracção fiscal aduaneira punível com coima, é um facto jurídico independente de culpa que desencadeia como efeito jurídico a venda das mercadorias em hasta pública ou, em alternativa, e só em certas circunstâncias e mediante iniciativa do operador económico, o pagamento do dito montante, o qual funciona, assim, como mero estímulo para que os prazos legais não sejam excedidos; b. A Administração não exige o pagamento no uso de poderes discricionários mas sim no cumprimento de um dever legal a que está vinculada; c. O mecanismo legal criado pelo § 2º do artº 639º do Regulamento das Alfândegas é adequado ao interesse público do despacho das mercadorias dentro dos prazos legais e aos interesses dos donos dos bens que, através do pagamento, encontram uma alternativa à venda destes em hasta pública de que se podem socorrer sem que sejam obrigados a isso. Nestes termos e nos demais de direito e com o douto suprimento de V. Exas. deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o douto acórdão recorrido, como se crê ser de JUSTIÇA.' Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
3. – A questão que vem suscitada nos autos e que vem definida no requerimento de interposição do recurso, é a da inconstitucionalidade do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas, na redacção do Decreto-Lei n.º 483-E/88, de 28 de Dezembro, por contender com os princípios da proporcionalidade e da legalidade tributária, consagrados nos artigos 266º, n.º2, e no artigo 103º, ambos da Constituição da República (versão de 1992). Torna-se necessário, antes de mais, delimitar o âmbito do recurso. De facto, a recorrente imputa a inconstitucionalidade a todo o artigo 639º da Regulamento das Alfândegas. Porém, o acórdão recorrido que revogou a sentença do Tribunal Fiscal Aduaneiro, mantendo na ordem jurídica o acto de liquidação impugnado, apenas aplicou o corpo do artigo e o seu § 2. Na verdade, de acordo com o estabelecido no artigo 638º do Regulamento das Alfândegas, as mercadorias armazenadas em quaisquer depósitos de regime aduaneiro ou livre serão vendidas em hasta pública quando excedem os respectivos prazos de armazenagem. Nos termos do que se dispõe no corpo do artigo 639º, 'os donos das mercadorias demoradas além dos prazos legais de armazenagem podem despachá-las desde que assim o requeiram no prazo de seis meses contados a partir da sujeição da mercadoria ao regime de hasta pública'. De acordo com o § 2 do preceito, as mercadorias assim despachadas, para além das despesas de armazenagem e tráfego, anteriores e posteriores à entrada no armazém de leilões e despesas com anúncios já publicados, ficam ainda sujeitas ao pagamento de uma percentagem de 5% sobre o seu valor.
É a conformidade à Lei Fundamental desta norma – corpo do artigo 639º e seu § 2
– que a recorrente pretende ver apreciada na medida em que 'o sancionamento da mora no desalfandegamento, através de uma taxa ou multa percentual sobre o valor da mercadoria, não é compatível com o princípio da proporcionalidade'. Porém, a recorrente em parte alguma das suas alegações se refere à violação do princípio da tipicidade fiscal (artigo 103º da Constituição), dando apenas como violado o artigo 266º da Constituição, uma vez que a decisão de 1ª instância afastou a hipótese delineada na petição inicial de se estar perante uma taxa ou direito aduaneiro adicional ou uma multa (conhecida por 'multa de leilões'). Assim, cumpre apreciar a questão da violação do princípio da proporcionalidade pela norma do artigo 639º e § 2 do Regulamento das Alfândegas.
4. – O STA, na sequência de uma jurisprudência uniforme, tem entendido que a percentagem ad valorem prevista no § 2 do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas integra uma 'sanção processual ou procedimento tendente a assegurar o normal desenvolvimento do processo de desalfandegamento de mercadorias'. Uma vez definido nos autos que o estabelecimento de tal percentagem não contende com o Direito Comunitário (cf, Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades junto a fls. 50, do processo), escreveu-se na decisão recorrida: 'Não estamos perante uma indemnização devida ao Estado pela ocupação de armazéns para além dos respectivos prazos, uma vez que essa percentagem é devida quer as mercadorias ocupem armazéns do Estado, quer armazéns não pertencentes ao Estado. Estamos pois perante uma sanção de natureza administrativa ou processual cominada para ilícitos praticados no processo, gracioso ou não, visando o seu normal desenvolvimento'. Parece portanto claro que o Tribunal recorrido entendeu a obrigação do pagamento da percentagem de 5% sobre o valor das mercadorias não desalfandegadas, para além das despesas anteriores e posteriores de armazenagem e tráfego e anúncios, como uma sanção administrativa ou processual compulsória destinada ao aceleramento do normal desenvolvimento de todo o procedimento de despacho das mercadorias já sujeitas ao regime de hasta pública. Importa, pois, apurar se uma medida administrativa de natureza compulsória, cuja finalidade é a de promover o respeito dos prazos de desalfandegamento de mercadorias por parte dos operadores económicos, viola o princípio da proporcionalidade pelo facto de se tratar de uma percentagem ad valorem fixada em 5% do valor das mercadorias. A situação que resulta dos artigos 638º e 639º do Regulamento das Alfândegas é a seguinte: as mercadorias depositadas em quaisquer depósitos de regime aduaneiro ou livre serão vendidas em hasta pública se excederem os respectivos prazos de armazenagem (mercadoria demorada). Porém, dentro do prazo de seis meses após sujeição de tais mercadorias ao regime de hasta pública, a lei prevê ainda a possibilidade do seu desalfandegamento desde que os donos de tais mercadorias o requeiram e satisfaçam o pagamento de 5% do respectivo valor, assim como as despesas de armazenagem e tráfego e anúncios, se já tiverem sido publicados. Portanto, os donos das mercadorias, se pretenderem evitar a venda das mesmas e que sejam declaradas para livre prática ou para outro regime aduaneiro terão de suportar o ónus do pagamento da percentagem de 5% sobre o seu valor. No entender da recorrente, o que ofende o princípio da proporcionalidade é o método de cálculo de uma sanção por percentagem, chamando à colação para demonstrar tal violação a comparação com as sanções estabelecidas no Regime Jurídico da Infracções Fiscais e Aduaneiras (RJIFA), pelo qual a mora no desalfandegamento seria mais gravosamente punida que o descaminho de mercadorias. Vejamos. A actuação da Administração está efectivamente vinculada á observância do princípio da proporcionalidade, de modo particularmente relevante no âmbito do desenvolvimento de uma actividade discricionária, da qual constitui um dos limites jurídicos (artigo 266º, n.º 2 da Constituição e artigo 5º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo). O princípio da proporcionalidade impõe que exista uma adequação não só entre o fim da lei e o fim do acto como entre o fim da lei e os meios escolhidos para alcançar tal fim. A adequação terá ainda de manter-se entre as circunstâncias de facto que ocasionam o acto e as medidas que vierem a ser efectivamente tomadas. A proporcionalidade abrange assim não só a congruência, adequação ou idoneidade do meio ou medida para realizar o fim que a lei propõe como também a proibição do excesso. Admitindo que no caso em apreço se está no domínio de intervenção do princípio da proporcionalidade, a fixação de uma percentagem fixa de 5% sobre o valor das mercadorias em causa, já sujeitas ao regime de venda em hasta pública, é medida adequada e idónea para realizar o fim da lei – a liberação das mercadorias do referido regime – passando-as de novo à livre prática? A resposta é indubitavelmente afirmativa: num momento em que o fim das mercadorias é a sua venda pública, com a consequente perda para o respectivo dono, pode este desembaraçar a mercadoria pagando o quantitativo fixado legalmente. Este quantitativo tem o seu valor pré-fixado na lei, dependendo o quantitativo a desembolsar de mera operação aritmética de acordo com o valor declarado das mercadorias. Dado que a finalidade da medida é a de promover o respeito dos prazos de desalfandegamento, é manifesto que os operadores económicos que incumpriram esses prazos verão as mercadorias ser vendidas, com o consequente prejuízo. Porém, a lei admite que possam obviar a tal venda e prejuízo pagando além das despesas a referida percentagem. O valor da quantia a pagar depende do valor das próprias mercadorias, e a opção, entre o seu pagamento ou não, está na disponibilidade do respectivo dono, dependendo apenas de sua vontade em dispor das mercadorias, pois a administração, feito o pedido de despacho, está obrigada a desembaraçar as mercadorias. Não existe, assim, no caso em apreço uma situação relativamente à qual se possa afirmar que a estipulação da medida administrativa compulsória em causa seja intoleravelmente desproporcionada ou exorbitante e, por isso, seja constitucionalmente inadmissível. III – DECISÃO: Nos termos do que fica exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 639º e § 2 do Regulamento das Alfândegas, na redacção do Decreto-Lei n.º 483-E/88, de 28 de Dezembro, e, em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 29 de Junho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida