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Processo nº 535/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - CM, identificado nos autos, foi condenado, em 10 de Dezembro de 1999, em processo comum singular que correu termos no 2º Juízo Criminal da comarca de Viana do Castelo, como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no artigo 292º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 850$00, o que perfaz o montante de 76.500$00, e, subsidiariamente, em 60 dias de prisão, bem como em
100 dias de inibição de conduzir veículos motorizados.
A decisão foi comunicada à Direcção-Geral de Viação, para efeitos de aplicação do disposto nos artigos 122º, nº 4, e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, na respectiva motivação, suscitado, designadamente, a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 65º do Código Penal, por violação do disposto no nº 4 do artigo 30º da Constituição da República (CR), bem como a dos artigos 122º, nºs. 4 e 5, e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, por violação do disposto nos artigos 165º, nº 1, alínea c), 198º, nº 1, alínea b), 30º, nº 4, e 13º, todos da Lei Fundamental.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 6 de Julho de 2000, negou provimento ao recurso, tendo, designadamente, desatendido as questões de constitucionalidade levantadas pelo arguido.
2. - Inconformado, recorreu, este para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Pretende-se a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 122º, nºs. 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro.
3. - Nas alegações oportunamente apresentadas e consonantemente com o requerimento de interposição de recurso, defende o arguido que aquelas normas são orgânica e materialmente inconstitucionais.
Organicamente inconstitucionais, por ofensa ao disposto nos artigos 165º, nºs. 1 e 2, e 198º, nº 1, alínea b), da CR.
As medidas legislativas previstas naqueles normativos não constavam do texto do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, com génese na Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, que as não previu, sendo certo que a autorização legislativa dada pela Lei nº 97/97, de 23 de Agosto, ao Governo, e que originou o novo texto aprovado pelo Decreto-Lei nº
2/98, de 3 de Janeiro, actualmente vigente, também as não contemplou.
Materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no nº 4 do artigo 30º da CR, na medida em que, com desrespeito pelo princípio do carácter não automático dos efeitos das penas, 'acrescenta' de forma automática, mecanicamente, por efeito da lei (ope legis), uma outra pena que se consubstancia na perda de um direito.
Ainda materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 13º da CR, na medida em que ofendem o princípio da igualdade,
'ao diferenciar condutores com carta há mais ou menos de dois anos, quando nada de substancial quanto à sua capacidade de condução os distingue ou justifica a diferenciação'.
O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal rematou, por seu turno, as alegações apresentadas do seguinte modo:
'1 – Os artigos 122º, nºs. 4 e 5, e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada não violam o artigo 13º, nem o artigo 30º, nº 4, da Constituição.
2 – As mesmas normas não padecem de inconstitucionalidade orgânica.'
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II
1. - Constituem objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade as normas dos nºs. 4 e 5 do artigo 122º e da alínea a) do nº 1 do artigo 130º do Código da Estrada vigente, segundo o texto revisto e republicado em anexo ao Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro (artigo
2º).
Dispõem assim, as referidas normas:
'Artigo 122º Títulos de condução
-----------------------
4 – O título de condução emitido a favor de quem não se encontra já legalmente habilitado para conduzir qualquer das categorias de veículos nele previstos tem carácter provisório e só se converte em definitivo se, durante os dois primeiros anos do seu período de validade, não for instaurado ao respectivo titular procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir.
5 – Se durante o período referido no número anterior, for instaurado procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir, o título de condução mantém o carácter provisório até que a respectiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva.'
'Artigo 130º Caducidade do direito de condução
1 – A carta ou licença de condução caduca quando: a) Sendo provisória nos termos dos nºs. 4 e 5 do artigo 122º, for aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efectiva.
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As referidas normas integram-se no Título V do Código da Estrada, que regula a matéria da habilitação legal para conduzir e, tal como já constava da versão do Código de 1994 (aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 5 de Maio), resulta desse Título que assumem 'carácter provisório' as cartas de condução nos dois primeiros anos do seu período de validade, convertendo-se em definitivas após o decurso desse prazo sem que ao seu titular houvesse sido aplicada sanção de proibição ou inibição do direito de conduzir, sendo que a aplicação desta sanção arrasta a caducidade da carta de condução provisória
(este regime probatório da vigência das cartas de condução com a duração de dois anos foi introduzido pela primeira vez pelo Decreto-Lei nº 270/92, de 30 de Novembro, inovação que passou a constar do nº 1 do artigo 48º do Código da Estrada, mas só em 1994 se veio a prever a caducidade de tais cartas).
2. - Ora, entende-se que não assiste razão ao recorrente.
2.1. - A eventual inconstitucionalidade orgânica das normas dos artigos 122º, nºs. 4 e 5, e 130º, nº 1, alínea a) do Código da Estrada.
Defende o recorrente que estes preceitos normativos, transitados da anterior versão do Código da Estrada para o texto aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/98, estão feridos de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que não se integram nos limites da lei de autorização legislativa que permitiu ao Governo proceder à revisão daquele Código – a Lei nº 97/97 –, como já anteriormente a Lei nº 63/93 não autorizara o Governo a legislar nesse sentido (o que este veio a fazer mediante o Decreto-Lei nº 114/94).
No entanto, já a Lei nº 63/93 previa a sanção da inibição de conduzir [cfr. alínea d) do nº 2 do artigo 2º] e a cassação da carta ou licença de condução quando, em face da gravidade das contra-ordenações, o condutor devesse ser julgado inapto para a condução de veículo motorizado [cfr. alínea a) do nº 2 desse artigo 2º].
Idêntica possibilidade foi prevista na Lei nº 97/97: alíneas a) e f) do artigo 2º.
As normas em análise são uma decorrência natural de tais possibilidades, como se reflectiu em recente acórdão deste Tribunal, debruçando-se sobre caso similar.
Escreveu-se, então (cfr. acórdão nº 461/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Novembro de 2000, que acórdão posterior, ainda inédito, seguiu – nº 574/2000], '[s]e é autorizada a condenação em tais sanções, é evidente que fica logicamente prejudicado o momento da conversão de uma licença meramente provisória em definitiva na situação de mera instauração de procedimento ou que uma licença provisória não caduque no caso de condenação em sanção de inibição de conduzir'.
No presente caso não está em causa uma contra-ordenação mas o crime de condução sob a influência do álcool, previsto e punido no artigo
292º do Código Penal para o qual o artigo 69º, nº 1, alínea a) do mesmo Código prevê a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um determinado período de tempo.
Mas a previsão desta pena foi autorizada pela Lei nº
35/94, de 15 de Setembro, como decorre da sua alínea 34).
2.2. - A eventual inconstitucionalidade material, por violação do nº 4 do artigo 30º da CR, das normas impugnadas.
Pretende o recorrente estar em causa o princípio do carácter não automático dos efeitos das penas, sabido que aquele preceito constitucional veda os efeitos necessários das penas.
A este propósito, nos acórdãos citados, (no segundo, por via de remissão ao primeiro), disse-se:
'A proibição de penas automáticas pretende impedir que haja um efeito automático da condenação penal nos direitos civis do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege. Todavia, a proibição de penas automáticas não pode abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de culpa pela mediação do juiz (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs. 362/92, Diário da República,
2ª série, de 8 de Abril de 1993, 183/94, inédito, 264/99, Diário da República,
2ª série, de 13 de Julho de 1999, e 327/99, Diário da República, 2ª série, de 19 de Julho de 1999).'
Debruçando-se sobre o caso concreto, de óbvia similitude com o presente, ponderou-se, então, não constituir um efeito automático da condenação pela prática de crime ou contra-ordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir, a medida legislativa decretada nas transcritas normas.
Por um lado, o direito a conduzir decorre de uma licença que, no caso, é apenas provisória e está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico. Existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe um direito absoluto de conduzir, fora desse condicionamento. Por outro lado, prevê-se um período experimental e de licenciamento provisório, em que o condutor terá de confirmar as condições pessoais adequadas para lhe ser concedida uma licença definitiva.
Como se escreveu, no citado acórdão nº 461/2000:
'A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais. Com efeito, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta. Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos adquiridos, mas apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas condições de obtenção da licença de condução. Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa-se no plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir. Aliás, a ausência de possibilidade de não conversão da licença provisória em definitiva faria perder todo o sentido à existência de período provisório no processo de obtenção de carta ou da licença de condução – o qual constitui, materialmente, uma espécie de período probatório.'
E, a finalizar:
'Mas, ainda numa certa concepção poderá entender-se que qualquer efeito automático de natureza penal sobre a licença provisória só poderia verificar-se se fosse igualmente a condenação em inibição de conduzir ou se a instauração do procedimento determinasse logo a caducidade da licença provisória. Todavia, nem resulta dos crimes de trânsito tal automaticidade, nem é essa questão que agora
é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional. Com efeito, nessa concepção, se a condenação em inibição de conduzir depende de juízos de culpa sobre o facto, não decorre automaticamente do facto, ex vi lege, qualquer efeito para o licenciamento provisório.'
Perfilha-se, no essencial, este entendimento e, consequentemente, a conclusão alcançada.
2.3. - A eventual inconstitucionalidade material, por violação do artigo 13º da CR, das normas impugnadas.
Alega o recorrente que o prazo de dois anos que o bloco normativo impugnado refere representa uma diferenciação arbitrária de tratamento, não justificada por critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes, assim contrariando o princípio da igualdade, com acolhimento no artigo 13º da lei Fundamental.
Não é, no entanto, exacto que a exigência legal não seja razoavelmente justificada, como, aliás, se ponderou no acórdão recorrido.
Escreveu-se, aí, que a diferenciação do regime legal – que comina de caducidade a carta de condução provisória de um seu titular que, durante o período probatório de dois anos após a obtenção da licença de condução de veículos automóveis, é judicialmente condenado por conduzir alcoolizado – assenta em fundamento sério e razoável e dispõe de sentido legítimo, como o de fixar um período de 'probation' para o novel condutor, face ao incremento do perigo que uma condução incipiente representa para o próprio e para terceiros, de modo a melhor se comprovarem as necessárias condições físicas, psicológicas e de perícia automobilista que lhe devem assistir.
E, na verdade, a jurisprudência impressiva, constante e uniforme do Tribunal Constitucional a respeito do princípio da igualdade, como princípio estruturante do Estado de direito democrático, vem entendendo que, ao postular-se que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo-se, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais), nem por isso se veda à liberdade de conformação do legislador o estabelecimento de diferenciações de tratamento desde que razoável, racional e objectivamente fundadas.
Ponto é que ocorra fundamento material e suficiente que neutralize o arbítrio e a discriminação infundada (neste sentido, citem-se, entre tantos outros, os acórdãos nºs. 688/98, 287/00, 319/00 ou 378/00, publicados no Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1999, 17 e 18 de Outubro de 2000, e 16 de Novembro do mesmo ano, respectivamente).
É este, manifestamente, o caso presente, como no aresto recorrido se ponderou.
III
Em face do exposto decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2001 Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida