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Proc. n.º 427/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, a sociedade comercial por quotas MS, Lda., com sede no lugar da Curia, freguesia de Tamengos, concelho de Anadia, requereu, nos termos dos artigos 76º e seguintes da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e por apenso ao recurso contencioso de anulação intentado conjuntamente, a suspensão de eficácia do acto administrativo consubstanciado no despacho do Presidente do Conselho de Administração do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED), de
1 de Outubro de 1999, que autorizou a instalação de uma farmácia no lugar de Aguim, freguesia de Aguim, concelho de Anadia, distrito de Aveiro, através de concurso público, aberto por aviso publicado no Diário da República, que identifica.
Alegou, entre o mais: que os actos praticados pelo INFARMED no processo de abertura do concurso público para a instalação de uma nova farmácia no lugar de Aguim padecem do vício de violação de lei, por desrespeitarem as normas legais relativas à instalação de novas farmácias; que é proprietária de uma farmácia situada a menos de 3 km do lugar onde o despacho recorrido autorizou a instalação da nova farmácia; que, com a instalação da nova farmácia, irá sofrer na exploração do seu estabelecimento reflexos negativos e prejuízos de difícil reparação resultantes da eventual perda de clientela; que a requerida suspensão de eficácia do acto impugnado não determina grave lesão do interesse público.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, por decisão de 20 de Janeiro de 2000 (fls. 39 e seguinte), indeferiu o pedido de suspensão formulado nos autos, por considerar que não se verifica o requisito estabelecido no artigo 76º, n.º 1, alínea b), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Com efeito, o tribunal entendeu que 'a instalação em causa foi determinada por manifestas razões de interesse público, que naturalmente têm de prevalecer sobre os interesses comerciais das farmácias circundantes' e que 'a suspensão do acto de autorização seria de molde a prejudicar gravemente o interesse público referido, uma vez que viria repor a situação anterior, de ausência de uma correcta distribuição medicamentosa, impedindo a população de Aguim de ter um acesso facilitado a essa distribuição'.
2. MS, Lda. interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo.
O recorrido INFARMED contra-alegou, tendo sustentado a manutenção da decisão recorrida.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso
(fls. 92 e v.º).
3. Por acórdão de 13 de Abril de 2000 (fls. 94 e seguintes, com cópia dactilografada, no final do processo), o Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Notificada deste acórdão e do parecer emitido pelo representante do Ministério Público, a recorrente MS, Lda. arguiu 'a nulidade do dito acórdão, por violação da Constituição', argumentando assim (requerimento de fls. 102 e v.º):
'Com efeito, não tendo a recorrente sido notificada, previamente à decisão, do parecer do Ministério Público não lhe foi possível dele tomar conhecimento e sobre ele pronunciar-se. Não se aceita tal procedimento, tanto mais que a posição do Ministério Público foi desfavorável à recorrente. A exigência de transparência é corolário do princípio do contraditório e do carácter equitativo do processo, princípios que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado «marcada em particular pela importância atribuída às aparências e à sensibilidade acrescida do público [...]. Esta mesma jurisprudência foi seguida pelo Tribunal Europeu no acórdão Lobo Machado relativamente à nossa legislação. Termos em que deve ser apreciada e julgada procedente a arguida nulidade do presente acórdão por violação do direito constitucional a um processo equitativo, consagrado no artº 20º nºs 1 e 4 da CRP.'
O Tribunal Central Administrativo, através de despacho do relator, de 24 de Maio de 2000 (a fls. 106), indeferiu a arguição de nulidade, nos seguintes termos:
'[...] No presente processo foi cumprida, rigorosamente, a tramitação prevista no artº 78º da LPTA, nomeadamente o disposto no n.º 4.
Tal norma não prevê a notificação do parecer do M.ºP.º ao requerente da suspensão, o que se explica até em razão da natureza célere do incidente.
Assim, o acórdão proferido não padece de qualquer nulidade.
Em face do exposto, julgo inverificada a nulidade invocada [...].'
4. MS, Lda. veio então interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, 'com vista à apreciação da arguida inconstitucionalidade material da interpretação que é feita no despacho, quanto à obrigatoriedade de notificação
às partes do parecer final do Ministério Público (art. 78º da LPTA)', que, em seu entender, ofenderia a norma do artigo 20º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 109.
5. No Tribunal Constitucional, foi determinada a notificação da recorrente, nos termos ao artigo 75º-A, n.º 6, da LTC, para completar o requerimento de interposição do recurso, indicando:
– qual das normas contidas no artigo 78º da LPTA – e qual a interpretação que a essa norma foi atribuída no despacho recorrido – que considera inconstitucional e que pretende submeter à apreciação deste Tribunal;
– qual a peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade.
A recorrente respondeu (requerimento de fls. 112):
'1. O presente recurso para o Tribunal Constitucional vem interposto do despacho de fls. 106 por nele ter sido considerado que a tramitação prevista no artº 78º da LPTA, nomeadamente o disposto no seu nº 4º, não prevê a notificação do parecer do MºPº ao requerente da suspensão. Entende a recorrente que a interpretação que foi dada no artº 78º da LPTA, no despacho recorrido e a sua aplicação concreta, e no sentido acima exposto – não obrigatoriedade de notificação ao requerente da suspensão do parecer emitido nos autos pelo Mº Pº – viola o direito constitucional a um processo equitativo consagrado no artº 20º, nºs 1 e 4, da Constituição.
2. A inconstitucionalidade da norma contida no nº 4 do artº 78º da LPTA, na interpretação dada pelo despacho recorrido e na aplicação concreta ao caso em apreço, foi suscitada pela recorrente no articulado de arguição de nulidade do acórdão proferido, em sede de recurso, pelo Tribunal Central Administrativo.'
6. Proferido despacho para a produção de alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1ª – O parecer emitido pelo Ministério Público nos processos de suspensão da eficácia dos actos administrativos, em sede de recurso da decisão de 1ª instância para o Tribunal Central Administrativo, deve ser notificado às partes, seja qual for o seu sentido, sob pena de se colocar as partes em posições desiguais, com violação do princípio da igualdade e por violação do nº 4 do artº
20º da Constituição.
2ª – O despacho proferido pelo Senhor Juiz Desembargador Relator nos presentes autos de suspensão de eficácia de acto administrativo, interpretou e aplicou a norma do artº 78º da LPTA, no sentido de que no presente processo se observou rigorosamente a tramitação prevista no artº 78º da LPTA, nomeadamente no seu nº
4 que não impõe a obrigatoriedade de notificação às partes do parecer neles emitido pelo Ministério Público, mesmo que lhes seja desfavorável.
3ª – Assim interpretada e aplicada é a citada norma inconstitucional por violação do nº 1 e 4 do artº 20º da Constituição.'
Nas alegações que apresentou, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional começou por colocar uma questão prévia de não conhecimento do recurso, considerando que a recorrente não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa. Pronunciando-se sobre a questão de fundo, e a título meramente subsidiário, concluiu:
'1º – A intervenção liminar do representante do Ministério Público no tribunal superior, na fase de julgamento dos processos de suspensão de eficácia, prevista no artigo 78º, nº 4 º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, traduz o exercício de uma estrita tarefa de defesa objectiva da legalidade, actuando com[o] órgão de justiça na prossecução e tutela do ordenamento jurídico objectivo, pelo que é insusceptível de afrontar o princípio da igualdade de armas entre os litigantes.
2º – Tal intervenção não cria qualquer aparência fundada e razoável de quebra do carácter equitativo do processo, a qual só poderia assentar na errónea suposição de que tal intervenção processual se destinaria a facultar ao Ministério Público o prosseguimento do interesse público administrativo de que é titular [a] autoridade recorrida – em vez de se mostrar coligada à exclusiva tutela do interesse público na realização da justiça.
3º – Por força da regra do contraditório e da proibição da prolação de decisões-surpresa, resultante do estatuído no nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil (subsidiariamente aplicável no domínio do processo administrativo contencioso), qualquer pronúncia ou opinião, de conteúdo inovatório, apresentada pelo Ministério Público e que o Tribunal entenda ser relevante para a decisão a proferir, deve ser necessariamente notificada às partes, sob pena de nulidade.
4º – Deste modo – e por força do citado nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil – a circunstância de as partes não serem sempre e tabelarmente notificadas do conteúdo de tal parecer, atenta, nomeadamente a urgência do processo, não lhes preclude a oportunidade de se pronunciarem sobre quaisquer questões ou enquadramentos jurídicos inovatoriamente deduzidos pelo Ministério Público, aquando da intervenção processual prevista naquele artigo 78º, nº 4.
5º – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, a recorrente sustentou que a mesma deveria ser julgada improcedente.
II
7. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Constituem pressupostos processuais do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade fundado nessa disposição: que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que este Tribunal aprecie; que tal norma seja aplicada no julgamento da causa, como ratio decidendi, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade.
No caso dos autos, o Ministério Público colocou uma questão prévia de não conhecimento do recurso, por considerar que a recorrente não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Vejamos se tem razão.
8. A invocação da questão de constitucionalidade 'durante o processo', que é exigida como pressuposto processual do tipo de recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, há-de reportar-se necessariamente à norma que fundamenta a decisão recorrida.
Subjacente à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada 'durante o processo' está a ideia de que, antes de o Tribunal Constitucional se pronunciar em recurso (isto é, para reexame) de uma questão de constitucionalidade, é necessário que essa questão tenha sido apresentada ao tribunal a quo para este sobre ela previamente formular um juízo que este Tribunal possa sindicar. Deve, portanto, em princípio, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a sentença e tendo em conta que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, a reclamação por nulidades de uma decisão judicial ou o pedido de aclaração de uma decisão judicial não constituem, já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade (cfr., neste sentido, entre tantos outros, o acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II Série, n.º 140, de 20 de Junho de 1995, p. 6751 ss).
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119 ss).
No presente processo, a recorrente apenas se referiu a um eventual problema de inconstitucionalidade no requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal Central Administrativo (requerimento de fls. 102 e v.º). Nas circunstâncias do processo, admite-se que seja esse o momento adequado para a recorrente suscitar uma questão de constitucionalidade relativa à norma que agora pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional – a norma do artigo 78º, n.º 4, da LPTA.
9. Simplesmente, nessa peça processual – o requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 13 de Abril de 2000
–, a recorrente não colocou uma questão de inconstitucionalidade de normas, susceptível de ser ainda apreciada pelo tribunal que iria pronunciar-se sobre a nulidade do acórdão e susceptível de vir a constituir objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Na verdade, a recorrente limitou-se a 'arguir a nulidade do dito acórdão, por violação da Constituição', imputando directamente a pretensa inconstitucionalidade a certa omissão processual – a omissão de notificação à recorrente do parecer emitido pelo Ministério Público antes de ter sido proferido o acórdão de 13 de Abril de 2000, o que, em seu entender, constituiria violação do direito a um processo equitativo.
Não invocou a recorrente nesse requerimento qualquer norma de direito ordinário a que pudesse reportar-se a censura de inconstitucionalidade, concretamente a norma do artigo 78º, n.º 4, da LPTA, que agora pretende submeter ao controlo de constitucionalidade. Por isso o Tribunal Central Administrativo se limitou a indeferir a arguida nulidade sem se pronunciar sobre qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Ora, para poder interpor o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, a recorrente tinha o ónus de invocar nesse momento a inconstitucionalidade da norma definidora da tramitação do processo de suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado – a norma do artigo 78º da LPTA (e, mais precisamente, para o efeito por ela pretendido, do seu n.º 4). Só essa actuação processual daria cumprimento à exigência de invocação da questão de constitucionalidade 'durante o processo', permitindo ainda ao tribunal a quo formular sobre a norma em causa um juízo que o Tribunal Constitucional iria posteriormente sindicar.
Concluindo: em tal requerimento, a recorrente não suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa, antes dirigiu a censura de inconstitucionalidade à própria decisão judicial ('nulidade, por violação da Constituição').
Como este Tribunal tem afirmado reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
10. Só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – e, mais explicitamente, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento – a recorrente se referiu à inconstitucionalidade de certa norma, numa determinada dimensão interpretativa, que pretendia submeter ao julgamento deste Tribunal.
Mas esse não é já o momento adequado para considerar suscitada
'durante o processo' uma questão de inconstitucionalidade normativa, como resulta da jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (neste sentido, veja-se, por último, o acórdão n.º 405/99, ainda inédito).
11. Não tendo sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não se encontram verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Julga-se, assim, procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
III
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa