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Processo nº 706/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu o Relator a seguinte Decisão Sumária:
'1. JS, com os sinais identificadores dos autos, veio ‘interpor recurso para o Tribunal Constitucional com o fundamento em aplicação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, em conformidade com o disposto no artº 70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro e pela Lei nº 88/95, de 1 de Setembro’, por não se conformar com o acórdão da Secção Criminal (9ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Outubro de 2000, que negou provimento ao recurso que ele e outro interessado, ‘arguidos no processo nº 1959/98. 1JG.LSB-A, do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa’, haviam interposto e considerou ‘plenamente justificada a imposição da prisão preventiva aos arguidos’. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade diz o recorrente pretender:
‘a) Ver aplicada a inconstitucionalidade da interpretação do artº 89º, nº 2 do Código de Processo Penal por infringir os artºs 20º, 28º, nº 1 e 32º, nº 1 da CRP que não faculta ao arguido todos os elementos indiciários de prova dos autos
[constantes] que fundamentam a prisão preventiva; b) Ver aplicada a inconstitucionalidade da interpretação do artº 97º, nº 4, com referência aos artºs 399º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, por infringir as regras constitucionais inscritas nos artºs 205º, nº 1, 28º, nº 2 e
32º, nº 1 da CRP, na medida em que os pericula libertatis não são suficientemente fundamentados na decisão que determina a prisão preventiva’.
2. É pressuposto processual específico do recurso ora utilizado pelo recorrente que haja aplicação de determinadas normas infra-constitucionais na decisão recorrida – as indicadas por ele – e que elas tenham sido arguidas de inconstitucionalidade durante o processo. Ora, quanto à pretensa ‘inconstitucionalidade da interpretação do artº 89º, nº 2 do Código de Processo Penal por infringir os artºs 20º, 28º, nº 1 e 32º, nº 1 da CRP que não faculta ao arguido todos os elementos indiciários de prova dos autos que fundamentam a prisão preventiva’, e que constitui a alínea a) da sua pretensão, é fácil de ver que aquela norma do artigo 89º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi aplicada no acórdão recorrido.
Na verdade, reportando-se ela, em termos gerais, à consulta integral do processo
(e o recorrente havia levantado no mencionado recurso a questão prévia da ‘não facultação de elementos indiciários de prova: Inconstitucionalidade na interpretação do artº 89º do CPP’), o acórdão deu a seguinte resposta:
‘Quanto à questão prévia suscitada pelos recorrentes (negar a consulta integral do processo por tal constituir violação do segredo de justiça), dir-se-á tão só que dela não cabe conhecer neste tribunal, pois que aqueles se insurgem contra um despacho proferido pelo Ministério Público no exercício das suas competências como titular do inquérito, pelo que não é atacável por via de recurso’ Tal significa que a questão posta pelo recorrente não foi decidida, ao menos implicitamente, por se entender simplesmente que ‘dela não cabe conhecer’, a nível do tribunal de relação, o que implica necessariamente que não foi aplicada tal norma. Com o que, por falta do aludido pressuposto, não pode tomar-se conhecimento do recurso, neste ponto, relativo à pretensa ‘inconstitucionalidade da interpretação do artº 89º, nº 2 do Código de Processo Penal’ (‘A não facultação aos arguidos de todos os elementos indiciários de prova dos autos constitui interpretação materialmente inconstitucional do artº 89º, nº 2 do CPP por infringir os artºs 20º, 28º, nº 1 da CRP’, é como se exprime o recorrente).
3. Fica então a outra pretensa questão de ‘inconstitucionalidade da interpretação do artº 97º, nº 4, com referência aos artºs 399º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, por infringir as regras constitucionais inscritas nos artºs 205º, nº 1, 28º, nº 2 e 32º, nº 1 da CRP, na medida em que os pericula libertatis não são suficientemente fundamentados na decisão que determina prisão preventiva’, mas aqui mostra-se ela manifestamente infundada, o que o permite considerar como questão simples a decidir, na óptica do artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro. A perspectiva do recorrente – e com a qual ele confrontou o tribunal de relação
– é que o ‘despacho recorrido não se encontra suficientemente fundamentado’, pois os ‘pericula libertatis invocados – perturbação da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa não estão fundamentados’ e antes estão ‘afirmados abstracta e genericamente’ (‘Não basta que exista uma suspeita, assente num qualquer estrato factual, mas antes factos de relevo e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar medida tão gravosa em relação a alguém que pode estar inocente’ – é a afirmação essencial do recorrente). Só que no acórdão recorrido, depois de referir com minúcia o ‘âmbito da aplicação das medidas de coacção em geral’ e de se enunciar que ‘a regra é a da liberdade, surgindo a prisão preventiva como uma medida coactiva excepcional, a verificar casuisticamente da sua necessidade, adequação e proporção’, passou-se a apreciar com cuidado ‘da oportunidade e bondade da decisão alvo de recurso’, para ver, ‘agora, em concreto, se houve ou não um sacrifício injustificado do direito à liberdade com o exarar do despacho recorrido’, nos seguintes termos:
‘Os elementos de prova que, constando dos autos foram considerados no despacho que determinou que os arguidos-recorrentes permanecessem em prisão preventiva, permitem inferir, nesta fase do inquérito, que se mostra fortemente indiciada a prática pelos arguidos e restantes detidos, de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado, p. e p. pelos art. 21 e 24 al. c) do DL 15/93, de
22/1, com prisão até 16 anos. Antes de mais, trata-se neste processo da investigação de uma remessa de quantidade apreciável de produto estupefaciente – 30 Kg. de heroína – importados de Espanha para Portugal. E é no desenvolvimento dessa investigação e da prisão preventiva de vários outros arguidos deste processo, que os ora recorrentes viram o Tribunal decretar-lhes a medida de prisão preventiva. Contrariamente à versão dos arguidos, existem indícios muito fortes de que qualquer deles está directamente envolvido nessa operação de introdução em Portugal de 31,360 Kgs de heroína proveniente de Espanha. Existem fortes elementos indiciários de que a referida droga veio para Portugal
‘a mando’ do arguido Isidoro (que quando foi detido já havia recebido o seu preço ou parte dele) e se destinava aos arguidos JS e JF.
É iniludível que a análise dos elementos indiciários permite concluir, sem qualquer esforço, pela existência de indícios suficientes da prática, pelos arguidos, do crime que lhes é imputado. Verifica-se, pois, o requisito de carácter específico enunciado na alínea a) do nº 1, do artº 202º do CPP’. E, quanto aos ‘requisitos consignados no art. 204º, do CPP’, posicionou-se assim o acórdão recorrido:
‘Contrariamente ao referido pelos arguidos na sua motivação de recurso, entendemos que, tal como considerou o despacho recorrido, existe manifesto perigo de continuação da actividade delituosa e de perturbação de recolha e conservação da prova e do normal desenrolar do processo (art. 204, al. a), b) e c), do CPP. E, esta nossa convicção deriva dos seguintes factores: Por um lado, é com fundada acuidade que se coloca a hipótese de, em liberdade, os arguidos voltarem a relacionar-se com a detenção de estupefaciente e a entrega de tal produto a terceiros, realçando-se, desde logo, que tudo leva a crer que os arguidos JF e JS vivem dessa actividade ilícita, apesar da referida exploração de um estabelecimento de hotelaria. Por outro, resulta evidente que a actividade de tráfico de estupefacientes em investigação não tem como únicos protagonistas os arguidos detidos estendendo-se a outros cujo papel será bem mais amplo, temendo-se que a colocação em liberdade dos arguidos possa frustar as investigações em curso havendo perigo de perturbação da prova e do desenrolar do processo, bem como da ordem e tranquilidade públicas tendo presente, desde logo e além do mais, que todos estes arguidos, ora detidos, apresentaram versões que nada têm a ver com o que já se sabe dos seus envolvimentos no transporte de heroina de Espanha para Portugal, em grandes quantidades. Tudo ponderado, é nossa opinião que se verificam também os requisitos a que se reporta a al. c), do art. 204º, do CPP, além da já mencionada al. b)’. De tudo isto resulta que, no plano essencial da fundamentação da decisão que firmou para já a medida de coacção da prisão preventiva do recorrente, não se vislumbra no acórdão recorrido a invocada ‘interpretação materialmente inconstitucional’ de que o recorrente pretende prevalecer-se, para conseguir obter a substituição de tal medida. Pelo contrário, a interpretação e aplicação dos normativos em causa do Código de Processo Penal mostra-se conforme às exigências constitucionais, no quadro da prisão preventiva, das garantias de defesa do arguido e do cumprimento do dever de fundamentação do decidido. Com o que é manifestamente infundada a dita questão de inconstitucionalidade.
4. Termos em que, DECIDINDO, não tomo, em parte, conhecimento do recurso e, noutra parte, nego-lhe provimento, condenando o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta'. B. Não se conformando com tal Decisão, veio dela o recorrente 'reclamar para a conferência, nos termos dos arts. 78º-B, nº 2 e 78º-A, nºs 3 e 4 da LTC
(redacção da Lei 13-A/98 de 26 de Fevereiro)', invocando em síntese o seguinte:
'Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende o ora reclamante que da parte da Meritíssima JIC e posteriormente o Tribunal da Relação ao não se pronunciar sobre a facultação dos elementos constantes dos autos relativos aos crimes imputados ao arguido, agiu, por omissão, na prática de uma inconstitucionalidade na interpretação que levou a cabo do artº 89º do CPP, por violação dos arts. 20º, 28º, nº 1 e 32º, nº 1 da Lei Fundamental'. O entendimento da 'Meritíssima JIC' de 'não ser competente para conhecer do requerido pelo arguido a 15/06/00', por considerar que 'encontrando-se os autos em fase de inquérito a autoridade judiciária competente para apreciar as pretendidas cópias é o M.P. (artº 273º, nº 1, 268º e 269º do CPP)', esquece que se está 'indubitavelmente perante actos processuais que contendem directamente com os direitos fundamentais do arguido, maxime no caso específico de aplicação de medida privativa da liberdade'. E, nos 'precisos termos do artº 269º, nº 1, alínea d) do CPP, deve o juiz ordenar ou autorizar a prática de quaisquer actos que a lei dele expressamente fizer depender', podendo, 'nos termos do nº 2 do mesmo preceito legal, tais actos serem requeridos pelo arguido' ('Persistindo o segredo de justiça quanto a todos aqueles que tiverem acesso ao processo durante a fase em que se mantém o inquérito, deverá o arguido ter acesso aos elementos probatórios constantes dos autos que são o suporte factual que sustenta a aplicação da medida privativa da liberdade').
'O princípio – continua o reclamante - de asseguramento de todas as garantias de defesa do arguido, plasmado no artº 32°, nº1 da CRP não se compatibiliza com as normas do artº 89º do CPP, na medida em que o juiz fique impedido naqueles casos de fazer uma apreciação em concreto da possibilidade de acesso do mandatário do arguido aos autos. Neste caso, partindo-se erroneamente do princípio de que a lei veda sempre e em qualquer caso o acesso aos autos, sem qualquer justificação plausível dessa negação, haverá violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais, não se garantindo ao arguido todas as garantias de defesa previstas e asseguradas pelo artº 32°, n° 1 da CRP. Assim, A facultação dos elementos constantes dos autos que sustentam a aplicação da medida de coacção prisão preventiva deve ser alvo de decisão judicial, após avaliação concreta das circunstâncias do caso e em ponderação com os riscos ligados a tal acesso respeitantes a actividade probatória não concluída, sempre em despacho devidamente fundamentado . Aliás, Só nos moldes expostos se poderá fazer um recurso da decisão que determina a aplicação da prisão preventiva que não seja de todo vazio de conteúdo uma vez que a mera invocação da gravidade dos crimes indiciados não permite qualquer defesa eficaz numa fase em que o arguido ainda se mantém sobre a alçada do princípio da presunção da inocência. Partilha-se da opinião de que na fase de investigação, designadamente quanto a crimes de grande complexidade probatória se deva garantir que a investigação decorra sem interferências externas que obstem à descoberta da verdade. Contudo, Não se deverá olvidar que a repressão penal deve, seja qual for o caso, acomodar-se aos princípios gerais de direito especialmente quando possa contender com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Pelo que, A interpretação da lei e consequentemente a decisão da sua aplicação ou não a um caso concreto devem estar em total conformidade com a Constituição. Assim, O facto da Meritíssima JIC não se ter pronunciado quanto ao requerimento do arguido, reflecte sem margens para duvida a interpretação errónea que fez da norma constante do artº 89º, nº 2 do CPP em desconformidade com os princípios constitucionais. Deste modo, O juízo levado a cabo pelo tribunal em não conhecer do pedido visto a norma não ter sido aplicada, parte de uma premissa errada uma vez que essa não aplicação radica numa interpretação errónea da mencionada disposição legal em clara infracção com os preceitos constitucionais dos arts. 20º, 28°, nº 1 e 32º, nº 1 da CRP'. Quanto à parte da Decisão Sumária em que se negou provimento ao recurso de constitucionalidade, 'cumpre demonstrar que os vícios invocados decorrem do acórdão recorrido, porquanto o mesmo não satisfaz os deveres de fundamentação requeridos pelo artº 97º, nº 4 com referência aos artºs 399º e 374º, nº 2 do CPP', fazendo-o o reclamante nestes termos:
'Na maioria dos casos de recurso das decisões que fixam ou mantêm a prisão preventiva a defesa fica coarctada pela mera invocação da existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, decorrendo esta prática, usualmente utilizada pelos tribunais portugueses, da interpretação que fazem do segredo de justiça elevando-o a regra geral do processo, em fase de inquérito, em detrimento do princípio geral da publicidade do mesmo. Não obstante, A defesa deve conformar-se com a necessidade do segredo de justiça, na fase de inquérito, mesmo porque tal instituto foi pensado não só para servir interesses do estado como também dos cidadãos constituídos arguidos, ainda não sujeitos a julgamento e assim sob a alçada do princípio da presunção da inocência. De forma que, Os limites da publicidade do processo estão consignados legalmente, cabendo ao juiz a aplicação da lei não descurando que a interpretação que faz da mesma tem de submeter-se, em última instância, aos preceitos constitucionais que a regem. Assim, A negação de um direito do arguido sem qualquer despacho que o fundamente, designadamente a consulta dos autos para um exame crítico das provas indiciárias que sustentam a medida de coacção que lhe foi aplicada, terá fortes implicações no consequente direito de acesso aos tribunais, em sede de recurso, de forma a que tal decisão possa ser alvo de fiscalização por tribunal superior . Contudo, Também é frequente o tribunal de 2ª instância manter e reiterar a decisão da 1ª instância, considerando que a mesma se encontra suficiente e devidamente fundamentada, passando pois, a explicitar as razões de facto que levaram a tal decisão tentando dessa forma salvaguardar uma decisão que em si mesma padece dos vícios de falta de fundamentação invocados pelo recorrente. Vícios esses que no fundo e a final não são de todo supridos, pois os elementos de facto directamente relacionados com o arguido que determinariam a verificação e avaliação concreta dos pressupostos de que depende a aplicação da prisão preventiva, elencados nas alíneas do artº 204° do CPP, não se vislumbram no acórdão recorrido. A fundamentação dos mencionados pressupostos não contém qualquer suporte factual concreto, uma vez que o tribunal a quo se limita a partir da suposição de que existindo elementos indiciários da prática do crime de tráfico de estupefacientes logo, directa e necessariamente, a conduta do arguido se colocado em liberdade preenche os requisitos processuais de aplicação da prisão preventiva. Certo é estarmos perante um juízo de prognose, contudo, esse juízo de prognose, por o ser, deve ser sustentado em factos concretos substancialmente relevantes para fundamentar uma decisão que determina a privação da liberdade. Ora, Essa fundamentação, apoiada em dados concretos, não se verifica no acórdão recorrido. Do juízo de prognose do tribunal não é possível afirmar-se que a conclusão final decorreu efectivamente de factos (e quais factos) directamente relacionados com o arguido em causa, ou se por outro lado, como nos parece, da invocada complexidade do caso e da virtualidade de em casos semelhantes tão frequentes actualmente tal previsão ser a normal, determinando-se necessariamente a aplicação da prisão preventiva. Deste modo, Não pode deixar de se considerar que o acórdão recorrido porque se consubstancia num mero aperfeiçoamento formal do despacho que fixou a medida de coacção, sem qualquer substrato substancial que refute os argumentos já trazidos à colação se encontra enfermo do vício de interpretação materialmente inconstitucional do artº 97°, nº 4 com referência aos artºs 399º e 374°, nº 2 do CPP por infringirem as regras constitucionais plasmadas nos artºs 205°, nº 1, 28°, no2 e 32°, nº 1 da CRP'. C. Na sua resposta, veio o 'representante do Ministério Público junto deste Tribunal' sustentar que 'deverá improceder a reclamação deduzida', invocando o seguinte:
'1º
É manifesto que o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre a questão do acesso integral aos autos, pretendido pelo arguido, com base num fundamento ou
‘ratio decidendi’ que nada tem a ver com a norma questionada pelo recorrente: a inadmissibilidade legal de se pretender atacar pela via do recurso um despacho proferido pelo Ministério Público no exercício da titularidade do inquérito.
2º Assentou, pois, o decidido – não numa avaliação substancial da questão suscitada face ao artigo 89º, nº 2 do Código de Processo Penal (a ponderação entre o interesse do arguido em aceder integralmente aos autos e o interesse público na preservação do segredo de justiça) - mas numa razão estritamente procedimental e adjectiva, conexionada com a definição do conceito de ‘despacho recorrível’ – em absoluto estranha à norma questionada pelo recorrente.
3º
É, por outro lado, manifesto, face ao nível de efectiva e suficiente fundamentação do decretamento da prisão preventiva, que a decisão recorrida não aplicou as normas atinentes ao âmbito do dever de fundamentação da imposição ao arguido da medida de prisão preventiva com o sentido, alegadamente inconstitucional, indicado pelo recorrente – e que se traduziria numa não enunciação ou especificação dos ‘pericula libertatis’ que a legitimariam – o que, a nosso ver, ditaria, de imediato, o não conhecimento do recurso interposto.
4º Acresce que não constitui, a nosso ver, questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base a um recurso de constitucionalidade, uma apreciação ‘directa’ pelo Tribunal Constitucional da suficiência do nível de fundamentação realizado nas instâncias, sem que as mesmas forneçam qualquer critério interpretativo genérico, susceptível de densificar e concretizar a norma constante do artigo 97º, nº 4, do Código de Processo Penal.
5º E sendo evidente que uma insuficiente fundamentação ‘fáctica’ do decidido apenas se poderia colocar em torno da questão de eventual inconstitucionalidade da própria decisão – e não de quaisquer normas por ela convocadas'. D. Foi entretanto colhida a informação nos autos, a pedido do Relator, de que, de acordo com o 'último reexame da prisão preventiva', imposta ao recorrente, foi ela mantida, por 'subsistir o circunstancialismo que a justificou' (decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, datada de 7 de Dezembro de 2000). E. Tudo visto, cumpre agora decidir. Facilmente se alcança, tal como regista o Ministério Público, na sua resposta, que o decidido no acórdão recorrido assentou – 'não numa avaliação substancial da questão suscitada face ao artigo 89º, nº 2 do Código de Processo Penal (a ponderação entre o interesse do arguido em aceder integralmente aos autos e o interesse público na preservação do segredo de justiça) - mas numa razão estritamente procedimental e adjectiva, conexionada com a definição do conceito de ‘despacho recorrível’', o que só pode significar que, a haver uma qualquer eventual questão de (in)constitucionalidade, ela residiria no complexo normativo atinente a essa 'razão estritamente procedimental e adjectiva' (complexo, aliás, que o reclamante acaba por identificar quando se refere ao entendimento da
'Meretíssima JIC' de 'não ser competente para conhecer do requerido pelo arguido a 15/06/00', por considerar que 'encontrando-se os autos em fase de inquérito a autoridade judiciária competente para apreciar as pretendidas cópias é o M.P.
(artº 273º, nº 1, 268º e 269º do CPP)' – seriam estas, então, as normas processuais a questionar pelo arguido, mas não o fez). O que não há é aplicação no acórdão recorrido, mínima que seja, da norma pretensamente questionada do artigo 89º, nº 2, do Código de Processo Penal como se entendeu na Decisão Sumária. Com o que, e neste aspecto, e para encurtar razões, não merecem atendimento os fundamentos invocados pelo reclamante, com o desenvolvimento que lhes foi dado. F. Resta a parte daquela Decisão em que foi negado provimento ao recurso. Também aqui não convence o discurso do reclamante pois não se vê onde possa estar a 'inconstitucionalidade da interpretação do artº 97º, nº 4, com referência aos artºs 399º e 374º, nº 2 do CPP', quando, como se diz na Decisão reclamada, a 'a interpretação e aplicação dos normativos em causa do Código de Processo Penal mostra-se conforme às exigências constitucionais, no quadro da prisão preventiva, das garantias de defesa do arguido e do cumprimento do dever de fundamentação do decidido'. Aliás, pode mesmo entender-se, como é a posição do Ministério Público, na sua resposta, que 'uma insuficiente fundamentação ‘fáctica’ do decidido apenas se poderia colocar em torno da questão de eventual inconstitucionalidade da própria decisão – e não de quaisquer normas por ela convocadas', e então seria caso de também aqui acabar por não se tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade. E é o reclamante que, no essencial, invoca que a
'fundamentação dos mencionados pressupostos não contém qualquer suporte factual concreto, uma vez que o tribunal a quo se limita a partir da suposição de que existindo elementos indiciários da prática do crime de tráfico de estupefacientes logo, directa e necessariamente, a conduta do arguido se colocado em liberdade preenche os requisitos processuais de aplicação da prisão preventiva', acrescentando que do 'juízo de prognose do tribunal não é possível afirmar-se que a conclusão final decorreu efectivamente de factos (e quais factos) directamente relacionados com o arguido em causa', o que envolve censura do decidido e não, em rigor, a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa reportada aos indicados preceitos do Código de Processo Penal. G. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e não se toma in totum conhecimento do recurso, condenando-se o reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em quinze unidades de conta. Lisboa, 31 de Janeiro de 2001 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa