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Processo n.º 571/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., Lda., requereu junto do Tribunal Judicial de Viseu a insolvência de B., SA.
Depois de regularmente citada, veio a requerida deduzir oposição, nos termos do disposto pelo artigo 30.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Por despacho proferido a 16 de fevereiro de 2011, decidiu o juiz do processo não receber a referida oposição, por não ter sido a ela junta a lista dos cinco maiores credores da requerida, conforme estatui o nº 2 do artigo 30.º daquele diploma.
Desse despacho interpôs a requerida recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando, entre o mais, que deveria ter sido notificada para suprir a deficiência que levara ao não recebimento da oposição que apresentara, pois que, conforme já julgara o Tribunal Constitucional no acórdão nº 556/08, a norma contida no nº 2 do artigo 30.º do CIRE – na interpretação segundo a qual deve ser desentranhada a oposição que não se mostre acompanhada de informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido, sem que a este seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência – seria inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no nº 4 do artigo 20.º da Constituição da República.
O Tribunal da Relação, por acórdão de 31 de maio de 2011, sufragando a tese da recorrente, julgou inconstitucional «a norma do nº 2 do artigo 30.º do CIRE (…) quando interpretada no sentido de não dever ser admitido o articulado da oposição quando não acompanhado da lista contendo a indicação dos cinco maiores credores da requerida e sem que a esta tenha previamente sido concedida a oportunidade de suprir a deficiência», e, em consequência, recusou a aplicação de tal norma e concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro que convidasse a requerida a apresentar, querendo, nova lista dos seus credores.
Desta decisão recorreu para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, e, no seguimento do processo, apresentou alegações em que conclui do seguinte modo:
1. A norma do n.º 2 do artigo 30.º do CIRE, quando interpretada no sentido de não dever ser admitido o articulado de oposição quando não acompanhado de lista contendo a indicação dos cinco maiores credores da requerida e sem que a esta tenha previamente sido concedida a oportunidade de suprir essa deficiência, é inconstitucional por violação do artigo 20º, nº 4, da Constituição.
2. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. O tribunal recorrido recusou a aplicação da norma constante do nº 2 do artigo 30º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na interpretação segundo a qual não deve ser admitido o articulado da oposição apresentado pelo devedor quando não acompanhado da lista contendo a indicação dos seus cinco maiores credores, sem que ao oponente tenha sido dada a oportunidade de suprir a deficiência.
Este artigo 30º, sob a epígrafe oposição do devedor, prescreve o seguinte:
1- O devedor pode, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, à qual é aplicável o disposto no nº 2 do artigo 25.º
2- Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respetivo domicílio.
3- A oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência.
4- Cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 3.º
5- Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, e a insolvência é declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo referido no nº 1, se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do nº 1 do artigo 20.º.
O preceito insere-se na fase de tramitação processual conducente à declaração da situação de insolvência, que poderá iniciar-se quer através da apresentação à insolvência por parte do devedor, quer através do pedido de declaração desta por qualquer credor ou pelo Ministério Público, em representação de entidades cujos interesses lhe estejam confiados (artigos 18º e 20º).
O devedor é citado pessoalmente para deduzir oposição, no termos do referido artigo 30º, e com a advertência da cominação prevista no seu n.º 5, no caso em que não tenha sido ele próprio a pedir a declaração de situação de insolvência (artigo 29º), pelo que essa formalidade tem em vista assegurar o direito de defesa relativamente aos factos que tenham sido alegados na petição inicial como integrando os pressupostos da declaração requerida (podendo basear-se a oposição na inexistência dos factos em que se fundamenta o pedido ou na inexistência da situação de insolvência).
O requisito da indicação da lista dos cinco maiores credores, que consta do n.º 2 desse artigo 30º, está em sintonia com a exigência que, por força do artigo 23º, n.º 2, alínea b), é igualmente feita ao requerente (seja o devedor ou qualquer credor), e explica-se pela imposição legal resultante do artigo 37º, n.º 3, de os cinco maiores credores conhecidos (com exclusão do requerente) deverem ser citados pessoalmente ou por carta registada da sentença de declaração de insolvência, quando tenha sido proferida, para a ulterior fase de reclamação de créditos (contrariamente ao que sucede com os demais credores e outros interessados, que apenas são citados por edital, como prevê o n.º 7 desse artigo).
O ónus processual de indicação dos cinco maiores credores, que incide sobre qualquer dos intervenientes na fase inicial do processo tem, pois, uma mera função instrumental, visando facilitar a identificação, pelo tribunal, dos credores não requerentes que devam ser objeto de uma forma de privilegiada de citação, para efeito do ulterior prosseguimento do processo.
Num plano preliminar de análise, cabe ainda referir que o juiz, nos termos do disposto no artigo 27º, n.º 1, alínea b), concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir vícios sanáveis da petição, designadamente no tocante à falada identificação dos cinco maiores credores, contrariamente ao que sucede no âmbito da oposição do devedor que, como ressalta da questionada norma do nº 2 do artigo 30º, sanciona imediatamente com o não recebimento o incumprimento do referido ónus processual.
Por outro lado, o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal recorrido, com a consequente recusa de aplicação da norma, tem justamente como pressuposto a impossibilidade legal de operar o aperfeiçoamento, sendo que não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a bondade da interpretação que instâncias fizeram do direito infraconstitucional.
3. A questão de constitucionalidade que vem discutida foi já decidida, em situação similar, pelo acórdão n.º 556/2008, para o qual a fundamentação do acórdão recorrido também remete, e não há motivo para alterar o entendimento que então foi formulado.
O artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente que esse direito se efetive – na conformação normativa pelo legislador e na concreta condução do processo pelo juiz - através de um processo equitativo (n.º 4).
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 741). Como concretização prática do princípio do processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, o direito ao contraditório, por seu lado, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a cada uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96).
Quer isto dizer, fundamentalmente, que no âmbito de proteção normativa do artigo 20.º da CRP se integrarão, além de um geral direito de ação, ainda o direito a prazos razoáveis de ação e de recurso e o direito a um processo justo, no qual se incluirá, naturalmente, o direito da cada um a não ser privado da possibilidade de defesa perante os órgãos judiciais na discussão de questões que lhe digam respeito. Integrando, assim, a “proibição da indefesa” o núcleo essencial do “processo devido em Direito”, constitucionalmente imposto, qualquer regime processual que o legislador ordinário venha a conformar – seja ele de natureza civil ou penal – estará desde logo vinculado a não obstaculizar, de forma desrazoável, o exercício do direito de cada um a ser ouvido em juízo.
Importa reter, no entanto, que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente relevantes, incluindo o próprio interesse de ambas as partes; em qualquer caso, à luz do princípio do processo equitativo, os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (Lopes do Rego, Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil, in «Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra, 2003, pág. 839, e ainda os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 122/02 e 403/02).
Assim, entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe à partida, e como se afirmou no acórdão n.º 508/2002, uma relação de equivalência constitucional: todos estes valores detêm igual relevância e todos eles são constitucionalmente protegidos. Ora, quando vinculado por vários valores constitucionais, díspares entre si pelo conteúdo mas iguais entre si pela relevância, deve o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou de outros (em idêntico sentido, mais recentemente, o acórdão n.º 20/2010).
Deve reconhecer-se, aliás, que o legislador, no âmbito do processo civil, e por via da reforma de 1996-1997, tem sido sensível à introdução de mecanismos que visem que o processo, pela sua própria estrutura, possa oferecer maiores garantias de justiça. Isso sucede, na parte que agora mais interessa considerar, através da garantia processual estabelecida no artigo 3º-A do Código de Processo Civil, que confere ao tribunal o dever de assegurar, durante todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso dos meios de defesa e na aplicação de cominações ou sanções processuais, e que tem como concretização, por exemplo, a possibilidade do convite às partes a aperfeiçoarem os seus articulados (artigo 508º, n.º 1, alínea b), 2 e 3). Mas também, no plano da garantia do contraditório, através do reforço do direito de resposta, e, especialmente, por força da regra do artigo 3º, n.º 3 (com diversos outros afloramentos), que atribui ao juiz, fora dos casos em que a audição da contraparte esteja expressamente prevista, o dever de verificar, em função das circunstâncias do caso, a conveniência de as partes se pronunciarem sobre qualquer questão de direito ou de facto que possa ter relevo para a apreciação e resolução da causa (sobre todos estes aspetos, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, págs. 36 e segs., em especial, 43 e 48).
4. O fomento da celeridade do processo de insolvência foi um dos objetivos do novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como tal expressamente assumido pelo legislador (cfr. nº 13 da exposição de motivos do diploma preambular) e que se pretendeu potenciar através de diversos fatores atinentes quer à estrutura do processo quer à própria tramitação processual, e, neste caso, por via, designadamente, da supressão da duplicação do chamamento de credores ao processo, que agora se concentra numa única fase de citação com vista à reclamação dos respetivos créditos (artigos 37º e 128º e segs.).
Como se viu, a exigência de indicação dos cinco maiores credores no articulado de oposição do devedor tem justamente em vista permitir a identificação daqueles que, na sequência da prolação da sentença de declaração de insolvência, devam ser citados pessoalmente ou por carta registada para efeito de exercerem o direito de reclamarem os seus créditos.
Ao processo de insolvência, ainda que integre o domínio mais geral do processo civil, não pode deixar de reconhecer-se uma certa especificidade, que justificou que a sua regulamentação fosse retirada do Código de Processo Civil, onde tradicionalmente se inseria, e coligida num diploma autónomo, através da aprovação, pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, depois substituído pelo atual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Não se põe em dúvida que o legislador dispõe de uma ampla margem de livre conformação para, com base em razões de política legislativa que lhe cabe definir, modelar uma forma de processo que permita dar satisfação, de modo célere e eficaz, aos direitos dos credores.
Também não se questiona que o ónus processual imposto ao devedor quando pretenda deduzir oposição ao requerimento de declaração de situação de insolvência – por via da falada norma do artigo 30º, n.º 2, do CIRE -, não suscita especiais dificuldades de cumprimento, visto que o devedor, pela sua própria condição de sujeito processual passivo, não pode deixar de conhecer os factos relevantes relativos à sua situação patrimonial e está particularmente habilitado a fornecer os elementos de informação que interessam ao prosseguimento do processo.
A solução normativa, tal como se conclui no acórdão n.º 556/2008, é suscetível de violar o princípio do processo equitativo, não tanto pelo maior ou menor grau de dificuldade que o cumprimento do ónus pudesse suscitar, mas pelo caráter excessivo da cominação que lhe está associada, quando entretanto nem sequer se admite a possibilidade de suprimento da deficiência do articulado.
De facto, o n.º 2 do artigo 30º do CIRE estabelece um mero requisito formal que se destina a facilitar a identificação pelo tribunal dos credores que devam ser citados pessoalmente ou por carta registada, tendo por isso uma mera função instrumental relativamente ao ulterior desenvolvimento da tramitação processual, em nada interferindo com a substanciação dos factos ou fundamentos jurídicos que possam a relevar para o sentido da decisão a proferir quanto à declaração de insolvência.
Apesar disso, o não cumprimento desse ónus acarreta o não recebimento do articulado e produz um efeito de revelia correspondente à não apresentação de oposição, implicando que se considerem confessados os factos alegados na petição inicial, e que a insolvência possa declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo para deduzir a oposição (artigo 30º, n.º 5).
A sentença de declaração de insolvência representa um momento fulcral do processo, que se não limita a conformar a tramitação posterior - com consequências no plano da apreensão de bens, reclamação de créditos, liquidação da massa insolvente, verificação e graduação dos créditos e pagamento dos credores -, mas constitui também uma fonte de importantes efeitos, desde logo sobre o devedor, o principal dos quais é a privação dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente.
A atribuição de tais consequências a uma mera deficiência formal do articulado, sem que ao interessado seja dada sequer oportunidade de aperfeiçoamento, é manifestamente desproporcionada, tanto que o oponente pode ter entretanto alegado e provado factos que pudessem conduzir a um juízo de inexistência da situação de insolvência.
Além de que a solução legal gera uma manifesta situação de desigualdade entre as partes no processo, já que idêntica falta em que tenha incorrido o requerente não impede, nos termos previstos no artigo 27º, n.º 1, alínea b), do CIRE, que este possa corrigir a irregularidade dentro do prazo que lhe é cominado para o efeito.
Ainda que o legislador possa arquitetar o processo de insolvência segundo critérios de simplicidade e celeridade, de forma a assegurar de modo eficiente a satisfação dos interesses credores, o certo é que os mecanismos processuais pelos quais se pretenda atingir esses objetivos não podem criar de forma desproporcionada dificuldades ou constrangimentos ao direito de acesso aos tribunais e, em particular, ao exercício do direito de defesa.
O princípio da celeridade processual não é um valor absoluto, pelo que, em cada caso, não poderá deixar de ser confrontado, segundo critérios de concordância prática, com outros bens ou valores constitucionalmente protegidos. Não poderá aceitar-se, pela sua manifesta desproporcionalidade, que se pretenda obter uma mais rápida resolução dos litígios através de medidas processuais que se destinem a favorecer a condenação de preceito, por via do funcionamento do efeito de revelia, em completo detrimento dos interesses da defesa.
A decisão recorrida, formulando um juízo de inconstitucionalidade relativamente à referida norma do n.º 2 do artigo 30º do CIRE, por violação do princípio do processo equitativo, não merece qualquer censura.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação do princípio do processo equitativo consagrado no artigo 20º, n.º 4, da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 30º do CIRE, quando interpretada no sentido de não dever ser admitido o articulado da oposição quando não acompanhado da lista contendo a indicação dos cinco maiores credores da requerida e sem que a esta tenha previamente sido concedida a oportunidade de suprir a deficiência;
Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 5 de julho de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral (Vencida, conforme declaração que segue em anexo) – Gil Galvão.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida, pelas razões que a seguir resumo:
1. Decidiu o Tribunal, continuando jurisprudência anterior, julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 30.º do CIRE, na dimensão normativa agora em causa, por entender que tal dimensão violava o disposto no nº 4 do artigo 20.º da CRP.
A meu ver, o Tribunal adotou aqui uma interpretação da norma constitucional que acentua de forma indevida a componente subjetiva do princípio que nela se contém.
2. O artigo 20.º consagra um princípio que é, ele próprio, elemento integrante da ideia de Estado de direito.
Na verdade, sem a possibilidade do acesso de todos ao direito e à tutela jurisdicional efetiva dificilmente se justificaria que aos tribunais do Estado ficasse em princípio reservada a função de dirimir conflitos (artigo 202.ºda CRP); dificilmente se compreenderia que fosse proibido o recurso à autodefesa; dificilmente se explicaria que se confiasse na capacidade da comunidade política para assegurar no seu seio a paz e a segurança jurídica.
Ora este princípio de tutela jurisdicional efetiva – que se integra assim na ideia mais vasta de Estado de direito - não pode ter apenas uma dimensão subjetiva.
É certo que dele nascem direitos, ou posições jurídico-subjetivas constitucionalmente tuteladas, entre as quais se conta o direito a um processo equitativo, contrapartida necessária do direito de acesso à justiça. Quer isto dizer que as pessoas detêm, na verdade, o direito [fundamental] a um processo ordenado de tal forma que permita alcançar a justa composição do litígio. No entanto, a efetivação deste direito pressupõe que os poderes públicos cumpram as tarefas a que estão adstritos por força da dimensão objetiva do princípio que o artigo 20.º consagra, dimensão essa que implica o dever de erigir instituições, definir procedimentos e emitir em geral normas que tornem possível o acesso ao tribunal e ao processo justo.
Nesta ineliminável dimensão objetiva do princípio contido no artigo 20.º da CRP, e que tem como destinatário geral o próprio Estado, incluem-se ordens de regulação que se dirigem especificamente ao legislador ordinário. O princípio da tutela jurisdicional efetiva, enquanto elemento integrante da ideia de Estado de direito, exige desde logo que o legislador defina as regras do processo, seja ele civil, penal ou administrativo. E obriga-o a ter em conta, no modo de definição dessas regras, todas as dimensões que compõem o imperativo constitucional de edificação de um processo justo, fazendo-as concordar praticamente.
3. As normas do processo de insolvência integram o domínio mais geral das normas de processo civil. No entanto, detêm, dentro deste âmbito, um cunho específico, o que aliás terá levado a que, a partir de 1993, o legislador tivesse optado por coligi-las autonomamente, com a elaboração do código da insolvência. A especificidade reside na densa responsabilidade que tem todo o direito da insolvência na garantia da fluidez do tráfego jurídico, pelo objetivo precípuo, que tal direito prossegue, de pôr à disposição dos credores instrumentos jurídicos eficientes que possibilitem a satisfação dos seus créditos. O imperativo constitucional de edificação de um processo justo, no que a este específico processo respeita, não pode por isso ser recortado sem que se considere esta última componente, que integra portanto o conteúdo da ordem de regulação que impende sobre o legislador ordinário. De forma a garantir a efetividade do exercício do direito a um processo justo, este último está obrigado, no que ao direito da insolvência diz respeito, a erigir instituições e a definir procedimentos que tenham em conta, não apenas a defesa dos interesses substanciais e processuais do devedor, mas ainda a defesa dos interesses dos credores (em cumprimento, ainda, da garantia objetiva do património privado inserta no nº 1 do artigo 62.º da CRP), e, concomitantemente, da própria comunidade.
4. É, pois, à luz destes critérios que se deve saber se a norma sob juízo no caso concreto viola o disposto no nº 4 do artigo 20.º
Não penso que assim seja. A obrigatoriedade, para o devedor-oponente, de juntar, ao requerimento de oposição, a lista dos cinco maiores credores, visa facilitar a ação do Tribunal. Mais precisamente, visa propiciar-lhe a informação que é necessária para que, sendo caso disso, se faça o chamamento dos ditos credores ao processo. Trata-se de uma exigência compreensível, no contexto de uma política legislativa toda ela inspirada pela necessidade de arquitetar, nestes domínios, processos céleres e eficazes na satisfação dos créditos. Tal política é, face às coordenadas jurídico-constitucionais dentro das quais se move, nestes domínios, a margem de livre conformação do legislador, perfeitamente legítima. Por outro lado, o ónus que impende sobre o devedor – de indicação dos seus maiores credores – não é um ónus pesado, ou de árduo e difícil cumprimento. Por regra não o será nunca: ninguém, melhor do que o devedor, conhecerá o universo dos credores. Mas não o será especialmente naquela fase do processo em que o mesmo devedor apresenta a sua oposição à declaração de insolvência.
Naturalmente que não estava o legislador ordinário obrigado a seguir a solução que seguiu. A exigência de que o devedor faça a indicação dos seus cinco maiores credores no momento em que se opõe à declaração da sua insolvência é uma exigência nova, feita pelo novo Código da Insolvência. Não a continha o regime antes vigente, que exprimia portanto uma diferente (mas igualmente legítima) escolha do legislador. Mas a verdade é que tal exigência nova se compreende ainda no contexto de prossecução de uma política legislativa que, face aos parâmetros constitucionais que lhe são aplicáveis, me não parece merecer qualquer censura.
Maria Lúcia Amaral