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Proc. nº 1061/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Promotor de Justiça junto do 3º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, por libelo acusatório de 19 de Março de 1997, imputou a P... a prática de um crime de furto, previsto e punível pelo artigo 201º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar.
O 3º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, por acórdão de 24 de Junho de 1998, condenou P... pela prática do crime que lhe foi imputado na pena de 7 (sete) meses de prisão.
2. P... interpôs recurso do acórdão de 24 de Junho de 1998 para o Supremo Tribunal Militar. Nas respectivas alegações, o recorrente sustentou a inconstitucionalidade do artigo 4º do Código de Justiça Militar, quando interpretado no sentido de não permitir a aplicação ao direito penal militar do instituto da suspensão da pena, por violação do disposto nos artigos 13º, 30º, nº 4, 18º, nº 2, e 266º da Constituição. O recorrente sustentou, também, a inconstitucionalidade do sistema de penas do Código de Justiça Militar e dos artigos 24º, nº 1, alínea b), 26º e 30º do mesmo diploma, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1, 18º, nºs 1 e 2, 25º e 266º, da Constituição.
O recorrente sustentou, por último, a inconstitucionalidade do artigo 201º do Código de Justiça Militar, por violação do artigo 213º da Constituição e por violação dos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição (quando em confronto com o artigo 203º do Código Penal).
O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 29 de Outubro de 1998, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido. Relativamente às questões de constitucionalidade suscitadas, o Supremo Tribunal Militar decidiu o seguinte:
No que respeita ao artigo 201º do Código de Justiça Militar, considerou não se verificar qualquer inconstitucionalidade, dado tal norma prever um crime de furto essencialmente militar e a penalidade em causa ser idêntica à do artigo 204º, nº 2, do Código Penal;
Quanto ao sistema de penas do Código de Justiça Militar, entendeu não se verificar também qualquer inconstitucionalidade, em virtude de às penas previstas pela lei penal militar assistirem também as finalidades das penas previstas no Código Penal, e de tais normas, abstractamente consideradas, isto
é, sem haver tipificação de um dado ilícito, se apresentarem como inócuas; No que respeita, por último, ao artigo 4º do Código de Justiça Militar, o tribunal recorrido afirmou que a não aplicação do instituto da suspensão da pena no direito penal militar não resulta só do preceituado nessa disposição legal, mas também da circunstância de tal matéria não constituir lacuna a suprir mediante recurso à legislação penal subsidiária, ou seja, ao Código Penal.
3. P... interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 29 de Outubro de 1998, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 201º, nº 1, alínea c), e 4º do Código de Justiça Militar.
Junto do Tribunal Constitucional o recorrente alegou, tirando as seguintes conclusões:
1ª - A norma do Art. 201º do CJM, ao considerar o furto de um bem de outro militar ou das Forças Armadas como crime essencialmente militar, é inconstitucional, tanto face ao teor do Art. 213º da CRP revista pela Lei Constitucional nº 1/97, como face ao Art. 215º do anterior texto, já que representa a reitrodução na lei penal militar do foro pessoal, visto que o referido crime, no âmbito do CJM de 1925 apenas era um crime militar em razão da qualidade militar do delinquente.
2ª - A norma da alínea c) do nº l do Art. 201º do CJM é inconstitucional, por prever uma pena tão desproporcionada nos seus limites mínimo e máximo face à prevista no Art. 203º do CP para o crime correspondente, o que viola o princípio da igualdade conjugado com o da proporcionalidade, constantes dos Arts. 13º nº 1 e 18º da CRP.
3ª - A norma da al. b) do nº 1 do Art. 201º do CJM já foi julgada inconstitucional pelo Acórdão nº 334/98, 06-05-98, do Tribunal Constitucional e se a al c) da mesma norma não fosse também julgada inconstitucional teríamos o absurdo de um furto de valor muito superior, enquadrado na al. b) do citado artigo ser punido, por força da declaração de inconstitucionalidade, nos termos do Art. 203º do CP, com uma pena entre os limites mínimo e máximo de um mês e três anos, respectivamente, enquanto um crime de valor inferior, enquadrado na alínea c) do mesmo artigo, seria punido com penas de 2 a 8 anos de presídio militar, em violaçao do princípio da igualdade e da proporcionalidade constantes do Art. 13º nº 1 e 18º da CRP.
4ª - O ora recorrente não foi acusado no libelo da prática de um crime de furto, com arrombamento, escalamento ou uso de chaves falsas, não foi dada como provada qualquer matéria de facto que conduza a essa qualificação, nem o tribunal 'a quo' procedeu a qualquer convolação nesse sentido, pelo que não existe legitimidade para fazer a comparação entre a pena prevista na alínea c) do nº 1 do Art. 201º do CJM com a prevista no Art. 204º nº 2 do CP.
5ª - O 3º TMT de Lisboa fixou a matéria de facto dada como provada, dizendo que o ora recorrente, de forma não apurada, abriu a porta do anexo do Bar de praças
(a qual não estava fechada à chave) e nele entrou e de onde retirou os citados bens, logo, segundo o princípio de direito 'in dubio pro reu' impõe-se a qualificação do crime nos termos do Art. 203º do CP.
6ª - As normas dos Art.s 24º nº l al. b), 26º e 30º do CJM foram concretamente aplicadas no Acórdão recorrido e a sua inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. Tais normas fazem a distinção das penas privativas da liberdade entre prisão e presídio militar, esta mais gravosa e infamante, sendo por isso inconstitucionais, mormente com a interpretação que delas faz o Tribunal 'a quo' ao considerar que a qualificação 'militar' as diferencia da pena de prisão prevista no Código Penal e, como tal, impede a sua substituição por multa nos temos do Art. 44º nº l do CP ou a suspensão da sua execução nos termos do Art.
50º nº 1 do CP, salvo nos casos previstos no Art. 46º do violando assim os princípios da igualdade, da universalidade e da proporcionalidade, consagrados nos Art.s 12º nº 1, 13º nº 1, 18º e 204º da CRP atento o disposto na lei geral.
7ª - Conforme a solução perfilhada nos Códigos Penais de 1982 e 1985 que acolhe os ensinamentos dos mais representativos cultores da ciência penitenciária, a execução das penas de privação da liberdade só pode diferenciar-se em função da sua maior ou menor duração, sendo ainda fundamental retirar às penas de prisão todo o carácter infamante.
8ª - Dispoe o Art. 50º nº 1 do CP que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e
às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
9ª - A suspensão da execução da pena de prisão constitui um poder vinculado do julgador que terá de a decretar sempre que se verifiquem os apontados pressupostos.
10ª - No caso sub judice, o recorrente era réu primário, tinha bom comportamento anterior e posteriormente aos factos, confessou espontaneamente os factos desde o início e de forma relevante para a descoberta da verdade, mostra-se arrependido e ressarciu todos os danos resultantes do seu acto delituoso.
11ª - Estão assim reunidos todos os pressupostos de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, isto é, 7 meses de presídio militar.
12ª - Não tem base factual ou legal a decisão do Tribunal 'a quo' quando sustenta de forma reiterada, que na vigência do actual CJM não é legalmente admissível a suspensão da execução da pena de prisão.
13ª - O CJM não prevê expressamente a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão mas também não a proíbe, sendo certo que o Art. 4º do CJM determina a aplicação subsidiária das disposições do CP, como igualmente o Art. 8º do CP determina a aplicação subsidiária aos factos puníveis pelo direito penal militar e restante legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário.
14ª - Nestes termos, o Art. 4º do CJM, se interpretado no sentido de não acolher o instituto da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no Art. 50º nº do CP, é inconstitucional por ferir os princípios constitucionais da igualdade conjugado com o da proporcionalidade, constantes dos Art.s 13º nº l e 18º da CRP. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser declarada a inconstitucionalidade das normas do Art. 4º do CJM, com a interpretação que lhe é dada pelo Tribunal 'a quo' de não acolher o instituto da suspensão da execução da pena de prisão, dos Art.s 24º nº 1 al. b) , 26º e 30º do CJM, na interpretação que delas faz o Tribunal 'a quo' no sentido de que a qualificação 'militar' da pena de privação da liberdade ali prevista afastar a possibilidade legal da suspensão da sua execução, e do Art. 201º nº 1 al. b) do CJM, por qualificar como essencialmente militar um crime que só o é em razão da qualidade de militar do delinquente, o que representa a reintrodução na legislação penal militar do foro pessoal que a CRP vigente afastou e ainda porque pune de forma desigual e desproporcionada o crime de furto ali previsto face ao correspondente crime previsto no Art. 203º do CP, como resulta da simples comparação dos respectivos limites mínimo e máximo.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1º Pode qualificar-se como sendo essencialmente militar o crime de furto, cometido por um militar em detrimento de outro ou do património ou das Forças Armadas, dentro das instalações militares e em grosseira violação do especial dever de lealdade e respeito entre militares, com quebra da relação de confiança que tem necessariamente de existir entre quem está ao serviço das Forças Armadas, numa mesma unidade.
2º Nestas circunstâncias, o cometimento do crime de furto - para além de traduzir violação do direito de propriedade - implica lesão de bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas, valores essenciais à realização das tarefas de defesa nacional que lhes estão cometidas.
3º A norma incriminadora do furto militar, ao sancionar tal crime, sempre e necessariamente, com pena privativa de liberdade (inclusive nos casos em que o arguido já não está ao serviço efectivo das Forças Armadas) - ao passo que as normas vigentes ao direito penal comum autorizam, segundo as circunstâncias, o julgador a sancionar o furto com prisão ou multa - viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
4º Na verdade, a imposição necessária.ao arguido de uma pena privativa de liberdade, em quaisquer circunstâncias, não pode justificar-se em função da tutela dos valores típicos da comunidade militar, traduzindo solução legislativa arbitrária e discricionária.
5º Termos em que deverá proceder o recurso, pelos fundamentos atrás referidos.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Delimitação do objecto do recurso
5. O recorrente suscita, nas alegações do recurso de constitucionalidade, a inconstitucionalidade dos artigos 24º, nº 1, alínea b),
26º e 30º do Código de Justiça Militar. Contudo, no requerimento de interposição do recurso, apenas se referiu às normas contidas nos artigos 201º, nº 1, alínea c), e 4º do Código de Justiça Militar. Nessa medida, e uma vez que o objecto do recurso de constitucionalidade é definido no respectivo requerimento, não sendo possível o seu alargamento nas alegações, o Tribunal Constitucional não apreciará a conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 24º, nº
1, alínea b), 26º e 30º do Código de Justiça Militar.
Por outro lado, é manifesto que não há interesse processual na apreciação da questão de constitucionalidade relacionada com a aplicação do artigo 4º do Código de Justiça Militar, interpretado no sentido de impedir a aplicação subsidiária, em direito penal militar, dos preceitos do Código Penal que prevêem o instituto de suspensão da pena. Com efeito, o acórdão recorrido enfrenta a questão de uma hipotética aplicabilidade (impossível legalmente na sua perspectiva) das normas do Código Penal relativas à suspensão da pena e conclui, analisando ainda que brevemente as circunstâncias do caso, que a suspensão da execução da pena nunca deveria ser decretada.
Assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre o artigo 4º do Código de Justiça Militar, admitindo a aplicabilidade, no caso, do instituto da suspensão da execução da pena, não lograria alterar o sentido da decisão recorrida, já que sempre subsistiria a análise efectuada das circunstâncias que impediriam que tal medida fosse decretada. Por estas razões e ao abrigo do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil ex vi do artigo 65º da Lei do Tribunal Constitucional no que se refere à previsão aí contida das questões de manifesta necessidade, não se conhecerá a questão da alegada inconstitucionalidade daquelas normas, sendo o objecto do recurso limitado à apreciação da constitucionalidade da alínea c) do artigo 201º do Código de Justiça Militar.
B A questão de constitucionalidade do artigo 201º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar em face dos artigos 213º, 13º e 18º, nº 2, da Constituição
6. A primeira questão suscitada pelo recorrente é a falta de natureza essencialmente militar do crime previsto e punido pelo artigo 201º, nº
1, alínea c), do Código de Justiça Militar, violando tal preceito, consequentemente, os artigos 213º (versão de 1997) e 215º (versão de 1989) da Constituição. A esta questão acresce a de saber se a diferença da medida legal da pena entre aquele crime e o crime de furto previsto no artigo 203º, nº 1, do Código Penal violará a igualdade e a proporcionalidade constitucionalmente exigidas. Com efeito, entre as medidas legais das penas contidas nos dois preceitos invocados existe uma dupla diferença: por um lado, o limite mínimo da pena do furto tal como é prevista no artigo 203º, nº 1, do Código Penal é inferior em cerca de dois anos (mais precisamente, um ano e onze meses) à prevista no artigo 201º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar, sendo o limite máximo daquele também inferior em cinco anos ao limite máximo deste; por outro lado, o preceito do Código Penal admite a pena alternativa de multa enquanto o Código de Justiça Militar não a contempla.
Entre o direito penal geral e o direito penal cujo objecto está associado à actividade militar há, seguramente, uma relação de especialidade, no sentido de este último se referir à tutela de bens jurídicos especiais, inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às Forças Armadas.
A diferenciação entre o direito penal e o direito disciplinar é uma das características irrenunciáveis da configuração do Estado de direito democrático como sistema diverso das suas concretas instituições internas. Os fins gerais do Estado de direito não se confundem em absoluto com o bom funcionamento e a auto-reprodução dessas mesmas instituições. É essa capacidade de distinguir o funcionamento do Estado de direito do funcionamento interno das suas concretas instituições que permite não confundir a desobediência ao superior hierárquico, por si mesma, com a violação do Estado de direito (o que, em última análise, também explica a estatuição do artigo 271º, nº 3, da Constituição reiterada pelo artigo 36º, nº 2, do Código Penal, segundo a qual
'cessa o dever de obediência quando conduza à prática de um crime').
Deste modo, uma especial configuração dos crimes relacionados com a instituição militar terá que ser justificada, para além dos aspectos conexionados com a qualidade de autor ou com a disciplina das Forças Armadas, pela protecção de bens essenciais à existência, coesão e preservação da sociedade em geral - pois só tais bens têm específica dignidade penal (sobre esta relação entre a tutela penal e a essencialidade dos bens militares para o Estado de direito, cf. Acórdãos nºs 958/96, D.R., II Série, de 19 de Dezembro de
1996; 329/97, de 17 de Abril de 1997, inédito; 201/98, D.R., II Série, de 24 de Julho de 1998).
Não será, assim, uma mera preservação da disciplina militar, como ratio da pena ou de uma sua agravação relativamente ao crime comum, que justificará a natureza estritamente militar dos tipos criminais. A categoria dos crimes essencialmente militares não poderá ser delimitada formalmente como classe de crimes relacionados com a Instituição Militar por qualquer ponto de conexão, mas apenas como classe de crimes que atentem contra bens jurídicos militares de relevância geral no Estado de direito democrático.
7. Em face destas considerações, poder-se-á admitir que um crime de furto praticado numa concreta instituição militar, por um militar contra outro militar, ou tendo por objecto bens que não se encontram particularmente adstritos à prossecução das finalidades cometidas às Forças Armadas, atinge uma dignidade punitiva específica relativamente a um crime comum que ultrapasse meras razões disciplinares? Tratar-se-á, como afirma nas suas alegações o Ministério Público, da lesão de 'bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas'?
Ora, com efeito, a coesão, a confiança e a lealdade entre os membros da Instituição Militar é um valor instrumental da boa realização das suas tarefas e da sua credibilidade em geral, mas já é duvidoso que tais valores possam estar associados ao mero estatuto ou à simples qualidade do agente que realiza um qualquer facto ilícito, sem que o facto, por si, tenha natureza intrinsecamente adequada a afectar as funções cometidas pelo Estado de direito
às Forças Armadas.
8. Sobre a questão geral subjacente ao que atrás foi referido, o Tribunal Constitucional tem vindo a aceitar uma noção objectiva de crime essencialmente militar, desde o Acórdão nº 347/86 - D.R., I Série, de 20 de Março de 1987. E na sua jurisprudência mais recente, tem exigido a violação de um bem especificamente militar na qualificação de um crime como essencialmente militar.
Esta noção de objectividade no conceito de crime essencialmente militar tem correspondido, na jurisprudência deste Tribunal, a um equilíbrio entre uma noção absolutamente objectiva de bem militar e a uma noção subjectiva-objectiva, sem, no entanto, se aceitar, em caso algum, uma pura determinação da natureza essencialmente militar pelo mero estatuto dos agentes ou pela simples violação de deveres disciplinares sem qualquer repercussão intrínseca nos valores da preservação, coesão e credibilidade das Forças Armadas.
9. As circunstâncias do caso, tomando em consideração que o objecto da acção é constituído por bens que não têm uma conexão específica e funcional com a instituição militar (trata-se de um auto-rádio, de quantia pequena de dinheiro proveniente das receitas do bar de praças, de 4 chávenas de café e cinco pires), enfraquecem a conexão do facto com os valores especificamente militares não meramente disciplinares, remetendo-o para uma área em que elementos qualificativos da natureza militar são contrabalançados por elementos acentuadores de uma natureza comum. Com efeito, este caso é muito próximo do que foi decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 49/99, de 19 de Janeiro, embora esse seja relativo à alínea d) do nº 1 do artigo 201º do Código de Justiça Militar.
Não obstante alguns dos bens furtados (o dinheiro e as chávenas de café) estarem relacionados com o funcionamento do bar de praças (o auto-rádio pertencia a um outro militar, o que, nesse aspecto, aproxima ainda mais a situação da decidida no referido Acórdão nº49/99), os elementos de conexão com a Instituição Militar verificados não consubstanciam a violação de um bem jurídico militar, no sentido de ser atingido um interesse associado à função militar específica da defesa nacional, condição do livre desenvolvimento dos cidadãos portugueses e da preservação dos seus interesses individuais e colectivos.
Não há aqui uma ligação verdadeiramente intrínseca com a Instituição Militar, que deva associar a protecção do bem jurídico concretamente afectado à função específica da Instituição Militar.
A circunstância de se tratar de um furto de bens relacionados com o funcionamento de um bar de praças não é suficiente para suscitar aquela conexão, pois, no contexto geral da Instituição Militar, o bar desempenha uma função acessória que não se confunde com as finalidades cometidas pelo Estado de direito às Forças Armadas. Assim, a natureza dos bens furtados, a qualidade da vítima e o local da prática do crime são, no caso concreto, elementos meramente circunstanciais e eventualmente agravantes, mas não modificativos da estrutura essencial do ilícito e do bem jurídico tutelado. Por outro lado, o interesse na tutela da disciplina das Forças Armadas, que aqui se desenhará, não consubstancia, por si, um bem militar digno de protecção penal, não transcendendo uma tutela secundária e reflexa derivada da incriminação pelo furto, por força da qualidade do seu autor.
III Decisão
10. Por tudo o que foi exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional a norma constante do artigo 201º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, na medida em que qualifica como essencialmente militar o crime de furto de objectos que não se encontram particularmente adstritos à prossecução das finalidades cometidas às Forças Armadas, por violação dos artigos 213º e 215º da Constituição (na versão de 1989); b. Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 30 de Junho de 1999. Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Bravo Serra Paulo Mota Pinto (vencido quanto à inconstitucionalidade da qualificação do crime como 'essencialmente militar', pelo que teria concedido provimento ao recurso com outros fundamentos, nos termos da declaração de voto que junto).
Declaração de voto Votei vencido, quanto à fundamentação, por considerar que o crime em causa pode ser qualificado como essencialmente militar, enquanto consiste num furto de bens de um bar de praças, que se encontra adstrito ao funcionamento da instituição militar, e não simplesmente afecto a um uso particular. Não me parece que, no quadro do funcionamento da instituição militar, seja lícito distinguir entre bens que, estando ao seu serviço (e não sendo, pois, por exemplo, simplesmente propriedade privada de militares) desempenham funções mais ou menos acessórias e aqueles directamente utilizados no desempenho da função de defesa nacional. A meu ver, sendo o furto realizado por um militar (obviamente, com violação também dos seus deveres militares), em instalações militares, e tendo como objecto bens afectos ao funcionamento da instituição militar – ainda que ao serviço de um bar de praças –,pode reconhecer-se a afectação de um bem jurídico ligado especificamente à instituição militar, que permite a qualificação do crime como essencialmente militar. Votei, todavia, a decisão no sentido da inconstitucionalidade com fundamento no carácter desproporcionado da pena prevista para tal crime, em comparação com a cominada para o furto, simples e qualificado, no Código Penal (artigos 203º, n.º
1 e 204º, n.º 1) – designadamente, dada a ausência da previsão de qualquer pena de multa em alternativa à pena de prisão, e considerando que a moldura penal desta excede,