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Proc. nº 399/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão do Tribunal Colectivo da 10ª Vara Criminal de Lisboa foi o ora recorrente J..., entre outros, condenado: i) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 10 anos de prisão; ii) pela prática de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelo art. 256º do C.P.P., na pena de 2 anos de prisão. Em cúmulo foi o ora recorrente condenado na pena única de 11 anos de prisão. Foi ainda condenado na pena acessória de expulsão do território português, logo que deva ser restituído à liberdade, e de interdição de entrada em Portugal pelo período de 10 anos.
2. Inconformado o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que então apresentou o recorrente disse, a concluir:
'1º - O Tribunal a quo proferiu o seu douto acórdão, agravando a pena em concreto aplicada ao ora recorrente, tendo em conta o despacho de fls. 499, que por tal veio alterar substancialmente os factos descritos na acusação.
2º - Ao assim actuar, o Ilustre Tribunal a quo violou o nº 1 do artigo 359º, do Código de Processo Penal, já que considerou não ter havido alteração substancial dos factos descritos na acusação, quando deveria ter considerado o contrário.
3º - Também ao ter em conta o despacho de fls. 499 o douto acórdão recorrido foi basear-se num despacho ferido de inconstitucionalidade, já que ao ser proferido implica no espírito do julgador uma presunção de culpabilidade, completamente contrária ao nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
4º - Face ao exposto, deve o douto acórdão ser revogado.
5º - Bem como ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 358º do Código de Processo Penal, por ser contrário ao nº 2, do artigo 32º da Constituição'.
3. O Ministério Público respondeu, concluindo, em síntese, pela improcedência do recurso.
4. Foram então proferidas, a requerimento do recorrente, alegações escritas, tendo este aproveitado para reafirmar a alegada inconstitucionalidade do art.
358º do CPP. Fê-lo nos seguintes termos:
'1º - O digníssimo Tribunal a quo proferiu o seu douto acórdão, agravando a pena em concreto aplicada ao recorrente, tendo em conta o despacho de fls. 499, que considera haver alteração não substancial dos factos;
2º - Ora, nada repugna que o Ministério Público, ou, eventualmente, o assistente, durante a audiência de julgamento levantem a questão da existência de uma alteração não substancialmente dos factos.
3º - Agora, que tal seja permitido ao julgador, pelo art. 358º, tanto do Código de Processo Penal de 1987, como pelo agora em vigor, viola claramente o princípio da presunção da inocência, consignado no art. 32º, nº 2 da Constituição.
4º - Já que ao assim proceder, ao julgar indiciados factos novos, não está o julgador a ter um papel imparcial, pois que, para todos os efeitos, acusa, havendo, da sua parte, desde logo, uma presunção de culpabilidade.
5º - Deve o douto acórdão ora recorrido ser revogado, bem como ser declarada a inconstitucionalidade do art. 358º do CPP, por ser contrário ao nº 2 do artigo
32º da Constituição da República Portuguesa.'
5. Alegou depois o Ministério Público para sustentar, em síntese, no que se refere à suscitada questão de constitucionalidade, que 'o preceito em causa, com a interpretação que obteve por parte do Tribunal recorrido, não ofende nenhum preceito constitucional, nomeadamente o invocado pelo recorrente'.
6. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de Abril de 1999, decidiu pela improcedência das questões suscitadas pelo recorrente e, em consequência, negou provimento ao recurso. Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo
358º do Código de Processo Penal, ponderou aquele Tribunal:
'O art. 358º, nº 1, do CPP, vem atacado por violar o princípio da presunção de inocência e, por conseguinte, o artigo 32º, nº 2, da CRP. Acontece, porém, que os novos factos são apresentados apenas como factos indiciários, sujeitos ao contraditório, tal como prevê o citado art. 358º, ao impor a sua comunicação ao arguido e a conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da sua defesa. O que sucedeu foi que o arguido prescindiu de tempo para a apresentação da defesa daqueles factos. Os problemas que se têm levantado sobre a inconstitucionalidade do art. 358º, nº
1, do CPP, tem apenas a ver com a nova qualificação jurídica dos factos, sem que se dê, quanto a ela, oportunidade de defesa, ficando solucionado que se dá cumprimento ao direito de defesa consignado no art. 32º, nº 1, da CRP, quando se transmite ao arguido essa alteração dos factos e se dá oportunidade de defesa – cfr. o Ac. nº 445/97 do TC, com força obrigatória, em DR, I.A Série, de 5-8-97. Com esta interpretação ficam assegurados os princípios do contraditório, da economia processual e da verdade material, sem lesar os direitos de defesa do arguido consignados no art. 32º, nomeadamente nos nºs 1, 2 e 5 da CRP. Conforme ficou consignado na acta o arguido recebeu a comunicação da alteração não substancial dos factos e da possibilidade de concessão de tempo para a preparação da defesa quanto aos mesmos, tendo disso prescindido. Assim, é inoportuna a invocação da inconstitucionalidade da norma que foi correctamente aplicada e interpretada'.
7. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada a constitucionalidade do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, por, no seu entender, tal norma, quando interpretada nos termos em que o fez a decisão recorrida, ser violadora do princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, nº 2 da Constituição.
8. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1º - O digníssimo Tribunal a quo proferiu o seu douto acórdão, agravando a pena em concreto aplicada ao recorrente, tendo em conta o despacho de fls. 499, que considera haver alteração não substancial dos factos;
2º - Ora, nada repugna que o Ministério Público, ou, eventualmente, o assistente, durante a audiência de julgamento levantem a questão da existência de uma alteração não substancial dos factos.
3º - Agora, que tal seja permitido ao julgador, pelo art. 358º, tanto do Código de Processo Penal de 1987, como pelo agora em vigor, viola claramente o princípio da presunção da inocência, consignado no art. 32º, nº 2 da Constituição.
4º - Já que ao assim proceder, ao julgar indiciados factos novos, não está o julgador a ter um papel imparcial, pois que, para todos os efeitos, acusa, havendo, da sua parte, desde logo, uma presunção de culpabilidade.
5º - Deve o douto acórdão ora recorrido ser revogado, bem como ser declarada a inconstitucionalidade do art. 358º do CPP, por ser contrário ao nº 2 do artigo
32º da Constituição da República Portuguesa.'
9. Notificado o Ministério Público para responder, querendo, às alegações do recorrente, este veio dizer, a concluir:
'1º - Não viola qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental, nomeadamente os princípios da presunção da inocência e da imparcialidade do julgador, o regime constante do nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, enquanto permite ao tribunal a valoração de factos susceptíveis de agravar a medida concreta da pena aplicável ao arguido – sem, todavia, contenderem com a definição do objecto do processo, tal como delineado na acusação – apurados em audiência, facultando-lhe, em termos bastantes, a oportunidade de exercer o contraditório.
2º - Na verdade – não vigorando em processo penal o princípio do dispositivo puro – não preclude a cognição e valoração de tais factos pelo tribunal a circunstância de se não prever que cabe ao Ministério Público – visto como
«parte» no processo penal – a expressa manifestação da vontade de se aproveitar de tais factos supervenientes.
3º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso'.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
10. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração deste Tribunal - consistente em saber se é inconstitucional, designadamente por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, a norma do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, na parte em que confere ao juiz poderes para, oficiosamente, seleccionar novos factos surgidos na audiência de julgamento, comunicando a alteração ao arguido e concedendo-lhe o tempo necessário para a preparação da defesa - não é inteiramente nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Na realidade, o Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar (cf. Acórdão nº
130/98, Diário da República, II Série, de 7 de Maio de 1998) sobre a compatibilidade da dimensão normativa do artigo 358º, nº 1, do CPP, ora questionada, com o artigo 32º da Constituição, tendo decidido que aquela norma não é, naquela dimensão, inconstitucional. Ponderou, então, o Tribunal Constitucional, depois de sumariamente integrar e descrever o regime processual penal instituído pelos artigos 358º e 359º do CPP:
'(...) Assim, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados ex novo e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
5 - Aqui chegados, impõe-se deixar desde já bem claro que está fora dos poderes de cognição deste Tribunal, que se pronuncia sobre normas, apreciar a forma como a decisão recorrida procedeu à qualificação dos factos para os subsumir na norma aplicável. Ponto firme de partida é assim o de que a decisão recorrida entendeu que os factos referidos na audiência, e que originaram a aplicação da norma constante do art. 358º, nº 1, do CPP, ou não eram factos novos ou, a considerarem-se como novos, não implicariam uma alteração substancial da acusação. Tendo sido assim, logo se deu aos arguidos a oportunidade processual de organizarem a sua defesa quanto a esses factos não especificados. Nessa perspectiva, não se vê como possam ter sido feridos os direitos de defesa e do contraditório, sendo até lícito deduzir-se que esses mesmos direitos ganham em consistência. Com efeito, não tendo havido alteração do objecto do processo e tendo-se mantido a acusação, os referidos factos poderiam, sem mais, ou seja, sem os elementos adicionais que o contraditório posterior viesse a revelar, porventura no sentido de infirmar a sua procedência, contribuir de imediato para a formação da convicção do julgador. Na decisão recorrida não se encontra, portanto, uma interpretação inconstitucional da norma questionada (...).' O que então se disse – e que supra se transcreveu nos seus aspectos essenciais – mantém inteira validade, razão pela qual agora se reitera. Contudo, nos presentes autos, o recorrente coloca o assento tónico na violação do princípio da presunção da inocência, consagrado no nº 2 do artigo 32º da Constituição. Porém, manifestamente, sem razão. Sendo certo que o exacto sentido constitucional do princípio da presunção de inocência não é fácil de determinar (nesse sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 203), pode contudo afirmar-se que ele não tem, como pretende o recorrente, o alcance de impedir que se considerem na decisão factos revelados em audiência que, não configurando uma alteração substancial dos descritos na acusação, sejam relevantes para a boa decisão da causa. A consideração de tais factos não só não viola o princípio da presunção da inocência como é, pelo contrário, exigida pelo princípio da verdade material. Tem, por isso, razão o Ministério Público quando refere no seu parecer que o princípio da presunção da inocência 'não é obviamente susceptível de «apagar» a realidade dos factos, demonstrada efectivamente em audiência, processada com todas as garantias de defesa do arguido'; bem como quando alega que 'a circunstância de o tribunal se aperceber de tais factos no decurso da audiência e exercer o poder-dever de os valorar em nada contende com o princípio da independência e imparcialidade do julgador.' Não se encontra pois, ao contrário do que sustenta o recorrente, qualquer inconstitucionalidade na dimensão normativa do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, aplicada pela decisão recorrida.
III Decisão Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 8 de Julho de 1999- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Luís Nunes de Almeida