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Proc. nº 418/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - JO, com os sinais dos autos, impugnou no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga a liquidação do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) relativo ao ano de 1987, impugnação essa que veio a ser julgada procedente.
Da sentença proferida por aquele Tribunal foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de fls. 73 e segs, concedeu provimento ao recurso e julgou improcedente a impugnação.
Nesse acórdão decidiu-se:
'a) considerar organicamente inconstitucional a alínea c) do nº 5 das Instruções Gerais anexas do Decreto-Lei nº 341/93, de 30 de Setembro, se interpretada como aplicável ao cálculo de deficiências relevantes para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, por tal diploma ter sido emitido sem suporte de autorização legislativa e, nessa interpretação, implicar uma alteração do conceito de deficiência, para aquele efeito, que resulta do CIRS, matéria essa que é atinente à incidência desse imposto e, como tal incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República (arts. 106º nº 2 e 168º nº 1 alínea i) da CRP, na redacção de 1992); b) considerar como materialmente inconstitucional a mesma alínea c), na referida interpretação, por incompatibilidade com os arts 13º nº 1 e 71º da CRP, na mesma redacção, por de tal aplicação em matéria de IRS resultar a aplicação de um regime fiscal privilegiado para cidadãos que não se encontram em situação de desvantagem em relação à generalidade dos cidadãos não afectados por qualquer deficiência; c) considerar organicamente inconstitucional, por violação do nº 2 do artº 168º nº 1 alínea i) da CRP, na redacção de 1992, os Decretos-Lei nºs 202/96, de 23 de Outubro e 174/97, de 19 de Julho, se interpretados como aplicando-se ao cálculo de deficiências para efeitos de IRS por, ao criarem um regime de fixação de incapacidades através de acto administrativo e ao atribuirem competências para tal fixação a determinadas autoridades, em matéria de garantias dos contribuintes, em sentido não necessariamente favorável, sem suporte de autorização legislativa, matéria essa que se inclui na reserva legislativa de competência legislativa da Assembleia da República; d) recusar a aplicação de tais normas (artº 204º da CRP, na redacção de 1997); e) negar provimento ao recurso quanto à questão de nulidade de sentença; f) conceder provimento ao recurso quanto ao restante, revogar a decisão recorrida e julgar a impugnação improcedente'.
O Procurador-Geral Adjunto no STA interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da Lei nº 28/82, para apreciação da constitucionalidade das normas cuja aplicação fora recusada pelo acórdão impugnado.
Neste Tribunal, o Exmo Magistrado do Ministério Público produziu alegações onde formulou as seguintes conclusões:
'1º - Tendo a decisão recorrida assentado em fundamento alternativo e bastante – por autónomo relativamente ao juízo de inconstitucionalidade emitido –
(concluindo, no caso dos autos, pela improcedência da impugnação deduzida pelo contribuinte, com base no facto de este não ter dado cumprimento ao ónus de apresentação de atestado médico actualizado à data da declaração de IRS em causa, que a Administração Fiscal legitimamente lhe havia imposto) – inexiste interesse processual na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada, já que o decidido pelo Tribunal Constitucional seria insusceptível de ter efectiva repercussão no teor e sentido da decisão recorrida, que julgou improcedente a impugnação deduzida pelo contribuinte.
2ª - Não implica inconstitucionalidade orgânica a circunstância de os tribunais, para preencherem normas em branco, densificarem conceitos indeterminados ou integrarem quaisquer lacunas existentes em direito fiscal, fazerem apelo a regimes ou institutos integrados por normas constantes de diplomas editados sem credencial parlamentar, vigentes noutros ramos do ordenamento jurídico.
3ª - Os diplomas que integram a Tabela Nacional de Incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais e dispõem sobre o regime genérico de prevenção e reabilitação de pessoas com deficiência – densificando, aliás, o regime constante da Lei de Bases nº 9/89, de 2 de Maio – não podem qualificar-se como respeitando directamente ao sistema fiscal, já que incidem sobre matérias não conexionadas com a reserva de competência legislativa da Assembleia da República prevista no artigo 165º nº 1 alínea i) da Constituição da República Portuguesa.
4ª - Não é incompatível com os princípios constitucionais da igualdade e da específica protecção dos deficientes o possível estabelecimento, por via legislativa, de discriminações positivas a seu favor, pelo que não pode considerar-se, sem mais, materialmente inconstitucional o regime legal em que se reconheça ainda alguma relevância às deficiências originárias, mesmo quando passíveis de correcção ou compensação através de determinados meios terapêuticos.
5ª Termos em que não deverá – em consonância com a natureza instrumental dos recursos de fiscalização concreta – conhecer-se do recurso interposto; ou, quando assim se não entenda, deverá julgar-se o mesmo procedente, por não padecerem de inconstitucionalidade as normas a que o mesmo vem reportado.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Começa o recorrente por suscitar a questão da inutilidade do presente recurso fundado em que o acórdão recorrido assenta em fundamento alternativo e bastante, com autonomia relativamente àquele em que é emitido o juízo de inconstitucionalidade sobre as normas da alínea c) do nº 5 das Instruções gerais anexas ao DL nº 341/93 e dos DL nºs 202/96 e 174/97 – o juízo de constitucionalidade que eventualmente viesse a ser proferido por este Tribunal não teria, assim, efectiva repercussão na decisão que julgou improcedente a impugnação deduzida pelo recorrente.
Sem embargo de se reconhecer que no caso do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da Lei nº 28/82 existiria, em princípio, interesse jurídico relevante no seu conhecimento – sendo o Tribunal Constitucional o órgão a quem cabe dizer a última palavra em matéria de inconstitucionalidade de normas, não devem manter-se fora do seu controlo as decisões judiciais que recusem a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade e, por isso todas essas decisões e de todos os tribunais são directamente recorríveis para o Tribunal Constitucional – mas não deixando de desempenhar também este tipo de recurso uma função instrumental, há-de convir-se que o recurso será inútil nos casos em que o juízo de constitucionalidade que vier a ser proferido se não puder repercutir na decisão impugnada.
É, designadamente, o caso de uma decisão que proceda á recusa de aplicação de norma que não constitui a ratio decidendi da questão resolvida ou que na sua lógica argumentativa surja como fundamentação meramente subsidiária em termos tais que sempre se manteria o decidido ainda que o Tribunal Constitucional não confirmasse uma tal recusa de aplicação (cfr. Acórdão nº 322/90 in DR II Série de 15/3/91).
E cremos que a situação em causa assim se configura.
Para o demonstrar importa analisar, com algum detalhe, o acórdão recorrido e nele definir as questões que se propôs decidir, as soluções dadas e a sua respectiva fundamentação.
Na impugnação judicial de que emerge o presente recurso estava em causa a legalidade do procedimento da Administração Fiscal ao exigir ao contribuinte impugnante a comprovação actualizada da situação de deficiente com grau de invalidez superior a 60% por ele declarada (estava em curso a liquidação do IRS relativo ao ano de 1997 e o atestado médico apresentado, certificativo da deficiência, datava de 7/9/95) e, face ao incumprimento desta exigência, ao alterar a declaração de rendimentos no sentido da inexistência de qualquer incapacidade.
Em tal conformidade, o acórdão recorrido enuncia as questões a resolver: a primeira, a de 'saber se a Administração Fiscal, para comprovação da qualidade de deficiente com grau de invalidez superior a 60%, por este invocada, relativamente aos rendimentos do ano de 1997, podia exigir-lhe a apresentação de um atestado médico em que a incapacidade fosse avaliada considerando a possibilidade de meios de correcção ou compensação'; a segunda, a de 'saber se, tendo sido apresentado um atestado médico emitido em 7/9/95, pela Senhora Presidente da Junta Médica da Sub-Região de Saúde de Braga, a declaração de rendimentos podia ser alterada no sentido da inexistência de qualquer incapacidade'.
A primeira questão – diz o aresto – 'tem uma resposta claramente positiva'. Ela resultaria do disposto no artigo 119º nº 1 do CIRS e, não dispondo a legislação vigente em 1997 e 1998 qualquer limitação específica deste poder, tal limitação só poderia derivar de princípios constitucionais que devem reger a generalidade da actividade administrativa (artigo 266º da CRP), o que não fora invocado.
Conclui dizendo que 'no caso, não há qualquer actuação ilegal por parte da Administração Fiscal ao exigir um atestado comprovativo da situação de invalidez declarada'.
Sobre a segunda questão, o acórdão começa por chamar à colação o disposto no artigo 14º nº 7 do CIRS – a situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é a que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite – para afirmar que o atestado médico apresentado não era susceptível de comprovar a situação de invalidez no último dia de 1997.
Por outro lado, considera como facto notório a possibilidade de evolução das situações de deficiência qualificada de permanente, em particular o caso de hipovisão (caso dos autos), o que estaria até reconhecido legislativamente.
E conclui este trecho nos seguintes termos:
'(...) havendo esta possibilidade de melhoria, é manifesto que um atestado emitido em 7/9/95 não fornecia qualquer garantia de que em 31/12/97 o grau de invalidez referido no atestado se mantivesse, pelo que se não pode considerar injustificado que a administração tributária exigisse a comprovação da manutenção nesta última data do grau de invalidez declarado.'
O acórdão afirma depois que a administração tributária não estava obrigada a acatar qualquer acto administrativo prejudicial de fixação de incapacidade, considerando que '(...) a atribuir-se força certificativa ao referido atestado, como obrigação de acatamento pela administração tributária, ela limitava-se ao facto certificado, que era o impugnante ser portador de uma incapacidade permanente em 7/9/95, calculada á face das regras então aplicadas, não podendo, como é óbvio, existir tal força probatória nem o correlativo dever de acatamento relativamente ao que o mesmo atestado não certificava, que era que a incapacidade fosse fixada no mesmo grau à face das regras previstas no Decreto-Lei nº 202/96, nem que ela se mantivesse em 31/12/97'.
E conclui:
'Do exposto conclui-se que, tanto antes como depois do Decreto-Lei nº 202/96
(bem como do Decreto-Lei nº 174/97 que o alterou) a administração tributária pode exigir que a comprovação de todas as incapacidades invocadas pelos sujeitos passivos do IRS nas suas declarações seja feita com referência a 31 de Dezembro do ano a que se reporta a declaração, não tendo de dar relevância, para tal comprovação, a atestados emitidos antes dessa data ou mesmo emitidos posteriormente que não comprovem a existência dessa incapacidade nessa data.'
Até este ponto o aresto não aflora sequer qualquer questão de constitucionalidade, movendo-se no estrito campo do direito infra-constitucional e com uma solução que, tal como sustenta o Exmo Magistrado do Ministério - que situa essa solução no plano procedimental - é, desde logo, decisiva para negar provimento ao recurso. Só a partir do ponto 8 o acórdão apela à Constituição. Mas em que termos ?
Em primeiro lugar para afirmar que a solução dada é 'a única que se compagina com a Constituição', salientando o disposto no artigo 71º e o princípio da igualdade, devendo considerar-se 'como materialmente inconstitucionais todas as normas ou interpretações de normas da lei ordinária que se reconduzam ao estabelecimento de um regime diferenciado para os cidadãos deficientes, a nível do cumprimento de deveres, nos termos do qual eles sejam dispensados do cumprimento de obrigações para que não estejam incapacitados e sejam legalmente impostas à generalidade dos cidadãos'.
Cabe salientar que este passo do acórdão está na base do julgamento de inconstitucionalidade material da alínea c) do nº 5 das Instruções Gerais anexas ao Decreto-Lei nº 341/93 que admitia a redução da incapacidade quando a função fosse substituída no todo ou em parte por prótese, mas limitava essa redução ao máximo de 15%, sendo, porém, certo que a questão não seria julgada com base nesse preceito, tendo, entretanto, passado a vigorar o Decreto-Lei nº 202/96, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 174/97.
Em segundo lugar, no mesmo plano de aferição da solução dada com a Constituição, para julgar organicamente inconstitucionais os Decretos-Lei nºs 341/93 e 202/96. Dir-se-ia, então, que tal julgamento se repercutia na decisão do recurso interposto para o STA. Não é, porém, assim,
Na verdade, no discurso argumentativo sobre o conceito de deficiência, o critério para uma invalidez se considerar permanente e as regras que determinam o grau da deficiência e a entidade competente para o comprovar, o acórdão dá conta que o CIRS é omisso em tal matéria; e é sobre o significado desse silêncio que o acórdão começa por assumir uma posição clara no sentido de que aquele diploma 'deixou propositadamente tal conceito com indeterminação, para o seu preenchimento ser levado a cabo pela administração e pelos tribunais, atendendo
à especificidade que o cálculo das incapacidades deve revestir em matéria fiscal', posição essa que já tinha sido adoptada pelo STA no Acórdão de
1/3/2000, proferido no Pº nº 24533 e relatado pelo mesmo Exmo Magistrado.
A questão de inconstitucionalidade (agora orgânica, dos DL nºs 341/93 e 202/96) surge, só depois, na abordagem de uma segunda via de solução (subsidiária), que havia sido trilhada por outro acórdão do STA e que entendia o silêncio do CIRS como uma remissão implícita para o regime de avaliação das incapacidades previsto para os acidentes de trabalho, via esta que, afastada por inconstitucionalidade a aplicação daqueles diplomas legais, conduziria à mesma solução, ou seja a de que a incapacidade relevante para efeitos fiscais, seria sempre a residual, depois da consideração das possibilidades de correcção e compensação da deficiência.
Ora, neste contexto, não pode, com efeito, reconhecer-se em tais julgados de inconstitucionalidade a razão fundamental de decidir do acórdão impugnado; por outras palavras, um eventual julgamento de constitucionalidade em sentido divergente do que se fez naquele aresto não teria qualquer repercussão na decisão do caso concreto, pois sempre subsistiriam os fundamentos da referida primeira via de solução que o acórdão acolhe.
Resta acrescentar que este fundamento de não conhecimento do objecto do recurso vale ainda para o caso de se não entender, em contrário da posição assumida pelo Exmo Magistrado recorrente, que as razões de ordem procedimental que o acórdão expendeu até ao seu ponto 8 não eram desde logo bastantes para a solução da causa – o que por hipótese de raciocínio se admite – impondo-se, ainda, apurar da legalidade do procedimento da Administração quanto ao conceito de deficiência relevante por ela adoptada.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2001- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa