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Proc. nº 73/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. B..., primeiro sargento de transmissões, e R..., primeiro sargento de artilharia, interpuseram, perante o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, recurso contencioso de anulação do despacho proferido em 22 de Dezembro de 1997, pelo General Comandante da Logística, no uso de competência delegada pelo General Chefe do Estado Maior do Exército (despacho nº 3214/97, de 3 de Junho de 1997, publicado no Diário da República, II Série, nº 152, de 4 de Julho de 1997). Alegaram que, tendo solicitado ao Chefe do Estado Maior do Exército que lhes fosse reconhecido o 'direito de não auferirem remuneração inferior à de sargento com igual ou menor antiguidade ou posto da Marinha', com o consequente pagamento de retroactivos correspondentes à diferença entre as remunerações efectivamente percebidas no posto de primeiro sargento, desde a publicação do Decreto-Lei nº
80/95, de 22 de Abril, até 1 de Julho de 1997, data da produção de efeitos do Decreto-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, tal pedido foi indeferido pela entidade recorrida, com fundamento no artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/97. Imputaram ao acto recorrido o vício de violação de lei ordinária e constitucional (artigos
13º, 18º, 266º e 268º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa) e vício de forma, por falta de fundamentação. Por sentença de 27 de Novembro de 1998, o Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra concedeu provimento ao recurso, declarando a nulidade do acto impugnado. Na sua decisão, o Juiz recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, do artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, por considerar que tal disposição legal violava o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
2. Desta decisão interpôs recurso de constitucionalidade o representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para 'apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 8º do DL nº 299/97, de 31.10'. No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou as suas alegações, tendo concluído:
'1º - A norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, que se limita a prescrever acerca do início da vigência do regime criado neste diploma legal – traduzido na criação de um novo abono ou diferencial de remuneração, destinado a alterar e corrigir anomalias ao sistema retributivo dos militares dos diversos ramos das Forças Armadas, imputáveis ao Decreto-Lei nº
80/95, de 22 de Abril – não viola o princípio constitucional da igualdade.
2º - Na verdade, nada na Lei Fundamental impõe que a inovatória criação de um novo abono deva retroagir à data da publicação do diploma legal, revogado pelo citado Decreto-Lei nº 299/97, estando fora do objecto do presente recurso de constitucionalidade averiguar se as discriminações remuneratórias, imputadas ao Decreto-Lei nº 80/95, afrontam ou não o referido princípio da igualdade.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Por sua vez, os recorridos formularam as seguintes conclusões:
'1ª) É falso que a norma do art. 8º do DL 299/97 de 31.10 se traduza, quanto aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea num novo abono ou num novo diferencial de remuneração. Apenas constatando que o DL 80/95 de 22.04 não dera a estes sargentos as regalias (reposicionamento no escalão da escala indiciária + contrapartida remuneratória competente) que conferira apenas aos da Marinha e que, legalmente, estava obrigado a tratá-los de modo igualitário, abonou, pelo DL 299/97 de 31.10 aos prejudicados o diferencial de remuneração correspondente ao acréscimo dado desde 22.04.95 aos da Marinha. O abono em causa foi, para o Exército e Força Aérea o primeiro, já que o DL 80/95 lhes não dera nada, e não novo e equivale ao valor em que estavam prejudicados em relação aos da Marinha. É, de algum modo, impróprio configurar como abono o reconhecimento do que já pertencia aos
«abonados»! Mais correcta e própria é a designação diferencial de remuneração. De facto, o DL 80/95 de 22.04 não se traduziu em abono remuneratório aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, já que apenas regeu e deu aos da Armada. Daí decorre que o DL 299/97 de 31.10 não conferiu aos prejudicados novo abono, apenas lhes reconheceu o direito de auferirem o que lhes estava sendo indevidamente retido a pretexto de a lei os não ter contemplado, devendo tê-lo feito, com o que conferiu aos da Marinha desde 22.04.95. Fica assim posta em crise quer a natureza de abono e, por maioria de razão, a de novo abono que é irreal e até ofensiva.
2ª) O DL 299/97 de 31.10 nasceu da necessidade de se sanarem as desigualdades remuneratórias que vitimizaram, por efeito do DL 80/95 de 22.04 os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea no confronto com os beneficiados da Marinha que exclusivamente contemplou. Sendo esta a finalidade que determinou a sua aprovação, os seus efeitos teriam que alcançar a rectificação de toda a discriminação havida e não apenas alguma que por razões particulares interessasse ao legislador ordinário. E o início da discriminação tinha data certa e consabida: 22.04.95. Para fazer jus ao seu objectivo e para não ser mera demagogia, por retroacção ou por qualquer forma de deferir efeitos, teria que contemplar toda a discriminação desde aí emergente. Não o tendo feito senão a partir de 01.07.97 e não indicando razões justificativas para a omissão referente ao período não contemplado, deixou ostensivamente intocado o regime do DL 80/95 de 22.04 fazendo derivar o aumento remuneratório nele previsto, também para os prejudicados do Exército e da Força Aérea e não tendo conferido ao recorrido o que aos da Marinha concedeu desde
22.04.95 até 01.07.97, discriminou-o remuneratoriamente no valor correspondente aos diferenciais vencidos em todo esse tempo. O DL 299/97 de 31.10 teve a preocupação de tornar estáveis e definitivas as regalias conferidas pelo DL 80/95 de 22.04 exclusivamente à Armada e, ao mesmo tempo, tornar extensiva ao Exército e Força Aérea a diferença remuneratória que desde 22.04.95 favorecia a remuneração da Armada e não a eles. Por isso que não corresponde bem à realidade a «revogação» que se propôs fazer deste decreto-lei. A violação do princípio constitucional da igualdade, está, portanto, relativamente a esse período, perfeitamente demonstrada e, em coerência, ainda se impõe ao legislador, a pretexto da sua intenção de correcção das desigualdades, efectivamente rectificá-las, atribuindo aos prejudicados o que lhes pertence por Direito.
3ª) O que, do ponto de vista dos discriminados primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, o recorrente chamou, impropriamente de novo abono, traduz-se, quanto a estes, no mero reconhecimento exacto da discriminação ocorrida. Se de abono se tratasse, seria, para estes, não um novo mas um primeiro abono. A sua justificação ficou marcada pelo diferencial de remuneração que só contemplou os da Marinha e, por força do DL 299/97 teve de repercutir-se também aos lesados do Exército e da Força Aérea. Este DL foi, assim, aditamento ao regime do DL 80/95, vindo estender o diferencial remuneratório que este apenas concedeu aos da Marinha quando a lei lhe impunha, sob pena de discriminação ilegítima e respectivas consequências, que o atribuísse, a partir da mesma data, aos homólogos dos três ramos das Forças Armadas. Ora, tal aditamento, para fazer jus ao seu propósito, tinha de reportar efeitos remuneratórios, não, como veio paradoxalmente a acontecer, a 01.07.97, – que é a data aleatoriamente escolhida pelo legislador, suposto que em razões particulares nunca vindas a lume, tendo que ser conhecidas –, mas sim à de início da discriminação remuneratória injustificada: 22.04.95. Os discriminados viram, pelo DL 299/97 de 31.10 confirmada a lesão do seu direito (e violado o princípio constitucional consagrado no art. 13º da C.R.P.), mantida e sufragada de 22.04.95 até 01.07.97, suportando indevidamente o peso dessa discriminação.
4ª) O DL 299/97 de 31.10 não foi destinado a alterar e corrigir anomalias ao sistema retributivo dos militares dos diversos ramos das Forças Armadas, imputáveis ao DL 80/95 de 22.04, não! Nasceu sim da necessidade de se conferir aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea o valor remuneratório equivalente ao que o DL 80/95 de 22.04, devendo ter atribuído a todos os militares da mesma categoria, como era de lei, apenas atribuiu aos da Marinha. Daí a nomenclatura de diferencial de remuneração, equivalente ao abono àqueles do diferencial que beneficiou, desde 22.04.95, exclusivamente os da Marinha. As anomalias a que o recorrente se refere mais não são que as desigualdades remuneratórias que vitimizaram apenas e só os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea. Daí que não entrem no lote destas anomalias os antes beneficiados da Marinha, como, habilidosa e subrepticiamente se procura fazer crer. Aliás, neste sentido concorre o facto de no Preâmbulo do DL 299/97, parágrafo
4º, o legislador ter reconhecido no DL 299/97 a configuração de «... uma medida de efeito equivalente ao regime ali (isto é, no DL 80795, sublinhado nosso) instituído, aplicável também aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, por forma a superar, entretanto, a relativa desigualdade remuneratória acima mencionada».
É o próprio legislador quem reconhece ser o DL 299/97 uma extensão do regime do DL 80/95, por forma a abranger a situação dos discriminados mas com a ambição de sanar o prejuízo que aquele lhes provocara. Se assim não fora, bastaria alargar a extensão dos efeitos do DL 80/95 determinando que seria aplicável também aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea. Mas não! Havia que repor o que lhes era devido. Tal reposição apenas foi arbitrada, arbitrariamente, a partir de 01.07.97 (Cfr. art. 8º), quando se impunha que o fosse desde 22.04.95. Entre estas datas foi o recorrido ilegitimamente discriminado na sua remuneração e até efectiva entrega do diferencial que lhe é devido, persiste a violação do princípio constitucional da igualdade.
5ª) O DL 299/97 não admite confundir-se com a alegada «...inovatória criação de um novo abono...» porque, na verdade, não é um novo abono.
É que os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea não foram contemplados com o diferencial de remuneração que o DL 80/95 de 22.04 atribuiu apenas aos da Marinha. Onde está, portanto, para aqueles, o primeiro abono, para que, com legitimidade, se possa falar de um novo ou segundo abono? Daí que se reclame evidente a discriminação havida com relação à não atribuição aos prejudicados do diferencial remuneratório vencido de 22.04.95 até 01.07.97, estando, por isto, nitidamente exposto à declaração de inconstitucionalidade reclamada, o art. 8º do DL 299/97 que baliza, de modo inequívoco, a desigualdade injustificada e ilegal. No entanto, a permissão dada pela amplitude normativa do art. 8º à remissão para o DL 80/95 que autoriza o acesso à apreciação da constitucionalidade das suas normas, permite concluir que ambos os diplomas se encontram eivados de desconformidade à Constituição e seus princípios, como deriva da obrigatoriedade legal de tratar os primeiros-sargentos do três ramos todos por igual. Tudo razões que inquinam os fundamentos do recurso interposto, impondo a sua improcedência, sem embargo de dever determinar-se se, nos termos sobreditos, ocorre ou não, por efeito das normas de ambos os Decretos-Leis, objectivada, no entanto, no art. 8º do DL 299/97 de 31.10, efectiva violação do princípio constitucional da igualdade que se repercute em prejuízo injustificado do recorrido com relação à álea de tempo que decorreu de 22.04.95 até à arbitrária e injustificada data de 01.07.97, implicando a necessidade de uma conformação do legislador ordinário que se apresente respeitadora do conteúdo das normas, princípios e axiologia constitucionais, maxime do art. 13º da C.R.P. que se entende, por ele, efectivamente violado.'
II
3. O presente recurso tem por objecto a norma constante do artigo 8º do Decreto-
-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, que o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, e que, nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa, se recusou a aplicar. Dispõe a norma em causa:
'O presente diploma produz efeitos a partir de 1 de Julho de 1997'.
4. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade suscitada nestes autos. O acórdão nº 306/99 (ainda inédito), depois de descrever, nos seus traços essenciais, o regime que decorre do diploma em que se insere a norma em apreciação e de situar este diploma no conjunto da legislação que define o estatuto remuneratório dos primeiros sargentos dos diversos ramos das Forças Armadas, ponderou:
'[...] se a diferenciação remuneratória que eventualmente ocorreu entre os primeiros-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto que os primeiros-sargentos do Exército ou da Força Aérea, porventura integrou uma desigualdade inadmissível, arbitrária e sem qualquer justificação fundada em valores objectivos constitucionalmente relevantes (cfr., sobre o princípio da igualdade, por entre muitos outros, os Acórdãos deste Tribunal números 186/90,
187/90 e 188/90, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume,
383 a 421 e, sobre a problemática da proibição de discriminações versus diferenciações de tratamento, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 127 e 128), então isso deveu-se, única e exclusivamente, à normatização constante do Decreto-Lei nº 80/95. Por isso, a ter ocorrido desigualdade constitucionalmente censurável, ela desencadeou-se por força de tal diploma, o que vale por dizer que foram as suas estatuições as criadoras desse hipotético vício. O Decreto-Lei nº 299/97 limitou-se a conceder aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea o direito ao abono do diferencial remuneratório (calculado nos termos do seu artigo 3º e que veio a substituir, a partir da sua produção de efeitos – 1 de Julho de 1997 –, sem «tocar» as situações já constituídas ao abrigo do Decreto-Lei nº 80/95, para os primeiros-sargentos da Marinha, o reposicionamento consagrado neste último diploma) concedido a estes últimos, contanto que os primeiros auferissem menor remuneração e tivessem igual ou superior antiguidade em relação aos segundos. E, com essa concessão, foi desiderato do legislador de 1997, tão somente, obviar a que os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, com igual ou superior antiguidade, viessem a perceber remuneração inferior aos seus homólogos da Marinha (independentemente, repete-se, de ter atentado se, naqueles dois ramos das Forças Armadas, poderiam eventualmente ocorrer situações de acordo com as quais aqueles primeiros-sargentos, com mais antiguidade ou maior posto do que os demais sargentos desses ramos, auferissem menor remuneração do que estes). Com essa disciplina, o Decreto-Lei nº 299/97 veio, assim, a partir da sua produção de efeitos, a terminar com uma situação em que, objectivamente, se descortinava uma diferenciação remuneratória mais favorável para os primeiros-sargentos da Marinha que detinham igual ou inferior antiguidade relativamente aos seus congéneres do Exército e da Força Aérea, situação essa que não foi por ele criada, mas sim pelo Decreto-Lei nº 80/95. Se tal diferenciação acarretava uma hipotética desigualdade constitucionalmente censurável, sublinha-se uma vez mais, ela seria imputável ao diploma de 1995; e sendo ela corrigida pelo diploma de 1997, não será da circunstância de a sua vigência ter sido protraída somente a 1 de Julho desse ano que se lobriga qualquer inconstitucionalidade por ferimento do princípio da igualdade condensado no artigo 13º da Lei Fundamental. Esse eventual vício será imputável, e só, ao Decreto-Lei nº 80/95, acerca do qual a decisão recorrida se não pronunciou no sentido de desaplicar qualquer um dos seus normativos, vício esse que, de todo o modo, o ora recorrido, no recurso contencioso decidido pela sentença impugnada, nunca equacionou, não sendo da norma do artº 8º do Decreto-Lei nº 299/97, antes pelo contrário, que minimamente resulta qualquer diferenciação remuneratória para menos auferida pelos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea repeitantemente aos seus homólogos da Marinha com igual ou inferior antiguidade.'
Argumentação semelhante fundamentou o acórdão nº 412/99 (proferido no proc. nº
45/99, também ainda inédito).
É essa jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos constantes dos acórdãos referidos – para os quais se remete –, reafirma-se que a norma questionadas no presente recurso não é inconstitucional, pois não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº
299/97, de 31 de Outubro; b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida de harmonia com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Custas pelos recorridos, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, por cada um deles.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida