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Proc. nº 730/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam da 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. MS interpôs recurso para o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, nos termos do artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, da deliberação do Conselho Directivo do Centro Regional de Segurança Social do Centro (Serviço Sub-Regional de Leiria), de 16 de Janeiro de 1998, que indeferiu a candidatura a adoptante por si apresentada. Nas alegações produzidas nesse recurso (fls. 3 a 9), concluiu do seguinte modo:
'1ª) A maternidade e o estabelecimento das condições de quem pode adoptar ou quem não pode adoptar, são conceitos extremamente complexos e que não admitem qualquer tipo de leviandade na sua fixação.
2ª) É que, não pode omitir-se que a decisão positiva ou negativa de uma tal pretensão pode amputar, drástica e radicalmente a vertente afectiva de qualquer ser humano.
3ª) Salvo o devido respeito, a decisão que ora se impugna poderá incorrer no vício da excessiva superficialidade.
4ª) Entende a recorrente, de facto, que tem condições, humanas e materiais, para adoptar uma criança e que tem uma disponibilidade e experiência de vida susceptíveis de a levarem a desempenhar cabalmente o papel fundamental de Mãe.
5ª) A essa convicção intrínseca não obstam as considerações tecidas tendentes a demonstrar o contrário pois que estas radicam em pressupostos fácticos algo desfasados da realidade histórica, e em elementos psicológicos circunstancialmente verdadeiros mas justificados por uma sucessão de eventos desagregadores da personalidade.
6ª) Pelo que se conclui que o presente recurso deve proceder julgando-se a recorrente apta a ser Mãe e subsequentemente admitida como adoptante.'
2. No âmbito do mencionado recurso, foi determinada (cfr. despachos de fls. 85, 91 v.º, 94, 96 e 104): a realização de exame psicológico à requerente, a fim de aquilatar da sua capacidade para ser adoptante, e consequente notificação para a requerente formular quesitos a responder pelos peritos; a prestação de esclarecimentos pela requerente quanto a um seu anterior internamento em Estabelecimento de Saúde Mental; a inquirição das testemunhas indicadas pela requerente (a fls. 10 e 84) e pelo Ministério Público (a fls. 83 v.º). Posteriormente foram prestados os esclarecimentos pedidos (fls. 86, 88 e 90), foi junto ao processo um relatório pericial (fls. 100 a 101) e foram inquiridas as testemunhas indicadas pela requerente e pelo Ministério Público (fls. 105 a
109). O Ministério Público teve, de seguida, vista do processo, emitindo o seguinte parecer (fls. 110 a 110 v.º):
'Analisando todos os elementos constantes dos autos, quer documentos recolhidos, quer declarações de peritos, quer o conteúdo das declarações das testemunhas inquiridas entendo que deverá ser mantida a decisão proferida pelo Conselho Directivo do C. R. S. S. do Centro sobre a pretensão formulada por MS de ser admitida como candidata à adopção. Com efeito, os elementos de prova trazidos aos autos não infirmam os fundamentos avançados por aquela instituição para denegar o pedido de MS. Em nosso entender, o direito a adoptar apenas poderá e deverá ser exercido por pessoas de recorte social, familiar, profissional e psicológico idóneo, em que,
à priori, esteja afastado o risco de conferir qualquer instabilidade ou perigo ao desenvolvimento e integração de uma criança objecto de constituição do vínculo de adopção. No caso em apreço nos autos pensamos que o quadro pessoal e vivencial da requerente MS não se evidencia como claro, seguro, estável, em ordem a permitir a esta o assumir o papel de adoptante sem a ocorrência de risco para qualquer eventual adoptado. O melindre da situação em causa – admissão de MS como candidata a adoptante – exige uma certa unanimidade, uma certa convergência de opinião, uma inquestionável aprovação da mesma para o exercício do direito de adoptar que, no caso, não se verifica, legitimando assim as dúvidas expostas quanto à sua idoneidade e capacidade para adoptar. Face ao exposto, abstraindo de outras considerações, promovo se profira decisão.'
O recurso foi julgado improcedente, por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria de 24 de Novembro de 1998. Pode ler-se nessa decisão (fls. 110 v.º a
114 v.º), para o que aqui releva, que:
'[...] Quanto à pessoa da candidata a adoptante, MS, para além do que flui dos autos, designadamente do processo administrativo, o seu carácter solitário, amargurado
(solitário) e falho de referências afectivas, saiu seguramente reforçado pela prova que veio oferecer nos presentes autos. Tomemos as testemunhas inquiridas: nenhuma, dentre elas, conhecia a recorrente num outro contexto que não o da escola onde, em determinado ano lectivo, ambas leccionaram; nenhuma dentre elas conhecia uma outra MS que não a professora. A recorrente não trouxe aos autos um
único elemento de carácter «doméstico», ou seja, nada sabemos sobre o seu lar, sobre a pessoa que é quando termina o seu dia de trabalho, sobre a forma como consome as suas horas de lazer. Não temos dúvidas em afirmar que a requerente não tem amigos pois se os tivesse quem, melhor do que eles, para depor sobre o seu carácter, a sua afabilidade, a ternura que diz ter para dar, as coisas que a emocionam ou as que a fazem rir. Por outro lado, e se é verdade que os filhos não escolhem os pais, bons ou maus, também o inverso é verdadeiro. Reconhecendo-se embora que a um candidato à adopção tal, como de resto, em relação ao pai ou mãe biológicos, é legitimo ter o desejo de que o seu filho seja saudável, já não se vislumbra como possível que um progenitor diga «Não quero o meu filho porque nada me garante que de futuro não venha a ter problemas de saúde». Em conclusão, também nós consideramos que a recorrente não detém a estabilidade afectiva, emocional e social adequadas e indispensáveis a alguém que se propõe acolher, criar e amar uma criança como se fosse sua filha, o que determina a improcedência do presente recurso.'
3. Notificada desta decisão, MS veio arguir a sua nulidade (fls. 116 a
121), em virtude de, designadamente, não lhe ter sido notificada a promoção do Ministério Público de fls. 110 dos autos. Tal circunstância tê-la-ia impedido de exercer o contraditório face à argumentação expendida pelo Ministério Público. Requereu, ainda, que fosse julgada inconstitucional a 'norma constante do art.
8º, n.º 3, in fine [do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio], pelo menos na interpretação sufragada pelo Tribunal, na medida em que impediu o exercício do contraditório por banda da requerente, violando assim o art. 20º da CRP.'. Notificado deste requerimento, veio o representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria dizer, em síntese, o seguinte (fls.
129 a 131):
'[...] A presente Acção, apresentando-se como um recurso de decisão administrativa, não se apresenta como um «processo de partes», em que duas posições se confrontam e opõem, mas antes como um processo em que se pretende a apreciação judicial de decisão tomada administrativamente. Inexiste uma oposição institucionalizada e sistemática à posição da recorrente. Ninguém e, nomeadamente, o Ministério Público se posiciona «ab initio» contra a recorrente ou em defesa da posição da entidade administrativa. No caso, o Ministério Público, tal como a recorrente contribuem para a decisão judicial a proferir, solicitando diligências, promovendo a junção de elementos probatórios, carreando para o processo contributos que permitam ao Exmº Juiz decidir sobre o recurso interposto. Esta fase investigatória não está definida nem a produção de prova se mostra vinculada a condução obrigatória. Neste momento processual, a recorrente, o Ministério Público e o Juiz podem, sob o arbítrio deste, promover os autos, solicitando a produção de prova, diligenciando pela junção de elementos que entendam necessários para uma decisão. Concluída esta fase, é dada vista ao Ministério Público para se pronunciar. Esta intervenção permitida por força da Lei, cfr. art. 8, nº 3 do Dec-Lei 185/93, de
22.5, aparece como expressão da função e papel do Ministério Público como entidade jurisdicional. Ela não é colorida por uma posição, mas norteada por um sentido de legalidade e de justiça, com o objectivo de contribuir para uma decisão final correcta e adequada. O objecto do princípio do contraditório prende-se com a necessidade de equilibrar «partes», de colocar em pé de igualdade sujeitos processuais em confronto, o que, no caso vertente, não acontece, pois, nos autos ninguém está contra alguém, antes se procura analisar a bondade de uma decisão de tipo administrativo. Anote-se que o Ministério Público, ao pronunciar-se nos autos poderia ter aderido à tese da recorrente, opinando no sentido da sua admissibilidade a candidata a adoptar. Tal possibilidade demonstra a natureza especial dos presentes autos. Por outro lado, à recorrente foram dados todos os meios para pugnar pela sua posição, admitindo-se a produção da prova que entendeu necessária e a formulação de quaisquer juízos ou pareceres sobre a sua pretensão. Nesta medida não entendemos como possa ter sido violado o princípio do contraditório e como a norma acima indicada possa violar qualquer preceito constitucional.
[...].' Por despacho de 26 de Julho de 1999, foi indeferida a mencionada arguição de nulidade e consequentemente mantida a decisão proferida, por fundamentos idênticos aos expendidos pelo representante do Ministério Público. Lê-se no texto do despacho (fls. 132º v.º a 133 v.º) que:
'[...] Conforme bem refere o D. Magistrado do MP. o presente recurso não tem a configuração de um processo de partes nem existe litígio que oponha a recorrente ao MP., impondo o exercício do contraditório. A actuação do MP. inscreve-se no
âmbito do disposto no art. 3º nº 1 al. a), 5º nº 4 e 6º da LOMP, que define a sua intervenção acessória, competindo-lhe contribuir para uma decisão mais justa, sem que assuma uma posição contrária «ab initio» à da parte interessada. E porque não o diríamos melhor cabe referir, citando o mesmo magistrado que 'O objectivo do princípio do contraditório prende-se com a necessidade de equilibrar partes (...) o que no caso não se verifica». Com efeito, acrescentamos, se o parecer fosse favorável à pretensão da recorrente – e bem poderia assim suceder porque nada na lei impõe a posição a adoptar pelo MP. que se rege por estritos critérios de legalidade – não vemos como seria necessária a notificação à reclamante em nome da salvaguarda do princípio do contraditório.
[...]'.
4. Por requerimento de 6 de Outubro de 1999 (fls. 136 a 137), MS interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, do 'acórdão proferido no presente processo', pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma 'do artigo
8º n.º 3 do decreto-lei 185/93 de 22 de Maio e o artigo 7º n.º 3 do Decreto-Lei
120/98 de 8 de Maio', por violação do disposto no artigo 20º da Constituição. Ao abrigo do n.º 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, foi a recorrente convidada a indicar a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade (cfr. despacho de fls. 139). Veio depois a recorrente apresentar novo requerimento (fls. 140 a 141), nele dizendo que suscitou a questão da inconstitucionalidade 'em recurso da decisão de folhas 110, que deu entrada em juízo a 4/01/99'. O recurso foi admitido por despacho de fls. 142.
5. Já no Tribunal Constitucional, MS apresentou as suas alegações (fls.
144 a 156), nelas pedindo, para o que aqui releva, que se julgasse
'inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20º da C.R.P., a norma constante do n.º 3 in fine do artigo 8º do DL. 185/93 de 22 de Maio, quando interpretado, como foi no caso dos autos, no sentido de impedir o exercício do direito do contraditório por parte da recorrente, ao não lhe ser dada a possibilidade de conhecer a posição do M.P. para se poder pronunciar e oferecer provas'. Nas suas contra-alegações (fls. 158 a 163), pronunciou-se o Ministério Público no sentido da improcedência do recurso, tendo concluído do seguinte modo:
'1º– O parecer exarado pelo Ministério Público, na sequência do visto a que alude o nº 3 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 185/93, de 22 de Maio, no âmbito do procedimento destinado a aferir da idoneidade dos candidatos a adoptantes, traduz a primeira intervenção do Ministério Público em tal processo, visando facultar-lhe o contraditório relativamente às razões aduzidas pelo recorrente, na perspectiva da defesa objectiva da legalidade e da tutela dos interesses dos menores sujeitos a possível confiança para adopção.
2º– Não viola a regra do contraditório a circunstância de tal parecer não carecer de ser notificado ao recorrente, já que tal princípio não implica que a impugnação deduzida por um sujeito processual deva ser sempre notificada ao requerente ou recorrente, a fim de lhe facultar uma (inútil) reafirmação das razões que já teve plena oportunidade processual de expor, no momento em que deduziu a sua pretensão ou produziu alegações no recurso.'
II
6. A questão que se coloca no presente recurso é a seguinte: viola o princípio do contraditório a norma constante do n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido de que, no recurso judicial da decisão do organismo de segurança social que rejeite a candidatura a adoptante, não é necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público emita? Como é obvio, não pode ser apreciado, no presente recurso, o problema de saber se a recorrente MS reúne as condições necessárias para poder adoptar um menor – apreciação que, aliás, também parece pretender a recorrente, atento o teor das suas alegações de recurso para este Tribunal –, pois que a competência do Tribunal Constitucional se cinge a questões de constitucionalidade normativa. Determina o n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, na sua redacção originária (e, portanto, anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio):
'Artigo 8º Recurso
[...]
3. Recebido o recurso, pode o juiz ordenar as diligências que julgue necessárias; dada vista ao Ministério Público, deve ser proferida decisão no prazo de 14 dias.
[...].'
A norma constante do preceito acabado de transcrever encontra presentemente a sua sede legal no artigo 7º, n.º 3, do mesmo diploma. Com efeito, através do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio, foi dada nova redacção ao Capítulo III do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, onde, entre outras matérias, se regula o recurso da decisão que rejeite a candidatura a adoptante
(de que trata precisamente a norma em referência). A decisão recorrida foi ainda proferida à luz da redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio (cfr. artigo 6º deste diploma, relativo à aplicação no tempo) – ou seja, à luz da redacção originária do Decreto-Lei n.º
185/93, de 22 de Maio –, pelo que é essa redacção que há que ter em conta no presente recurso de constitucionalidade.
7. A resposta à questão colocada impõe uma breve referência ao regime jurídico da adopção, especialmente na sua vertente processual. Não serão todavia consideradas as normas relativas à colocação no estrangeiro de menores residentes em Portugal com vista à sua adopção, nem a adopção por residentes em Portugal de menores residentes no estrangeiro (respectivamente, Capítulo IV e Capítulo V do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio).
7.1. O regime jurídico da adopção contempla, em primeiro lugar, um procedimento administrativo destinado a avaliar se determinada pessoa tem condições para adoptar um menor. Nos termos do artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio
(sistematicamente inserido no Capítulo III deste diploma, cuja epígrafe é
'Intervenção dos organismos de segurança social'), 'quem pretenda adoptar comunicará essa intenção ao organismo de segurança social da área da sua residência, o qual procederá ao estudo da pretensão'. Após o estudo da pretensão do candidato a adoptante, o organismo de segurança social decide, notificando essa decisão ao interessado (artigo 7º). Caso o organismo de segurança social rejeite a candidatura do interessado, poderá este recorrer dessa decisão para o tribunal competente em matéria de família ou de família e de menores da área da sede do organismo de segurança social (n.º 1 do artigo 8º). Na sequência do requerimento de interposição do recurso, o organismo de segurança social pode tomar uma de duas atitudes: reparar a decisão ou remeter o processo ao tribunal com as observações que entender convenientes (n.º 2 do artigo 8º). Sendo o processo remetido ao tribunal – como, aliás, sucedeu no caso sub judice
–, é simples a tramitação do recurso: de acordo com o acima mencionado n.º 3 do artigo 8º, após o seu recebimento seguem-se diligências instrutórias; depois destas, segue-se a vista ao Ministério Público; e, depois desta vista, é proferida a decisão. Da decisão final não cabe recurso (n.º 4 do artigo 8º). A decisão final pode confirmar a decisão administrativa de rejeição da candidatura a adoptante
(negando provimento ao recurso interposto pelo candidato) ou, diversamente, revogar essa decisão, substituindo-a por outra que admita a candidatura a adoptante (dando provimento ao recurso). Verifica-se, assim, que o recurso judicial da decisão administrativa que rejeite a candidatura a adoptante em nada se confunde com os processos tutelares cíveis de adopção ou de confiança judicial, uma vez que através desse recurso não se pretende obter sentença que estabeleça o vínculo da adopção ou a entrega de menor com vista a futura adopção (cfr. artigos 162º a 173º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo artigo 2º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, e, mais recentemente, pelo artigo 2º do Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio). E, contrariamente ao que sucede com os já referidos processos de adopção e de confiança judicial, a lei não manda aplicar subsidiariamente, ao recurso judicial da decisão que rejeite a candidatura a adoptante, as normas relativas aos processos de jurisdição voluntária, sem prejuízo, claro está, de a sua natureza poder apontar para tal qualificação (artigo 150º da Organização Tutelar de Menores e artigos 1409º a 1411º do Código de Processo Civil: sobre aquele artigo 150º, consulte-se a anotação de Rui M. L. Epifânio e António H. L. Farinha, Organização Tutelar de Menores, 2ª reimpr., Almedina, Coimbra, 1997, p.
178 a 187). A tramitação de tal recurso apresenta-se, assim, mais simples do que a dos processos tutelares cíveis de adopção ou de confiança judicial, já que estes são regulados, quer pelas disposições que lhes são próprias (artigos 162º a 173º da Organização Tutelar de Menores, antes mencionados), quer pelas disposições gerais dos processos tutelares cíveis (artigos 146º a 161º da Organização Tutelar de Menores), quer pelas disposições dos processos de jurisdição voluntária (artigo 150º da Organização Tutelar de Menores, também já mencionado), quer, finalmente, pelas regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores (artigo 161º da Organização Tutelar de Menores).
7.2. Mas, apesar de o recurso judicial da decisão administrativa que rejeite a candidatura a adoptante (a que se fez referência no ponto anterior) não se confundir com os processos de adopção ou de confiança judicial, a decisão nele proferida pode condicionar, quer a confiança do menor ao recorrente, quer o decretamento da adopção a favor deste. Vejamos em que termos, tendo sempre presente o regime legal vigente à data em que foi proferida a decisão recorrida: isto é, o regime introduzido pelo Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, e anterior ao Decreto-Lei n.º 120/98, de
8 de Maio. De acordo com o disposto no artigo 1974º, n.º 2, do Código Civil, o decretamento da adopção pressupõe que o adoptando tenha estado ao cuidado do adoptante durante prazo suficiente para se poder avaliar da conveniência da constituição do vínculo. Por sua vez, o artigo 1979º, n.º 3, do mesmo Código estabelece que 'só pode adoptar plenamente quem não tiver mais de 50 anos à data em que o menor lhe tenha sido confiado, salvo se o adoptando for filho do cônjuge do adoptante'
(prevendo agora o n.º 4 deste artigo, aditado pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º
120/98, de 8 de Maio, que excepcionalmente essa idade pode ser inferior a 60 anos). E o artigo 1980º, n.º 1, determina que 'podem ser adoptados plenamente os menores filhos do cônjuge do adoptante e aqueles que tenham sido confiados, judicial ou administrativamente, ao adoptante'. Do teor literal destes três preceitos do Código Civil retira-se que, salvo se o adoptando for filho do cônjuge do adoptante, só será decretada a adopção plena se tiver existido prévia confiança judicial ou administrativa do adoptando ao adoptante. O mesmo sucede, aliás, quanto à adopção restrita (artigos 1992º, n.º
2, e 1993º, n.º 1, do Código Civil). Não se curará agora de saber, por se afigurar irrelevante para a resolução da questão em análise, se certas situações de facto que reúnam os requisitos para o estabelecimento da confiança administrativa podem ser a esta equiparadas, para o efeito do decretamento da adopção. A necessidade de a adopção ser precedida de confiança administrativa ou judicial do adoptando ao adoptante, caso aquele não seja filho do cônjuge deste, é ainda reiterada pelo artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, quando dispõe que 'o candidato a adoptante só pode tomar menor a seu cargo com vista a futura adopção mediante confiança judicial ou administrativa'.
7.3. A confiança judicial, nos termos do n.º 3 do artigo 1978º do Código Civil (repete-se: na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, que aliás não sofreu alteração com o Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio), pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo organismo de segurança social da área da residência do menor, pela pessoa a quem o menor tenha sido administrativamente confiado e pelo director do estabelecimento público ou direcção da instituição particular que o tenha acolhido. O processo de confiança judicial acha-se regulado no artigo 166º da Organização Tutelar de Menores. Por sua vez, a confiança administrativa, nos termos do artigo 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, 'resulta de decisão do organismo de segurança social competente que entregue o menor ao candidato a adoptante ou confirme a permanência a seu cargo'. Essa confiança administrativa 'não pode ser decidida se houver oposição de quem exerça o poder paternal ou a tutela ou de quem detenha, de direito ou de facto, a guarda do menor', bem como 'nos casos em que a situação do menor é objecto de processo instaurado em tribunal competente em matéria de família ou de família e de menores' (n.ºs 3 e 4 daquele artigo 3º). Parece, pois, que, havendo a oposição a que se refere aquele primeiro preceito, a confiança do menor com vista a futura adopção apenas pode ser judicialmente decretada, sendo necessário mover o correspondente processo judicial.
7.4. Uma vez decidida a confiança do menor, administrativa ou judicialmente, ao candidato a adoptante 'deve o organismo de segurança social proceder ao acompanhamento da situação durante o período de pré-adopção não superior a um ano e obter todos os elementos indispensáveis à realização do inquérito a que se refere o n.º 2 do artigo 1973º do Código Civil'. O relatório do inquérito é elaborado pelo organismo de segurança social, quando considere verificadas as condições para ser requerida a adopção ou decorrido o período de pré-adopção, sendo depois o seu resultado global notificado ao candidato a adoptante (n.ºs 1 e 2 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio). Nos termos do artigo 11º, n.º 1, do mesmo diploma, a adopção só pode ser requerida após a notificação do resultado global do relatório do inquérito elaborado pelo organismo de segurança social ou decorrido o prazo máximo de elaboração desse relatório.
7.5. Sem prejuízo de a lei não vedar a possibilidade de se apresentar mais tarde nova candidatura a adoptante, também ela sujeita à tramitação que se expôs, esta breve análise do regime jurídico da adopção permite concluir que, sendo negado provimento ao recurso da decisão do organismo de segurança social que rejeite tal candidatura, fica comprometida a possibilidade de se obter a confiança administrativa ou judicial de menor. Estão em causa, naturalmente, as situações em que o adoptando não seja filho do cônjuge do adoptante (como sucede no caso sub judice e nas situações mais comuns). Com efeito, sendo a candidatura rejeitada, parece óbvio que o interessado não pode obter a confiança administrativa do menor (artigo 3º, n.ºs 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio). Resultando esta de decisão do organismo de segurança social competente, seria certamente contraditório reconhecer a este organismo a possibilidade de entregar o menor a pessoa que não tivesse sido considerado idónea para a adopção. Por outro lado, e apesar de o teor literal do artigo 1978º, n.º 3, do Código Civil, não parecer impedir que se requeira a confiança judicial do menor a pessoa cuja candidatura tenha sido rejeitada, não pode esta, por si, requerer tal confiança (nem mesmo nos termos do novo n.º 4 desse artigo, aditado pelo Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio), parecendo aliás difícil admitir que, tendo sido reconhecida a inidoneidade do interessado
(maxime, por decisão judicial), as pessoas com legitimidade para o fazer a isso se prestem. Ficando comprometida a possibilidade de obtenção da confiança administrativa ou judicial, na sequência da rejeição da candidatura a adoptante, fica consequentemente comprometida a possibilidade de se requerer a adopção, atento o exposto no número 7.2. A decisão proferida no recurso a que se refere o artigo 8º do Decreto-Lei n.º
185/93, de 22 de Maio, acaba assim por condicionar o decretamento da adopção.
8. Depois de analisado, nos seus traços gerais, o regime jurídico da adopção, cumpre analisar a questão colocada pela recorrente.
8.1. O recurso a que se refere o artigo 8º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, é um recurso de uma decisão administrativa, proveniente de um organismo de segurança social. A lei não é clara quanto à qualidade de parte principal do organismo de segurança social neste recurso, dado que a sua intervenção parece limitar-se a fazer 'as observações que entender convenientes' (artigo 8º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio), na sequência da apresentação do requerimento de interposição do recurso pelo candidato a adoptante que viu a sua candidatura rejeitada. Mas, materialmente, ainda se pode estabelecer uma equivalência entre o requerimento e alegações apresentados pelo recorrente e a petição inicial, e entre as 'observações' da entidade administrativa e a contestação, não havendo porém qualquer cominação para a falta dessas observações. Se ainda podem existir algumas dúvidas quanto à qualidade de parte principal do organismo de segurança social, afigura-se claro que a intervenção do Ministério Público é uma intervenção acessória e não principal. E como tal foi, aliás, considerada na decisão recorrida (fls. 132 a133 v.º), já que na mesma se entendeu que a actuação do Ministério Público se inscreve 'no âmbito do disposto no art. 3º n.º 1 alínea a), 5º n.º 4 e 6º da LOMP [cfr. Estatuto do Ministério Público, na redacção da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto], que define a sua intervenção acessória' (a fls. 133). Efectivamente, o Ministério Público não intervém como representante do organismo de segurança social que proferiu a decisão recorrida, mas na defesa de um interesse público, que é o da protecção dos menores adoptandos. Para se chegar a esta conclusão, basta reflectir que, se o Ministério Público tivesse intervenção principal neste recurso, não se compreenderia que o processo lhe fosse com vista, em vez de ser citado nos termos gerais (artigos 194º, alínea b), e 200º do Código de Processo Civil), nem se compreenderia que não lhe fosse dada a possibilidade de contra-alegar (ou de fazer 'observações', para usar a terminologia do artigo 8º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio) antes da realização das diligências instrutórias. Por outro lado, a intervenção principal do Ministério Público, enquanto representante do organismo de segurança social, mal se compatibilizaria com a competência para representar os incapazes decorrente do seu Estatuto (artigo 3º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público), cujos interesses bem podem exigir que o Ministério Público defenda a posição do candidato a adoptante em vez da daquele organismo. A intervenção acessória do Ministério Público, prevista no artigo 6º do seu Estatuto, é desenvolvida pelo n.º 2 do artigo 334º do Código de Processo Civil, sendo suas derivações o disposto nos n.ºs 3 e 4 deste mesmo preceito (cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, Coimbra Editora, 1999, p. 592 a 593).
8.2. De qualquer modo, a qualificação da intervenção do Ministério Público neste recurso não se afigura decisiva para a resolução da questão em análise. Mesmo tendo o Ministério Público uma intervenção acessória, que não implique necessariamente a defesa de um interesse contraposto ao do candidato a adoptante, subsiste o direito deste candidato a exercer o contraditório, nos termos gerais. Isto é: o argumento de que o Ministério Público não é parte principal no presente recurso não pode servir para preterir de forma arbitrária o interesse do candidato a adoptante (que é, em última análise, o interesse na constituição do vínculo da adopção a seu favor), em benefício do interesse público na protecção dos menores, que aquela entidade defende. Como bem observa José Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, p. 175, nota
36), a prerrogativa que o Ministério Público tem, enquanto parte acessória, de alegar 'o que se lhe oferecer' até à decisão final, nos termos do n.º 4 do artigo 334º do Código de Processo Civil, 'não pode em caso algum ser entendida em termos que violem os princípios do contraditório e da igualdade de armas'
(sublinhado agora). Marginalmente, pode ainda acrescentar-se que, se o princípio do contraditório vale mesmo em relação a actos do juiz – dele decorrendo, nomeadamente, a proibição de decisões-surpresa (cfr. artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil), bem como a faculdade de, no caso das provas coligidas oficiosamente, impugnar a sua admissibilidade e intervir no acto de produção respectivo (artigo
517º do Código de Processo Civil; sobre este aspecto, veja-se ainda José Lebre de Freitas, ob. cit., p. 101 a 102) –, mal se compreenderia que esse princípio não valesse em relação a actos do Ministério Público, intervenha este como parte principal ou como parte acessória.
8.3. Contudo, tal como a qualificação do Ministério Público como parte acessória não pode servir para restringir o exercício do contraditório pelo recorrente, em nome da defesa, por parte daquela entidade, de um interesse público mais elevado, também a vigência do princípio do contraditório num
'processo sem partes' não é decisiva para responder à questão sub judice. Como é evidente, o princípio do contraditório não implica o direito de resposta em relação a qualquer questão suscitada pela parte contrária. Mesmo que se trate de jurisdição contenciosa, não é defensável que se prolongue a controvérsia até
à exaustão. Assim, por exemplo, o artigo 3º, n.º 4, do Código de Processo Civil, prevê apenas a possibilidade de resposta às excepções deduzidas no último articulado admissível, e o artigo 502º, n.º 1, do mesmo Código, não admite a réplica quando, na contestação, se tenha deduzido defesa por impugnação. O que se compreende, dado que a possibilidade de resposta, em caso de impugnação pela parte contrária, redundaria em repetição do já alegado. A resolução da questão em análise pressupõe, pois, que se averigue da existência de alguma razão para a recorrente ser notificada do parecer do Ministério Público. Por outras palavras: poderia a recorrente MS ter algum interesse legítimo em responder a tal parecer ou, pelo contrário, uma eventual resposta a tal parecer sempre redundaria em repetição do já antes por si alegado, maxime no requerimento de interposição do recurso e alegações respectivas?
8.4. Recorde-se que o Ministério Público emite parecer, nos termos do artigo 8º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, depois da fase da produção da prova em juízo. Ou seja, depois das 'diligências' a que se refere esse artigo. Tal parecer precede a decisão judicial. Como salienta José Lebre de Freitas (ob. cit., p. 102), 'cabendo ao juiz apreciar a prova, as partes têm o direito de, antes da apreciação final, isto é, antes da decisão sobre a matéria de facto, se pronunciarem sobre os termos em que ela deve ser feita (art. 3-3 [do Código de Processo Civil]). É-lhes assim facultado, uma vez produzidas todas as provas, discuti-las, pronunciando-se sobre a matéria de facto que consideram e aquela que não consideram provada, em debates orais que têm lugar ainda na audiência (art. 652, n.ºs 2-e e 5).'. O direito das partes ao debate sobre a matéria de facto, antes da correspondente decisão, é, segundo o mesmo autor, uma manifestação do princípio do contraditório no plano da prova. No plano do direito, e seguindo ainda Lebre de Freitas (ob. cit., p. 102 a 104),
'o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.'.
8.5. No presente recurso, o parecer emitido pelo Ministério Público antes da decisão final versou sobre os termos em que devia ser feita a apreciação da prova produzida no recurso. Afirma-se claramente no parecer de fls. 110 a 110 v.º, depois de se fazer uma referência aos documentos recolhidos e às declarações dos peritos e das testemunhas inquiridas, que 'os elementos de prova trazidos aos autos não infirmam os fundamentos avançados por aquela Instituição
[o organismo de segurança social] para denegar o pedido de MS'. Isto é: o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que as provas constantes dos autos – nas quais se incluem as provas recolhidas no próprio recurso, na sequência das diligências a que se refere o artigo 8º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio – demonstravam um determinado perfil da recorrente, coincidente com o perfil que lhe fora desenhado pelo organismo de segurança social. O parecer do Ministério Público versou também sobre os fundamentos de direito em que se devia basear a decisão. Com efeito, depois da apreciação da prova produzida, pronunciou-se o Ministério Público no sentido de que o perfil da recorrente, tal como resultava da prova constante dos autos, não se encaixava no perfil exigido pela lei ao adoptante, tecendo algumas considerações sobre os requisitos que o adoptante deve preencher. Isto é: o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que, no caso da recorrente, não estavam preenchidos os requisitos gerais para o decretamento da adopção (cfr. artigo 1974º, n.º 1, do Código Civil), devendo consequentemente ser indeferida a respectiva candidatura a adoptante. O parecer do Ministério Público, tanto na parte em que versou sobre a prova produzida, como na parte em que traçou o perfil legal do candidato a adoptante
(concluindo depois pelo desajustamento da recorrente a tal perfil), foi obviamente desfavorável à recorrente. À recorrente interessava demonstrar que o organismo de segurança social não tinha avaliado bem o seu carácter e o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que tal avaliação não fora infirmada pela prova entretanto produzida; à recorrente interessava persuadir o tribunal de que preenchia os requisitos legais relativos à pessoa do adoptante e o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que tais requisitos, face ao demonstrado nos autos, não se encontravam preenchidos. Sendo tal parecer desfavorável à recorrente, é evidente que se impunha facultar-lhe o exercício do contraditório em relação ao seu conteúdo.
8.6. O Senhor Procurador-Geral Adjunto, nas suas contra-alegações de fls.
158 a 163, afirma que o Ministério Público se limita, 'com a dita intervenção processual, a exercer – ele próprio – o contraditório relativamente à pretensão do recorrente, apreciando – e deduzindo eventual impugnação – relativamente às razões aduzidas na alegação apresentada pelo recorrente [...]'. Não pode aceitar-se tal entendimento. O referido parecer do Ministério Público, no caso dos autos, não versou sobre matéria alegada pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso e respectivas alegações. Foi bastante mais longe, uma vez que se pronunciou quanto aos termos em que devia ser apreciada a prova produzida no âmbito do recurso e quanto ao enquadramento jurídico dos factos que, na perspectiva do Ministério Público, haviam ficado provados com essa mesma prova produzida no recurso. Ou seja: o parecer do Ministério Público não equivaleu a qualquer defesa por impugnação que, naturalmente, não exigiria resposta da recorrente (por tal equivaler a mera repetição do já alegado). Só teria sentido estabelecer um paralelismo entre o parecer do Ministério Público e a defesa por impugnação – para efeitos de exclusão do contraditório da recorrente –, se tal parecer tivesse sido emitido antes das diligências instrutórias realizadas no âmbito do recurso, o que não aconteceu. Sendo a prova produzida no âmbito do recurso posterior ao requerimento de interposição do recurso e suas alegações, e pronunciando-se o Ministério Público, não só quanto ao modo como tal prova devia ser apreciada, mas também quanto ao modo como os factos demonstrados com tal prova deveriam ser legalmente enquadrados, é irrecusável que o seu parecer (pese embora o particularismo da respectiva forma) se aproxima muito mais de uma alegação sobre a matéria de facto e a matéria de direito que, no processo comum ordinário de declaração, é produzida antes da decisão (de facto e de direito, respectivamente), em pleno contraditório. Não se justifica que, antes da decisão sobre a matéria de facto e da decisão sobre a matéria de direito (que constam da mesma peça processual, no caso do presente recurso), a recorrente não tenha tido a oportunidade de se pronunciar sobre o conteúdo do parecer do Ministério Público, que lhe era desfavorável e que incidia sobre elementos que ainda não tivera ocasião de discutir (sendo esses elementos o resultado das provas entretanto produzidas e o enquadramento jurídico desse resultado). Não o justifica a qualidade de parte acessória do Ministério Público nem a suposta equiparação do seu parecer a uma defesa por impugnação.
9. Pelos fundamentos atrás expostos, conclui-se que viola o princípio do contraditório a norma constante do n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido de que, no recurso judicial da decisão do organismo de segurança social que rejeite a candidatura a adoptante, não é necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e versando sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar: no caso, sobre os termos em que devia ser apreciada a prova produzida no recurso e sobre o enquadramento jurídico dos factos com ela demonstrados. A resposta à questão colocada no número 6. é, assim, afirmativa, quando estejam preenchidos (como sucede no caso sub judice) os dois requisitos acabados de apontar, e que, repete-se, são os seguintes: ser o parecer desfavorável ao recorrente e versar sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar.
Apesar de não se encontrar autonomamente consagrado na Constituição, fora do âmbito do processo penal, o princípio do contraditório tem diginidade constitucional, por derivar, em última instância, do princípio do Estado de direito (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 397/89, Diário da República, II Série, n.º 212, de 14 de Setembro de 1989, p. 9197 ss; n.º 62/91, Diário da República, I Série, n.º 91, de 19 de Abril de 1991, p. 2245 ss; n.º 284/91, Diário da República, II Série, n.º 245, de 24 de Outubro de
1991, p. 10680 s).
O princípio do contraditório tem como objectivo assegurar um tratamento igualitário das partes no processo, designadamente ao nível da admissão da prova e da apreciação do seu valor. Sendo obrigado a ouvir ambas as partes, o tribunal fica dotado da base imprescindível para proferir uma decisão imparcial e justa. Esse princípio decorre portanto também, quer do direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos
(artigo 20º, n.º 1, da Constituição), quer do direito a um processo equitativo
(artigo 20º, n.º 4), quer do próprio princípio da igualdade (artigo 13º).
10. De todo o modo, a norma constante do n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido explicitado no número anterior, viola o direito a um 'processo equitativo', a que a Constituição passou a fazer expressa referência a partir da revisão de 1997. Como este Tribunal disse no acórdão nº 345/99 (Diário da República, II Série, nº
40, de 17 de Fevereiro de 2000, p. 3293 ss):
'O conceito de «processo equitativo» tem sido desenvolvido sobretudo pela jurisprudência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 6º tem precisamente como epígrafe «direito a um processo equitativo» e cujo § 1º dispõe, retirando as palavras do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que «qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativamente», frase que é repetida no artigo 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Ora a revisão constitucional pretendeu precisamente, fazendo uma «transposição explícita do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», tendo presente «todo o trabalho do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», «dar dignidade constitucional» (expressões do deputado Alberto Martins na reunião de 5.9.1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, edição provisória não oficial de José de Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, 2ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1999), a conteúdos normativos que, através daquele direito internacional, já integravam a ordem jurídica portuguesa e inclusivamente, num certo entendimento, através da remissão no nº 2 do artigo 16º, a própria ordem constitucional (no mesmo sentido se pronunciou o deputado Luis Sá, ibidem: «toda a densificação é bem vinda e nesse sentido creio que a consagração do princípio do processo equitativo pode ser uma contribuição para que no plano da legislação ordinária venha a ser reforçado o princípio da igualdade das armas, dos direitos de defesa, da justiça no processo em termos gerais»: também o deputado Luis Marques Guedes admitiu um «ganho acrescido»).'
O respeito por um processo equitativo exige a criação de condições objectivas que permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando se considere não ser necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e versando sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar.
III
11. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
· Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, a norma constante do n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido de que, no recurso judicial da decisão do organismo de segurança social que rejeite a candidatura a adoptante, não é necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e versando sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar;
· Conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida no que respeita à questão da constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2000- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração que junto). Artur Maurício (vencido nos termos da declaração de voto do Exmº Cons. Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa DECLARAÇÃO DE VOTO: Dissenti, e por isso, votei nos presentes autos quanto à questão da inconstitucionalidade do nº 3 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 185/93, de 22 de Maio, quando interpretado como não sendo necessária a notificação do parecer do Ministério Público, desfavorável ao interessado e relativamente ao qual ainda não tinha tido oportunidade de se pronunciar. O fundamento da inconstitucionalidade foi a violação do processo equitativo previsto no artigo
20º, nº4, da Constituição da República Portuguesa. Vejamos porquê. No caso em apreço – um processo administrativo de adopção – não se está perante um processo de 'partes', por isso a posição do Ministério Público não pode ser avaliada nos mesmos termos em que se aprecia este último tipo de processo. O Decreto-Lei nº 185/93 veio aprovar o novo regime jurídico da adopção, alterando vários artigos do Código Civil e da Organização Tutelar de Menores e criando novas regras para a intervenção dos organismos de Segurança Social no processo de adopção. E é dentro desta última regulamentação que se suscita o problema que o acórdão resolveu em termos que nos levaram a discordar da decisão. De facto, um dos aspectos relevantes da intervenção dos organismos de segurança social insere-se na avaliação das pessoas candidatas a adoptantes: desde logo, quem pretender adoptar deve comunicar essa intenção ao organismo de segurança social da área da sua residência. Segue-se o estudo da pretensão do requerente, abrangendo a apreciação da personalidade, a saúde, a idoneidade para criar e educar o menor, a situação familiar e económica do candidato à adopção e das razões que determinaram o pedido. Concluído este estudo – que deverá estar pronto no prazo máximo de seis meses – o organismo de segurança social profere a decisão e notifica-a ao interessado. Se a decisão for de rejeição da candidatura ou não confirmar a permanência do menor, o interessado pode interpor recurso para o tribunal competente em matéria de família da área da sede do organismo de segurança social, sendo o recurso apresentado no referido organismo, que disporá então de oportunidade para reparar a decisão; se o não fizer, deve remeter o processo ao tribunal dentro do prazo de 15 dias, com as observações que entenda convenientes (artigos 5º, 6º e
7º). Recebido o recurso, o juiz ordena as diligências que julgue necessárias e, depois, concede vista ao Ministério Público, proferindo a decisão quanto à candidatura ou quanto à permanência do menor em 15 dias.
É aqui que se levanta a questão: a não notificação do parecer do Ministério Público ao requerente-candidato à adopção viola o princípio do contraditório e, por aí, o princípio do processo equitativo? No caso em apreço entendi que não. Com efeito, o Ministério Público teve acesso a todas as diligências e esteve presente na produção de todos os elementos que serviram ao juiz para decidir a questão. A sua intervenção, ao elaborar o parecer final, não representa outra coisa que não seja a expressão da respectiva posição face ao pedido formulado – uma vez que foi a primeira vez que o Ministério Público teve oportunidade para expressar tal posicionamento. Trata-se afinal do mero exercício do contraditório que o acórdão considerou violado.
É certo que se trata de uma intervenção para defesa dos interesses do menor, em que o Ministério Público, para além da defesa da legalidade tem a seu cargo a defesa dos superiores interesses do menor, enquanto pessoa que não tem especificamente quem proteja, de forma imparcial, os respectivos interesses. De qualquer modo, apesar deste particular aspecto, não pode falar-se nesta situação de um processo de 'partes', em que dois litigantes em posição de plena igualdade de armas processuais discutem uma controvérsia jurídica. No caso, a intervenção do Ministério Público no termo de um procedimento administrativo que se desenrola perante o juiz e em que o requerente tem pleno acesso à produção de todos os elementos que vão servir para a decisão, a não notificação ao requerente do teor do respectivo parecer não torna o procedimento inequitativo. Na verdade, trata-se de um procedimento em que a defesa do interesse público e da legalidade assumem uma particular intensidade, por se tratar de um menor e que justifica que a intervenção do Ministério Público seja a que ocorre em último lugar antes da decisão e que não tem que ser notificada por representar a sua primeira tomada de posição no procedimento, quanto aos factos alegados pelo requerente e quanto aos elementos de prova produzidos.
É aqui perfeitamente irrelevante o facto de a pronúncia do Ministério Público abranger os factos sobre os quais se produziu prova, uma vez que, por um lado, a parte assistiu a essa produção de prova ou teve a ela acesso quando foi de origem oficiosa, e, por outro lado, nunca até ao momento o Ministério Público teve no processo qualquer intervenção. Assim, o parecer elaborado não só realiza o contraditório e o verdadeiro processo equitativo, como também representa a defesa de um interesse público da protecção dos interesses do menor, não deixando o Ministério Público de agir como um 'amicus curiae', pelo que não se vê que seja ofendido qualquer norma ou princípio constitucional. Em meu entender, a norma em causa – o nº 3 do artigo 7º do Decreto-Lei nº
185/93, de 22 de Maio – não é inconstitucional.
Juiz Conselheiro Vítor Nunes de Almeida