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Processo nº 781/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente o Ministério Público, foi proferido o acórdão nº 58/99, a fls. 906 e seguintes, em que, atendendo uma reclamação do Ministério Público, apresentada nos termos do artigo 700º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi decidido anular 'o processado a partir de fls. 867 dos autos', incluindo o acórdão nº
555/98, a fls. 872 e seguintes (e neste acórdão havia sido decidido 'julgar habilitados, face à prova documental, os recorridos A..., J... e M..., em substituição da sociedade MV..., Ldª, para com eles prosseguirem os autos e seus legais termos' e 'não tomar conhecimento do recurso', então interposto pelo Ministério Público).
2. Foi entretanto ditado aos autos o seguinte despacho do Relator:
'A anulação do processado, a partir de fls 867 dos autos, ditada pelo acórdão nº
58/99, impõe que faculte ao Ministério Público o contraditório relativamente ao incidente de habilitação constante da resposta dos expropriados, a fls. 859 e
860. Só que, podendo envolver o conhecimento e julgamento de tal incidente, quando há oposição ao pedido (como aqui se perfila, dada a atitude do Ministério Público então reclamante), 'a produção de prova que no caso couber', por força do disposto no artigo 374º, nº 1, do Código de Processo Civil - registe-se mesmo que nem sequer há obstáculo a que, sendo improcedente a habilitação, seja deduzida outra (nº 3 do artigo 372º) - e esse tipo de tramitação e desenvolvimento processual não se coaduna com a competência material essencial do Tribunal Constitucional, há que apreciar e decidir ex ante este aspecto da competência. Com efeito, está constitucionalmente marcada ao Tribunal Constitucional uma competência específica para 'administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional', sendo os recursos 'restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, conforme os casos' (artigos 221º e
280º, nº 6 da Constituição), o que é repetido no artigo 6º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, nada dizendo esta lei quanto aos incidentes da instância previstos no Código de Processo Civil, conquanto sejam 'subsidiariamente aplicáveis' as normas deste Código, 'em especial as respeitantes ao recurso de apelação' (artigo 69º da Lei nº 28/82). Ora, se por meras razões de economia processual, o Tribunal Constitucional, num ou noutro caso, julga tais incidentes, nomeadamente, quanto à habilitação, se 'a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida já estiver declarada noutro processo, por decisão transitada em julgado, ou reconhecida em habilitação notarial' (nº 1 do artigo 373º do Código citado), o mesmo não se impõe nos demais casos que podem envolver a produção de prova, sem quaisquer limites (artigo 374º do mesmo Código). Sendo certo que o julgamento definitivo de habilitação marca o curso ulterior do processo (para com eles - os 'sucessores da parte falecida na pendência da causa' -
'prosseguirem os termos da demanda', como resulta do nº 1 do artigo 371º). Assim, não competindo in caso ao Tribunal Constitucional o julgamento da presente habilitação, face à postura do Ministério Público, querendo contraditar o pedido, determino que os autos se remetam ao Supremo Tribunal de Justiça, para ser aí dado cumprimento ao artigo 377º, do citado Código'.
3. Em cumprimento desse despacho, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal a quo e depois transitaram para o Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, tendo sido entretanto junto um requerimento da sociedade recorrida MV..., Ldª, entrado na secretaria do Tribunal Constitucional, com a data de 9 de Março de 1999, e dirigido aos 'Venerandos Senhores Conselheiros', em que se peticionou 'a desistência da requerida habilitação, até porque ainda não se procedeu á escritura prevista no nº 1 do artigo 145º do C. S. Comerciais, - reservando-se a requerente a faculdade de efectivar a dissolução e liquidação definitivas mais tarde, o que poderá verificar-se (ou não) durante a instância processual - é irrelevante', acabando o Meretíssimo Juiz daquele Tribunal por ordenar a remessa dos 'autos de imediato ao Tribunal Constitucional', de acordo com o promovido pelo Ministério Público.
4. Ouvidas as partes 'quanto ao argumento dos autos neste Tribunal Constitucional' veio o Ministério Público recorrente dizer que 'está presentemente ultrapassada a única razão que tinha determinado a remessa, a título devolutivo, dos autos aos Tribunais Judiciais, por ter de considerar-se precludido o incidente de habilitação deduzido perante este Tribunal, como decorrência da expressa desistência de tal pretensão pelo requerente', impondo-se 'deste modo, que nos autos seja proferido novo acórdão – na sequência do referido acórdão anulatório, nº 58/99 – decidindo acerca do recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, já que, sem a prolação desta nova decisão pelo Tribunal Constitucional, não poderá obviamente considerar-se transitada em julgado a decisão proferida acerca dos montantes indemnizatórios devidos aos expropriados' (em processo expropriativo desencadeado em Julho de 1987).
E veio a sociedade recorrida dizer o seguinte:
'- a questão que originara a nulidade está claramente prejudicada;
- não foi sindicada 'a falta de pressupostos do presente recurso de constitucionalidade', consequentemente,
- não há qualquer razão para a manutenção dos autos neste Venerando Tribunal, devendo regressar ao Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, o que ora, respeitosamente, se requer'
5. Vistos os autos, tendo em conta do disposto no artigo 6º, nºs 2 e 4, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, cumpre decidir. Uma vez que, como sustenta o Ministério Público, e resulta do processado nas instâncias, tem de considerar-se 'precludido o incidente de habilitação deduzido perante este Tribunal, como decorrência da expressa desistência de tal pretensão pelo requerente', nada há a decidir agora e aqui quanto à habilitação dos interessados acima identificados, para com eles, e em substituição da sociedade MV..., Ldª, prosseguirem os autos os seus legais termos, havendo apenas que decidir se é caso de não se poder tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade. Neste plano, porém, nada de novo se operou relativamente à posição tomada por este Tribunal Constitucional no citado acórdão nº 555/98, que, por isso, se vai reeditar. O ponto de partida é uma EXPOSIÇÃO feita pelo Relator, nos termos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e anteriormente à redacção introduzida pelo artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e que é do seguinte teor:
'1. O Ministério Público junto das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional em requerimento que se passa a transcrever:
‘O Ministério Público, junto das Secções Cíveis do S.T.J., vem, ao abrigo do disposto nos artigos 72º nº 1, a) e 70º, nº 1 b) da Lei nº 28/82, de 15.11, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do douto Acórdão de 28.10.97, proferido na revisão referenciada em epígrafe, que negou provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmou o douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 16.01.97. Fundamenta-se o recurso no facto do acórdão recorrido ter fixado indemnização a pagar pelo Estado profundamente exagerada e desproporcionada, já que foi desacompanhada de análise objectiva da situação, ao ter-se considerado existir uma zona da parcela expropriada com capacidade edificativa, o que não corresponde à realidade. Tal ocorreu após interpretação e aplicação dos artigos 27º, nº 1 e 28º, nº 1 do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11.12, com clara violação do artigo 62º nº 2 da Constituição da República Portuguesa. A mencionada inconstitucionalidade foi suscitada pelo Ministério Público no decurso do processo de expropriação em apreço’.
2. O acórdão recorrido, no tocante ao recurso do Ministério Público, posicionou-se nestes termos:
‘16. Resta apreciar o recurso do Acórdão da Relação, de 16/1/97 (fls. 615/628) interposto pelo Exmº Magistrado do Ministério Público. Para demonstrar a sua improcedência, porém, pouco há a dizer, tendo em conta, até, o que atrás se escreveu. Quanto à questão da suspensão da instância, salientar-se-á que esta era de todo injustificada, quer porque idêntico pedido já havia sido indeferido por despacho transitado em julgado (fls. 134), quer porque, como vimos, a decisão desta causa não estava dependente da decisão do recurso contencioso de anulação então pendente no STA. O que conduz ao naufrágio da conclusão I do nº 6. Soçobra, igualmente, a conclusão II, na medida em que o recurso para este Supremo Tribunal tem de visar o acórdão da Relação e o que se ataca, aí, é a decisão da 1ª instância. Nas conclusões III e IV, por fim, pretende o recorrente discutir o valor de indemnização arbitrada. Simplesmente, tanto à luz do Código das Expropriações de 1976 (art. 46º nº 1 do DL 845/76, de 11 de Dezembro), aqui aplicável, como à luz do Código das Expropriações, aprovado pelo DL nº 438/91, de 9 de Novembro (cfr. Assento de
30/05/95, in DR, I Série-A, de 15/5/97), é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor de indemnização devida em expropriação’. E as citadas conclusões III e IV das alegações do Ministério Público recorrente estão assim transcritas no mesmo acórdão:
‘III - O Acórdão recorrido (o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Janeiro de 1997) 'considerou que nenhuma nulidade ou ilegalidade foi cometida pelo Tribunal da 1ª instância', quando a verdade é que 'o laudo acolhido na sentença viola frontalmente o disposto no art. 62º do DL 794/76' e 'o Ac. do T. Constitucional nº 131788, de 29/6/88, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do nº 1 do artº 30º do C. das Expropriações'. IV - O mesmo acórdão, 'na parte em que fixou a indemnização a pagar pelo Estado, não fez uma análise objectiva da situação, considerando existir uma zona da parcela expropriada com capacidade edificativa, que não existe, arbitrando uma indemnização profundamente desproporcionada', pelo que os arts. 27º nº 1 e 28º nº 1 do C. das Expropriações, 'na interpretação', que nele lhes foi dada,
'violam o disposto no art. 62º nº 2 da CRP'’.
3. Daqui decorre, à evidência, que no acórdão recorrido não se fez a aplicação das normas questionadas dos artigos 27º, nº 1, e 28º, nº 1, do Código das Expropriações de 1976, que se reportam à matéria da fixação da indemnização, exactamente porque nele se considerou que ‘é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida em expropriação’. Isto significa que o Supremo Tribunal de Justiça, tendo presente que o Ministério Público recorrente pretendia ‘discutir no valor de indemnização arbitrada’, não se pronunciou, ainda que implicitamente, sobre tal matéria, por entender que não cabia o objecto do recurso decidir ‘sobre a fixação do valor de indemnização devida em expropriação’. Tanto basta para concluir que falta um dos pressupostos do presente recurso de constitucionalidade - o da aplicação das normas jurídicas cuja inconstitucionalidade haja sido arguida durante o processo (artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28//82) - e, consequentemente, não se pode tomar conhecimento do recurso'. Ouvidas as partes, veio o Ministério Público responder, terminando por pedir que
'deverá o presente recurso prosseguir os seus trâmites normais', na base das seguintes considerações:
__reconhecendo que o acórdão recorrido 'limitou-se a dirimir questão estritamente procedimental, traduzida em saber se cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão proferida pela Relação, em processo expropriativo, sobre o montante da indemnização devida pelo expropriante', a verdade é que, 'apesar de uma formulação eventualmente menos clara', o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade 'deve ser interpretado e entendido como traduzido a manifestação da vontade de recorrer do acórdão proferido pela Relação de Lisboa sobre tal questão - e que se tornou decisão ‘última’ e ‘definitiva’, dentro da ordem dos tribunais judiciais, sobre tal tema, após ser proferida a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que não tomou conhecimento do recurso', fundando-se 'tal requerimento no preceituado no artigo 75º, nº 2, da Lei nº 28/82' ('Ou seja: apesar de uma formulação não totalmente clara e concludente, no que toca à precisa identificação da decisão recorrida, parece-nos que o requerimento de fls. 846 poderá comportar, quando devidamente interpretada, a manifestação da vontade de impugnar o acórdão confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, proferido pela Relação em 16 de Janeiro de 1997 - e em que se fixou o montante da indemnização devida ao expropriado - surgindo a referência ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça apenas na perspectiva de se integrar a estatuição constante do nº 2 do artigo
75º da Lei nº 28/82').
__requerendo, em tal sentido, 'a rectificação ou aclaração de tal requerimento - sendo a proferida pela Relação a decisão de que efectivamente se pretendeu recorrer, fundando-se a tempestividade de tal recurso na estatuição do nº 2 do artigo 75º da Lei do Tribunal Constitucional e tendo como objecto a questão de inconstitucionalidade normativa identificada a fls. 846 v., suscitada no
‘parecer’ do representante do Ministério Público junto da Relação de Lisboa'. Responderam também os então recorridos A..., J... e M..., todos sócios e liquidatários da sociedade MV..., Ldª, sustentando que 'é doutamente fundada a orientação' a que aderiu aquela EXPOSIÇÃO e requerendo ainda que 'prossigam os autos com os ora requerentes' (juntaram com a resposta procurações e um documento relativo à dissolução da sociedade com habilitação notarial).
6. O entendimento assumido na EXPOSIÇÃO não foi abalado pelo Ministério Público recorrente, que reconheceu ser 'inquestionável que o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 28 de Outubro de 1997 não se pronunciou sobre o montante da indemnização arbitrada, não podendo, consequentemente ter aplicado as normas cuja constitucionalidade o representante do Ministério Público junto da Relação de Lisboa havia questionado, no seu ‘parecer’ a fls. 610/611'. O que fica, portanto, por saber é se a 'formulação não totalmente clara e concludente' do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, talqualmente se expressa o Ministério Público, permite recuperar como decisão objecto desse recurso o acórdão do tribunal de relação, à luz do artigo 75º, nº
2, da Lei nº 28/82, admitindo-se e deferindo-se, por consequência, a rectificação ou aclaração do dito requerimento. Só que não se vislumbra nenhum erro, nem sequer obscuridade ou imperfeição, no requerimento em causa, antes ele é claro e inequívoco na sua expressão literal, quando, pelo menos, identifica a decisão recorrida. Com efeito, lê-se nele que o recurso de constitucionalidade vem interposto 'para o Tribunal Constitucional, do douto acórdão de 28.10.97, proferido na revista referenciada em epígrafe' (e é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça), citando-se 'os artigos 72º, nº 1, a) e 70º, nº 1, b) da Lei nº 28/82, de 15.11'. A referência no mesmo requerimento ao acórdão anterior do Tribunal da Relação de Lisboa, mas sem indicação do artigo 75º, nº 2, da mesma Lei nº 28/82, e a identificação da questão da inconstitucionalidade, não são razão bastante para erigir como objecto do recurso aquele acórdão, considerando-se ainda tempestiva a interposição do recurso. Doutro modo, estar-se-ia a admitir, fora do condicionalismo legal, a substituição do primitivo requerimento pelo pedido agora feito neste Tribunal Constitucional pelo Ministério Público. Com o que não pode ser atendido o pedido de 'rectificação ou aclaração' formulado pelo Ministério Público recorrente. Resta, portanto, manter o juízo manifestado na referida Exposição e concluir, como aí se concluiu que, ' falta um dos pressupostos do presente recurso de constitucionalidade - o da aplicação das normas jurídicas cuja inconstitucionalidade haja sido arguida durante o processo (artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28//82) - e, consequentemente, não se pode tomar conhecimento do recurso'.
7. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento do recurso. Lisboa, 13 de Julho de 2000 Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida