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Proc. nº 131/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. I.,Ldª propôs no Tribunal Judicial de Santa Comba Dão acção de condenação, sob a forma ordinária, contra a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de V.,CRL, pedindo o pagamento de uma indemnização por incumprimento contratual no montante de 147.105.000$00, acrescido dos juros à taxa legal de 10% desde a data da citação e até efectivo pagamento, e formulando ainda um pedido subsidiário. Na contestação, a ré deduziu a excepção de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial decorrente de falta, insuficiência ou ininteligibilidade da causa de pedir, pedindo consequentemente a absolvição da instância. Prevenindo a hipótese de não ser absolvida da instância, deduziu a excepção de caducidade do direito de acção, pedindo a absolvição do pedido subsidiário. Finalmente, e para o caso de ainda assim não se entender, a ré defendeu-se por impugnação, pedindo a absolvição dos pedidos formulados pela autora. Na réplica, a autora concluiu como na petição inicial. Na tréplica, a ré pediu, entre o mais, que a matéria dos artigos 26º a 43º da réplica fosse desconsiderada nos termos subsequentes dos autos.
2. Por despacho de 27 de Setembro de 1999 (fls. 80-81), foi a autora convidada para, em 15 dias, concretizar o disposto no artigo 23º da petição inicial, bem como para especificar os factos que a levavam a concluir pelos valores referidos nos seus artigos 66º e 67º. Notificada deste despacho, veio a ré arguir a respectiva nulidade (fls. 86 e seguintes), por omissão do dever de indicar as razões de direito que fundamentaram a decisão de convidar a autora a aperfeiçoar a sua petição. À cautela, adiantou que não satisfaria 'à necessidade de conformação da marcha do processo com a legalidade a invocação do disposto no n.º 3 do artº 508º do Cód. de Proc. Civil. É que, e na verdade, tal disposição é inconstitucional, por violação do princípio da imparcialidade dos Tribunais, ínsito no princípio da igualdade, consagrado pelo artº 13º da Constituição da República Portuguesa'. Também notificada do mencionado despacho, veio a autora adicionar à sua petição inicial novos factos, para poderem figurar na base instrutória (fls. 91-92). Por despacho de 25 de Novembro de 1999 (fls. 93-93 v.º), foi ordenada a notificação da ré para em 15 dias se pronunciar (contestar) sobre os novos factos articulados pela autora, nos termos do artigo 508º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Civil. Foi igualmente julgada procedente e suprida a nulidade do despacho de 27 de Setembro de 1999, arguida pela ré, procedendo-se à indicação de que o mesmo se baseou, de direito, no artigo 508º, n.º s 3, 4 e 5, do Código de Processo Civil. Notificada do novo articulado apresentado pela autora, veio a ré responder (fls.
94-95), mantendo tudo o que havia dito na contestação a propósito da ineptidão da petição inicial, por insuficiência da causa de pedir, e deduzindo ainda defesa por impugnação.
3. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de V.,CRL veio então, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, interpor 'recurso para o Tribunal Constitucional da decisão que aplica o disposto no n.º 3 do artº 508º do Código de Processo Civil, não considerando materialmente inconstitucional tal preceito, ao contrário do que foi suscitado pela Recorrente' (requerimento de fls. 97-99). A decisão recorrida materializa-se, conforme explicitado pela recorrente em tal requerimento, no despacho de fls. 80 e 81, integrado pelo esclarecimento de fls.
93 v.º, e ainda no despacho de fls. 92, admitindo implicitamente o articulado apresentado pela autora na sequência do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial. O recurso foi admitido por despacho de fls. 101.
4. Já no Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações
(fls. 105-109), tendo concluído do seguinte modo:
'A norma do n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil, a cuja sombra se acolhem as doutas decisões recorridas, é materialmente inconstitucional por violação directa do princípio da imparcialidade dos Tribunais ínsito no princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que: A. Prevê e permite a prolação do despacho de aperfeiçoamento em fase posterior aos articulados, após a tomada de posição pelo réu ou pelo reconvindo, e, mesmo, após a formulação por este de um pedido, tendencialmente absolutório do pedido ou da instância, com a mesma dignidade e a mesma legitimidade do formulado pelo autor (ou reconvinte) e que, assim, não é atendido ou vê protelada a sua apreciação; B. O aperfeiçoamento só vale para a acção ou para a reconvenção, para o autor, em sentido lato, mas já não para o réu – cuja contestação a Lei não prevê que seja aperfeiçoada; C. Prevê e permite que o juiz se comprometa com a bondade da solução que preconizou; D. Prevê e permite que um dos pedidos, aquele que o réu formula, seja desatendido em benefício do pedido formulado pelo autor, que é, assim, inviabilizado. E. Põe em causa o próprio fair play que timbra a prática forense e a cultura jurídica civilizada, até por isso não podendo subsistir no nosso ordenamento jurídico.'
A recorrida I.,Ldª, nas suas contra-alegações (fls. 114-115), pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil, aduzindo as seguintes razões:
'[...] a verdade é que a imparcialidade dos Tribunais jamais estará posta em causa, pela mera aplicação, é o que está em causa, do dispositivo previsto no artigo 508º nº 3 do Código de Processo Civil, até porque foi reformulado o princípio da igualdade das partes, através do novo art. 3º A do Código de Processo Civil. Não está assim correcto o que a recorrente refere a tal respeito, até porque o Juiz que aplicar tal norma não só estará a intervir apenas a nível dos mecanismos processuais, como não está de modo algum a tomar posição sobre a questão de fundo. Aliás, idêntica situação já existe no art. 29 alínea c) do Código de Processo do Trabalho, em termos quiçá, mais amplos que os da norma em apreço. Para terminar, dir-se-á muito concisamente que as razões que ditaram a existência de tal norma, bem expostas e motivadas no preâmbulo do respectivo diploma legal o D.L. 329/95 de 12 de Dezembro, são bem demonstrativos e justificativos da existência da norma e do infundado da pretensão da recorrente.'
II
5. É o seguinte o teor do artigo 508º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro:
'Artigo 508º
(Suprimento de excepções dilatórias e convite ao aperfeiçoamento dos articulados)
[...]
3. Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
[...].'
Defende a recorrente que a norma constante do preceito transcrito é inconstitucional, por violação do 'princípio da imparcialidade dos tribunais
ínsito no princípio da igualdade'.
Verificados que estão os pressupostos processuais do presente recurso, cumpre apreciar se assim é.
Para tanto, importa começar por compreender a solução legal em referência, o que pressupõe atender ao regime que a enquadra, aos seus antecedentes históricos e aos objectivos prosseguidos com a sua introdução no ordenamento português.
6. Após o termo da fase dos articulados no processo comum ordinário de declaração, o Código de Processo Civil regula, nos seus artigos 508º e seguintes, a fase da audiência preliminar. Apesar de ser esta a designação legal da fase subsequente à dos articulados, ela não se confina à audiência preliminar propriamente dita. Na verdade, antes desta audiência – que, aliás, pode não existir (cfr. artigo
508º-B) –, o Código regula, no seu artigo 508º, um despacho (também eventual) destinado ao suprimento de excepções dilatórias e ao convite ao aperfeiçoamento dos articulados. Como o tratamento legal deste despacho precede o do despacho saneador (regulado nos artigos 508º-A, n.º 1, alínea d), e 510º), é usual designá-lo despacho pré-saneador. Refere A. S. Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II, 2ª ed., Coimbra, 1999, p. 58), a propósito do despacho pré-saneador, que com esta designação 'pretende-se abarcar toda a intervenção judicial tendente a regularizar a instância quando se detectem nulidades processuais ou excepções dilatórias passíveis de sanação, ou a suprir falhas menores que afectem os articulados, quer por deficiente alegação da matéria de facto, quer por falta de cumprimento de determinados requisitos formais ou junção de documentos necessários à regularização da instância. [...] O conteúdo genérico de tal intervenção judicial resulta basicamente do disposto no art. 508º, embora possamos encontrar afloramentos noutras normas avulsas, tais como nos arts. 24º,
33º, 40º, 206º, nº 2, ou 501º, nº 3'. O despacho (pré-saneador) destinado ao suprimento de excepções dilatórias encontra-se previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 508º e o despacho que convida ao aperfeiçoamento dos articulados na alínea b) desse preceito.
O despacho (pré-saneador) que convida ao aperfeiçoamento dos articulados, genericamente previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 508º, conhece ainda duas modalidades. A primeira encontra-se prevista no n.º 2 do artigo 508º e consiste num convite ao suprimento de irregularidades dos articulados. A segunda encontra-se prevista no n.º 3 desse artigo e consiste num convite ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. No caso dos autos, o juiz do tribunal recorrido proferiu o despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados previsto no n.º 3 do artigo 508º, isto é, o despacho de convite ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. O regime aplicável a este despacho não se esgota na regulação contida neste n.º
3. Efectivamente, dispõe ainda o n.º 4 do artigo 508º que, se a parte corresponder ao convite ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, 'os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova'. E o n.º 5 acrescenta o seguinte: 'As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.º s 3 e 4, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 273º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 489º e 490º, quando o sejam pelo réu'. Como refere Paula Costa e Silva ('Saneamento e condensação no novo processo civil: a fase da audiência preliminar', Aspectos do novo processo civil, Lisboa, 1997, p. 232-233), '[o] nº 5 do art. 508 vem fixar limites ao aperfeiçoamento a introduzir pelas partes. Se o aperfeiçoamento houver de ser efectuado pelo autor, o aperfeiçoamento não poderá traduzir-se numa alteração ou ampliação da causa de pedir. Por outro lado, sendo o aperfeiçoamento introduzido pelo réu, dele não pode resultar a dedução de uma nova excepção.'. Dispõe ainda o n.º 6 que 'não cabe recurso do despacho que convide a suprir irregularidades ou insuficiências dos articulados'. Finalmente, sublinhe-se que o suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto pode ainda ocorrer na própria audiência preliminar. Na verdade, o artigo 508º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, determina que uma das finalidades dessa audiência é a de 'suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate'.
7. Para melhor apreensão do carácter inovatório ou não da figura prevista no n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil – e, mais genericamente, da figura do despacho que convida ao aperfeiçoamento dos articulados, de que aquela é uma das modalidades possíveis –, importa fazer uma referência sucinta ao regime do aperfeiçoamento dos articulados anterior à reforma do Código de Processo Civil, materializada no Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro. O Código contemplava também, no seu artigo 477º, sistematicamente inserido na fase dos articulados e tendo como epígrafe 'Petição irregular ou deficiente', um despacho de aperfeiçoamento, que constituía, a par do despacho de indeferimento liminar e do despacho de citação, uma das modalidades de despacho liminar. Determinava esse artigo 477º, no seu n.º 1, que 'quando não ocorra nenhum dos casos previstos no n.º 1 do artigo 474º [casos de indeferimento liminar da petição inicial], mas a petição não possa ser recebida por falta de requisitos legais ou por não vir acompanhada de determinados documentos, ou quando apresente irregularidades ou deficiências que sejam susceptíveis de comprometer o êxito da acção, pode ser convidado o autor a completá-la ou a corrigi-la, marcando-se prazo para a apresentação de nova petição'. Verifica-se, assim, que o despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados, actualmente previsto e regulado na alínea b) do n.º 1 do artigo
508º e nos números subsequentes deste preceito, distingue-se do despacho de aperfeiçoamento previsto no anterior artigo 477º do Código de Processo Civil em dois aspectos centrais: é proferido depois de finda a fase dos articulados, e não durante esta fase, depois da apresentação da petição a despacho; pode ser dirigido tanto ao autor como ao réu, na medida em que não se cinge ao aperfeiçoamento da petição inicial. Já relativamente ao despacho destinado ao suprimento de excepções dilatórias, a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 508º do Código de Processo Civil, pode afirmar-se, seguindo Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 62), que só parcialmente é inovatório: '[de] facto, algumas das situações potencialmente abarcadas por aquela previsão normativa já encontravam apoio noutras disposições do CPC, na redacção emergente da reforma de 1961. Referimo-nos, por exemplo, às excepções dilatórias de incapacidade e do patrocínio judiciário, cujo regime já consentia a intervenção correctora do juiz no sentido de procurar, 'ex officio', a superação da falta de tais pressupostos processuais. A inovação emerge, no entanto, do facto de se ter expressamente localizado após os articulados essa intervenção judicial e de se ter alargado o leque de circunstâncias capazes de a fundamentar à generalidade das excepções dilatórias típicas e atípicas que sejam supríveis. A razão de ser da anterior possibilidade de sanação dos pressupostos processuais da incapacidade e da falta de patrocínio judiciário e da sua ampliação a outras excepções é a mesma. Radica no facto de as excepções dilatórias determinarem, regra geral, a absolvição da instância, decisão meramente formal que deixa intocado o conflito de interesses e que apenas conduz ao seu arrastamento para outro momento [...]'.
8. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, lê-se a propósito da figura contemplada na alínea b) do n.º 1 do artigo 508º do Código de Processo Civil e nos números subsequentes deste preceito:
'Manteve-se a possibilidade de despacho judicial no sentido do aperfeiçoamento, mas, para lá de se generalizar, inequivocamente, por razões de igualdade das partes, a todos os articulados, diferiu-se, quanto ao momento do rito processual, a sua prolação, colocando-a, como princípio, após o termo da respectiva produção.
[...]. Sector em que, decididamente, as inovações são mais profundas, representando uma verdadeira alteração estrutural, é o da fase de saneamento e condensação, com o acentuar da cooperação, do contraditório e da auto-responsabilidade, tudo informado por um redimensionar dos poderes de direcção do juiz, a quem incumbirá um papel eminentemente activo e dinamizador. Com efeito, e uma vez que o primeiro momento de efectivo controlo jurisdicional ocorrerá, em princípio, findos os articulados, ganha relevo a figura do pré-saneador, com a já falada possibilidade de convite ao aperfeiçoamento dos articulados e, bem assim, com a possibilidade alargada de se determinar no sentido do suprimento de pressupostos processuais em falta ou deficientemente preenchidos.'
O Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, limitou-se a introduzir no artigo
508º do Código de Processo Civil alterações de carácter formal, não constando aliás do respectivo preâmbulo qualquer referência expressa ao despacho pré-saneador ou ao despacho de aperfeiçoamento. Da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, acima transcrito, retira-se que o novo regime do despacho de aperfeiçoamento terá sido ditado por razões que se prendem com a igualdade e auto-responsabilidade das partes, com a cooperação e com o contraditório. Especificamente quanto aos princípios da igualdade das partes e da cooperação, salienta Paula Costa e Silva (ob. cit., p. 223-224): '[...] atendendo ao momento em que este despacho de aperfeiçoamento [o previsto no anterior artigo 477º do Código de Processo Civil] era proferido, ele apenas podia ter o articulado do autor como objecto. [...] A alteração do momento adequado para o tribunal convidar as partes a suprirem irregularidades ou deficiências dos respectivos articulados tem plena justificação perante um sistema em que se consagra o princípio da igualdade substancial das partes (art. 3-A). A formulação do convite ao aperfeiçoamento, essencialmente perante articulados deficientes, radica directamente no princípio da cooperação (art. 266/1 e 2)'.
9. Como assinala Antunes Varela ('A reforma do processo civil português
(Principais inovações na estrutura do processo declaratório ordinário)', Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3878, p. 131-132), o despacho de aperfeiçoamento previsto no antigo artigo 477º do Código de Processo Civil, na parte em que admitia que o juiz pudesse convidar o autor a completar ou a corrigir irregularidades ou deficiências da petição, capazes de comprometer o
êxito da acção, havia sido alvo de críticas na doutrina e na jurisprudência, pois que dele parecia decorrer a quebra do princípio da imparcialidade do juiz perante as pretensões das partes. Nas palavras do autor,
'[a]dmitir que o juiz pudesse convidar o autor a completar ou a corrigir irregularidades ou deficiências da petição, capazes de comprometerem o êxito da acção, especialmente sabendo que de igual faculdade não gozava o julgador perante as irregularidades ou deficiências de que, em seu entender, padecesse a contestação, pareceria, à primeira vista pelo menos, envolver a abertura unilateral de uma porta destinada a salvar o autor de um fracasso inevitável da sua pretensão.'
O novo regime do despacho de aperfeiçoamento, como decorre da leitura do preâmbulo do diploma acima transcrito, pretendeu responder a esta crítica, pelo menos na parte em que apontava o tratamento desigual do autor e do réu (na medida em que o convite ao aperfeiçoamento apenas àquele podia ser dirigido) como indício de quebra de imparcialidade. Efectivamente, o juiz pode agora convidar tanto o autor como o réu ('qualquer das partes', diz expressamente o n.º 3 do artigo 508º) a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. Por outro lado, a parte (autor ou réu) que não recebeu o convite e se depara com o convite à parte contrária não fica desprotegida: o n.º 4 do artigo
508º reconhece-lhe expressamente o direito de, nos termos gerais, contraditar os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção e provar que os mesmos não se verificaram (ou que são duvidosos, caso baste a contraprova). Concorde-se ou não com a bondade do regime agora instituído, parece óbvio que nele não se vislumbra qualquer tratamento desigual do autor e do réu, pela circunstância de um ser autor e de o outro ser réu, ou quebra do princípio da imparcialidade por causa do tratamento desigual daqueles. Não se compreende assim a perspectiva da recorrente, quando afirma (ponto B. das conclusões das suas alegações) que 'o aperfeiçoamento só vale para a acção ou para a reconvenção, para o autor, em sentido lato, mas já não para o réu – cuja contestação a Lei não prevê que seja aperfeiçoada'. Se o n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil algumas dúvidas pode suscitar à luz do princípio da imparcialidade dos tribunais – e ver-se-á seguidamente se são legítimas ou não –, elas não se alicerçam evidentemente em qualquer tratamento desigual das partes, pela circunstância de uma delas ser o autor e a outra ser o réu, já que o convite ao aperfeiçoamento, como se disse, tanto pode ser dirigido ao autor como ao réu, e os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova. Há, pois, que analisar o problema da quebra da igualdade das partes noutra perspectiva.
10. Essa outra perspectiva relaciona-se com os pontos A. e D. das conclusões das alegações da recorrente, e traduz-se no seguinte: a solução contida no n.º 3 do artigo 508º, ao permitir que, sendo o convite acatado pela parte a quem foi dirigido (autor ou réu), o pedido inicialmente formulado pela parte contrária seja desatendido, viola o princípio da igualdade das partes? A questão compreende-se melhor tendo presente o caso dos autos. A ré, ora recorrente, havia pedido a absolvição da instância na contestação, por nulidade de todo o processo (artigos 494º, alínea b), e 193º, n.º 1, do Código de Processo Civil), pois que, em seu entender, a petição inicial era inepta, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir (artigo 193º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código). O juiz, ao usar do mecanismo previsto no n.º 3 do artigo 508º, convidando a autora, ora recorrida, a aperfeiçoar a petição inicial, teria inviabilizado, segundo a recorrente, o seu pedido, que era, como ficou referido, o de absolvição da instância. Como é óbvio, não cabe a este Tribunal apreciar se a deficiência da petição inicial traduzia ou não ineptidão e se era correspondentemente fundado o pedido da ré, nem determinar se o mecanismo constante do n.º 3 do artigo 508º pode ser utilizado para sanar a ineptidão da petição inicial, nem naturalmente pronunciar-se sobre a possibilidade de, fora do caso previsto no n.º 3 do artigo
193º, se sanar a ineptidão da petição inicial. Cabe apenas a este tribunal apreciar se resulta alguma quebra do princípio da igualdade das partes, quando se permite que uma delas, no fundo, não beneficie com os erros técnicos da outra. É isto que essencialmente a recorrente questiona: no seu entendimento, a norma constante do n.º 3 do artigo 508º, ao permitir o aperfeiçoamento da petição inicial, ter-lhe-ia vedado o benefício da absolvição da instância decorrente da deficiência daquele articulado. Ora não pode concordar-se com este entendimento do princípio da igualdade das partes. Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil. Conceito e princípios gerais à luz do Código revisto, Coimbra, 1996, p. 105-106), o princípio da igualdade de armas (que constitui, a par do princípio do contraditório, manifestação do princípio da igualdade das partes) 'impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a diversidade das posições das partes impossibilita, exige, porém, a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticos, sempre que a sua posição perante o processo é equiparável, e um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigualdade objectiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte meios processuais não atribuíveis à outra. Próximo do princípio constitucional da igualdade e não discriminação (art. 13 CR), o princípio da igualdade de armas impõe um 'estatuto de igualdade substancial das partes' (art.
3-A) [...]'. Este equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, imposto pelo princípio da igualdade de armas, não significa assim, de modo nenhum, e como quer a recorrente, o estabelecimento de imediatas cominações para a parte que não haja preenchido pressupostos processuais que lhe cabia preencher, ou que tenha apresentado articulados irregulares ou deficientes, como forma de compensação da parte contrária pela actividade processual inútil que eventualmente realizou. Dito de outro modo, o equilíbrio entre as partes não pressupõe o direito de cada uma delas à retaliação da parte contrária, através do insucesso do correspondente pedido, sempre que essa parte tenha cometido erros processuais. A isto acresce, como já antes se disse, que, sendo o convite ao aperfeiçoamento acatado, as alterações à matéria de facto alegada ficam sujeitas às regras gerais sobre contraditoriedade e prova (artigo 508º, n.º 4, do Código de Processo Civil). Portanto, mesmo que na solução constante do n.º 3 do artigo
508º se vislumbre qualquer fonte de desequilíbrio entre as partes, o n.º 4 logo se encarrega de repor o equilíbrio: é que, se se vier a verificar a consequência que a recorrente teme – a de ser desatendido o seu pedido inicial de absolvição da instância –, sempre lhe terá sido dada a oportunidade de formular outro pedido, perante a nova matéria alegada. Finalmente, refira-se que o próprio princípio da igualdade das partes tem hoje de ser coadunado com os princípios do Estado social de direito, consagrado no artigo 2º da Constituição. Como assinala Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo processo civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 61-62), '[o] processo jurisdicional não pode deixar de reflectir essas preocupações sociais e de ser impregnado por uma concepção social: a solução dos conflitos não é uma matéria do mero interesse dos litigantes e estes não devem ser tratados como titulares abstractos da situação litigiosa, mas antes como indivíduos concretos, com necessidades a que o direito e o processo devem dar resposta. [...] O Estado social de direito representa um compromisso entre a esfera do Estado e a da sociedade, dos grupos e dos indivíduos. [...] A preocupação de coadunar a estrutura e os fins do processo civil com os princípios do Estado social de direito e de garantir uma legitimação externa às decisões do tribunal esteve igualmente presente na reforma do processo civil. Foram três as linhas essenciais que a reforma escolheu para prosseguir essa finalidade: a sujeição do processo a um princípio de cooperação entre as partes e o tribunal, a acentuação da inquisitoriedade do tribunal e a atenuação da preclusão na alegação de factos e, finalmente, a prevalência da decisão relativa ao mérito sobre a decisão de forma'. Especificamente quanto ao dever de cooperação do tribunal com as partes, decorrente da referida preocupação de coadunar o processo com os princípios do Estado social de direito, é dele manifestação, como assinala o mesmo autor (p.
65), o 'dever de prevenção, ou seja, o dever de o tribunal prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos'. Este dever de prevenção está consagrado, nomeadamente, no n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil. Sobre esse dever de prevenção, ou sobre essa manifestação do princípio da cooperação, diz Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 79-80): 'Não é legítimo que, perante evidentes falhas nos articulados que incidam sobre o modo como as partes cumpriram o ónus de alegação da matéria de facto integradora da pretensão ou da defesa por impugnação ou por excepção, o juiz se remeta a uma posição de inércia para, num momento posterior, retirar de tais falhas a argumentação necessária para, acto seguido, proferir uma decisão em prejuízo da parte responsável pelas mesmas. Se outras razões legais não existissem, bastaria a alusão ao dever de cooperação recíproco e a invocação do verdadeiro papel dos tribunais como órgãos de administração da justiça e de resolução de conflitos para fundar a ilegitimidade de tal conduta omissiva.'. Conclui-se, assim, que a solução consagrada neste preceito, ao permitir que, sendo o convite acatado pela parte a quem foi dirigido (autor ou réu), seja desatendido o pedido inicialmente formulado pela parte contrária não viola o princípio da igualdade das partes. Por um lado, porque essa igualdade não assenta numa ideia de retaliação, mediante o insucesso da acção, da parte que usa os meios processuais de forma inadequada, em favor da parte que os usou adequadamente; por outro lado, porque a parte contrária àquela que recebeu o convite ao aperfeiçoamento pode formular um novo pedido, face aos novos factos alegados, nos termos do n.º 4 do artigo 508º; por último, porque o equilíbrio entre as partes no processo deve ser compreendido à luz dos próprios princípios do Estado social de direito, que explicam o dever de o tribunal prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos, consagrado no preceito ora questionado.
11. As considerações acabadas de expor sobre o dever de cooperação do tribunal com as partes, alicerçado nos princípios do Estado social de direito, permitem também rebater o argumento da recorrente contido no ponto E. das conclusões das suas alegações: o de que o fair play que timbra a prática forense e a cultura jurídica civilizada seria posto em causa pela solução contida no artigo 508º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Dir-se-á apenas que a lealdade entre as partes e entre estas e o tribunal não pode ser hoje desligada, por força daqueles princípios, dos próprios deveres de cooperação que sobre todos recaem.
12. Interessa agora averiguar se, ao dirigir o convite ao aperfeiçoamento a uma das partes, o juiz está de algum modo a antecipar a solução do litígio, comprometendo-se com ela e criando um clima de suspeição quanto à sua imparcialidade no momento do julgamento (cfr. ponto C. das conclusões das alegações da recorrente). Este perigo de quebra da parcialidade do julgador é apontado, nomeadamente, por Antunes Varela. Nas palavras do autor (op. cit., Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3880, p. 198): 'E se já era de recear para alguns a suspeição de parcialidade que o juiz poderia deixar no espírito do réu com o despacho-liminar de convite ao autor para corrigir a petição deficiente, nos apertados termos em que o poderia fazer, de acordo com o primitivo texto do n.º
1 (parte final) do artigo 477º, facilmente se imaginará quanto essa mancha de suspeição pode aumentar, ora num sentido, ora no outro, com esta faculdade quase discricionária que o novo texto do artigo 508º coloca nas mãos do julgador – mal o processo lhe chega às mãos. [...] E não é, positivamente, alargando a órbita dessa intromissão na área do mérito da causa a todos os articulados e a todas as espécies de irregularidades substantivas deles, no primeiro banho de processo dado ao juiz, que aquele perigo de aparente parcialidade ou de juízo precipitado do julgador se desvanece ou se some por completo.'. Importa, assim, e depois de arredadas as dúvidas sobre a compatibilidade da norma constante do n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil com o princípio da igualdade, analisar a sua conformidade com o princípio da imparcialidade dos tribunais. Este princípio pode extrair-se, quer do direito a um processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20º da Constituição, quer da referência à imparcialidade dos juízes do Tribunal Constitucional, constante do n.º 5 do artigo 222º. Em última análise, radica na própria ideia de Estado de direito, acolhida no artigo 2º da Constituição. A numerosa jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a noção de tribunal imparcial tem insistido na sua dimensão subjectiva e objectiva. Assim, na sentença de 22 de Abril de 1994 (caso Saraiva de Carvalho contra Portugal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 4, 1994, p. 405 ss, trad. e anot. por A. Henriques Gaspar), diz-se que: 'Para os fins do artigo 6º,
§ 1º [da Convenção Europeia dos Direitos do Homem], o Tribunal recorda que a imparcialidade deve ser apreciada segundo uma perspectiva subjectiva, tentando determinar a convicção pessoal de um certo juiz numa dada ocasião, e também segundo uma perspectiva objectiva, que assegure que o juiz oferecia garantias suficientes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima'. A este propósito diz também Lebre de Freitas (ob. cit., p. 64-65 e nota 16) que,
'[quanto] à imparcialidade dos juízes, a lei processual enuncia os casos em que, por poder perigar, o juiz que normalmente seria concretamente investido da função jurisdicional fica impedido de a exercer (arts. 122 e 124) ou pode ser afastado por suspeição (arts. 126 e 131); e, no domínio da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem sido entendido que também a parcialidade subjectiva, expressa em actos anteriores à decisão, é inadmissível.'. Seriam exemplos de parcialidade subjectiva, e como tal proibidos por aquela Convenção, segundo a Comissão Europeia, os seguintes: a qualificação, pelo presidente do tribunal em audiência, da defesa dum réu como 'inverosímil',
'escandalosa', 'mentirosa', 'ignóbil' e 'repugnante'; a denúncia, pelo juiz, da decisão que vai tomar, antes do momento adequado para a proferir. Sob o ponto de vista objectivo, a solução contida no n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil em nada afecta a imparcialidade do juiz. Por um lado, porque tal solução não afasta a aplicação das regras gerais sobre impedimentos e suspeições dos juízes (artigos 122º e seguintes). Por outro lado, porque tal solução, na medida em que se limita a traduzir o exercício do dever de cooperação do tribunal com as partes perante falhas na articulação da matéria de facto, não significando nem obrigando legalmente a qualquer decisão quanto à existência desses factos (a proferir na altura própria, depois da instrução) ou quanto ao direito aplicável, não cria qualquer aparência de proferimento de uma decisão final num ou noutro sentido.
Objectivamente, pois, a lei não dá à parte que acata o convite qualquer garantia de uma decisão favorável, quer quanto à matéria de facto
(recorde-se que, no caso dos autos, os factos aditados iriam figurar na base instrutória), quer quanto à matéria de direito (basta atentar na circunstância de a própria selecção da matéria de facto dever ser feita segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, o que desde logo impediria que, antes dela, o juiz se comprometesse com qualquer uma delas). Sob o ponto de vista subjectivo, também não se vê em que medida a solução em apreço pode apresentar afinidades com os casos de parcialidade subjectiva acima assinalados, na medida em que dela não decorre a possibilidade de o juiz exprimir antecipadamente a sua convicção pessoal sobre a razoabilidade das pretensões das partes. Não são assim fundadas as dúvidas da recorrente quanto à compatibilidade da norma constante do n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil com o princípio da imparcialidade.
III
13. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil, face aos princípios da igualdade e da imparcialidade dos tribunais; b. Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida