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Proc. nº 672/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - S..., com os sinais dos autos, propôs acção declarativa de condenação contra o Estado Português, pedindo, de acordo com a formulação modificada do pedido operada na réplica, o seguinte:
'A) A título principal deve o Tribunal declarar inconstitucionais, na medida em que violam os preceitos dos artºs 1º a 3º, 8º, 13º, 17º, 18º, 62º,
82º, 83º, 168º, 205º, 207º e 281º da CRP as normas dos diplomas legais referidas na petição inicial, v.g. do Dec.-Lei nº 701-E/75, do Dec.-Lei nº 328/76, do Dec.-Lei nº 206/78, da Portaria nº 497/85, da Lei nº 80/77, do Dec.-Lei nº
51/86, do Dec.-Lei nº 332/91 e do Dec.-Lei nº 63/81, sendo por isso ilícita a actividade legislativa com que o Estado nacionalizou a Socarmar e regulou a indemnização do autor, enquanto ex-titular das acções da referida empresa, tudo nos termos que constam da petição inicial;
B) Deve ainda declarar, em conformidade com o articulado nos nºs 40 a 45 da petição inicial, a inconstitucionalidade da Lei nº 148/92 e as normas que autorizam o Estado a reprivatizar a Socarmar, sem que esteja definitivamente regularizada a questão da justa indemnização do autor e satisfeito o seu pagamento integral por tais normas violarem o direito à protecção da confiança e o direito de propriedade, impedindo o autor de exercer o direito de preferência na reprivatização, direito esse que é inerente ao direito de propriedade.
C) Com base na responsabilidade do réu pelos referidos actos legislativos inconstitucionais e violadores de direitos fundamentais do autor, deve o Tribunal condenar o Estado a pagar ao autor a indemnização por danos materiais e morais que se vierem a liquidar em execução de sentença, nos termos que constam da alínea A) da conclusão da petição inicial'.
A acção foi julgada improcedente por sentença de que o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Neste recurso o recorrente obteve parcial provimento, tendo recorrido do respectivo acórdão, na parte desfavorável, para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações, formulou as seguintes conclusões: a. O Estado-legislador, ao nacionalizar a Socarmar, pelo Dec. Lei nº.
701-E/75, distinguiu as empresas de transportes marítimos e fluviais das empresas do ramo das cargas e descargas, qualificando expressamente as empresas com a actividade da Socarmar como aquelas quem actuavam ao nível das infraestruturas portuárias, enquadrando umas e outras no sector económico do Comércio Externo. b. A Socarmar foi a primeira empresa, ao nível das infraestruturas portuárias, a ser nacionalizada, como resulta da própria justificação apresentada pelo Legislador para a nacionalizar. c. O Estado, na mesma data, em outros diplomas, nacionalizou empresas de transportes marítimos e fluviais usando a técnica da nacionalização de grupos de empresas em um só diploma, quando o fundamento da nacionalização era o mesmo; d. Sempre o Estado considerou necessária a fundamentação da nacionalização, mesmo quando o fez através de uma lei-medida, como sucedeu no caso da Socarmar; e. E, neste caso, sempre apresentou a medida como fazendo parte do plano de integração no sector público de todas as empresas com o mesmo tipo de actividade; f. Contudo, como resulta da prova (resposta ao quesito 21º), o Estado acabou por só nacionalizar a Socarmar, no ramo de actividade desta empresa, embora houvesse outras, quer registadas no porto de Lisboa, quer em outros portos do país (prova dos autos). g. O acórdão recorrido ignorou a Especificação e o Questionário e, ofendendo o disposto no nº. 3 do artigo 65° do C.P.C., não tomou em conta os factos provados nem os .meios de prova, dispensando-se de os analisar . h. Pior do que isso, usou as expressões do Questionário nomeadamente a palavra 'ramo', constante do quesito 21°, para, arbitrariamente, ampliar e desvirtuar o sentido útil que levou a integrá-la no quesito, com o objectivo de enquadrar a Socarmar no sector do Comércio Marítimo, confundindo-a com as empresas de transportes; i. Foi deste modo artificial, e contrário às regras do processo e à prova produzida no caso concreto, que o acórdão confundiu o que o próprio Estado-Legislador distinguiu, quando nacionalizou, por um lado, as empresas transportadoras, e, por outro lado, as empresas que actuavam ao nível das
'infraestruturas portuárias'. j. O acórdão recorrido contrariou a própria vontade do Estado, expressa na fundamentação dos preceitos do Dec. Lei n° 701-E/75. k. Contra o que resulta do acórdão, o Estado, quando não nacionalizou qualquer outra empresa do ramo da Socarmar (resposta ao quesito 21º), não respeitou o fundamento positivo da nacionalização operada pelo Dec. Lei n°
701-E/75; l. Não havendo razão para não nacionalizar as empresas similares, o Estado discriminou a Socarmar; m. Não era ao A., neste caso, que cabia o ónus de prova dos motivos da não nacionalização pelo Réu das empresas do ramo da Socarmar, i.é, do não cumprimento do plano apresentado no Dec. Lei n° 701-E/75 para nacionalizar a Socarmar; n. O acórdão do T.C. nº. 468/96, publicado no B.M.J. nº. 445, a pags. 152, no seu sumário, é claro quando aponta ao Estado a obrigação de fundamentar positivamente as razões da discriminação, quando elas não são racionais aparentemente; o. O acórdão recorrido perdeu o sentido lógico, e entrou mesmo em contradição, quando pretendeu, ao mesmo tempo, sustentar a não discriminação pelo alargamento do conceito de ramo, integrando a Socarmar no ramo dos transportes, e defender que era legítima a discriminação por não haver provas dos motivos que levaram o Estado a só nacionalizar a Socarmar, no seu ramo de actividade; p. A discriminação é ilícita, e a ilicitude resulta de uma inconstitucionalidade anterior à Constituição de 1976, que esta não sanou ou consolidou, antes determinou a caducidade das normas discriminatórias e de todo o direito ordinário anterior incompatível com os seus princípios (art. 290°, nº.
2 da C.R.P .); q. O Estado português nunca deixou de ser uma Ordem Jurídica subordinada às Leis Constitucionais, consagradoras dos direitos fundamentais dos cidadãos, antes e depois de 1976; r. O Estado Legislador, na medida em que, neste caso concreto, discriminou a Socarmar, lesou apenas o Autor, como resulta da resposta aos quesitos 22° e segs.; s. O Autor foi realmente, como se provou nos autos, o único cidadão atingido pela nacionalização de uma empresa do ramo da actividade de cargas e descargas marítimas e fluviais, actividade ao nível das infraestruturas portuárias; t. A discriminação sofrida pelo Autor não foi determinada apenas pelo facto de o Estado não ter afectado mais ninguém com a nacionalização de empresas no ramo de actividade ao nível das infraestruturas portuárias, mas também por o Estado ter beneficiado, sem razão legal ou constitucional, outros cidadãos, através da privatização de empresas do ramo (caso da Nortemar) cujo capital era inteiramente público, antes da revisão Constitucional de 1989, i.é, antes da revogação da norma constitucional que impedia a privatização de empresas de domínio público; u. Para ser justa e lícita, a nacionalização, como acto legislativo, devia manter o seu carácter geral e abstracto, atendendo apenas ao interesse público, sem lesar de modo particular uma só pessoa, individual, concreta, e respeitando o plano geral de nacionalização que lhe serviu de justificação; v. Devendo enquadrar-se o acto num projecto de nacionalização generalizada, que constituía o fundamento da lei (Dec. Lei n° 701-E/75), perdeu a sua justificação pelo comportamento discriminatório do Estado, denunciado e comprovado nos autos; x) A lesão não foi determinada apenas pelo acto legislativo de nacionalização, mas por uma sucessão de actos legislativos, que constituem o processo legislativo da nacionalização/indemnização, desenvolvido pelo Estado dentro da sua função, tal como está previsto no artigo 83° da C.R.P.; z. Com efeito, como resulta da alegação, entre 1975 (data do dec. Lei n°
701-E/75) e 1991 (data do diploma que fixou os critérios legais da indemnização definitiva - Dec. Lei n° 332/91), o Estado-Legislador violou o compromisso, assumido na lei de nacionalização, de resolver a questão da indemnização em prazo curto, publicou diplomas legais indemnizatórios que deixou caducar por falta de oportuna regulamentação (Dec. Lei n° 528/76), e publicou outros viciados de inconstitucionalidade orgânica (Dec. Lei n° 206/78), criou Comissões Arbitrais para fixar indemnizações, através de diploma legal publicado em 9 anos de atraso, em relação ao prazo de 60 dias estabelecido na Lei n° 80/77 (Lei n°
51/86), e desfez o trabalho da Comissão, inutilizando-o com o Dec. Lei n°
332/91, depois de o fazer pagar ao Autor; aa. A responsabilidade do Estado por acto ilícito não se reporta, neste caso concreto, apenas ao acto legislativo instantâneo, mas ao processo legislativo que culminou com a fixação das condições legais para a atribuição da indemnização definitiva; bb. Saliente-se que a culpa do Estado, no atraso não razoável da justiça e na frustação dos meios legais de acesso do Autor ao Tribunal, teve a clara intenção de atrasar o pagamento da indemnização ao lesado e resultou da indefinição dos próprios critérios legais de indemnização constantemente alterados ao longo de
15 anos; cc. O Estado incorreu, também aqui, em responsabilidade por omissão legislativa ilícita, criando mesmo um vazio jurídico entre 1977 (Lei n° 80/77) e
1986 (Lei n° 51/86) e entre 1986 e 1991 (Dec. Lei 332/91), para não ter que pagar o que devia; dd. O Autor tinha, e tem, o direito à justiça em prazo razoável, como já foi proclamado pelo Conselho da Europa, em decisão neste caso concreto, que reconheceu ter o Estado violado o artigo 6° (n°1) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doc. junto a fls. 1214); ee. O tribunal a quo julgou mal quando considerou que o Dec. Lei n° 701-E/75 era a única causa adequada dos danos, invocável pelo A., posto que o recorrente não sofreu apenas o dano instantâneo da privação do bem nacionalizado, mas o dano continuado da privação da indemnização, sucedâneo da propriedade; ff. O tribunal recorrido pretendeu isolar um acto legislativo do Réu para mais facilmente o absolver, dissolvendo no tempo o complexo processo causal ou a sucessão de causas que determinaram a lesão do Autor em toda a sua magnitude; gg. E se o acto da nacionalização constitui a causa originária, a privação da compensação durante 17 anos agravou a lesão e determinou a continuidade do dano; hh. Ignorando isto, o Tribunal da Relação ignorou os mais elementares princípios da responsabilidade civil; ii. Por outro lado, ao sustentar, ao mesmo tempo, a não discriminação e a licitude do acto de nacionalização da Socarmar e o direito do Estado de fazer discriminação em matéria de nacionalizações, o acórdão recorrido confessou a incapacidade para julgar o Estado por acto legislativo, confundindo os interesses patrimoniais do Réu com o Interesse Público, o Estado-Réu com a Nação e a causa subjudice que lhe competia decidir com justiça com o processo geral de nacionalizações que não está aqui em questão; jj. Ao considerar que não há nacionalizações discriminatórias, por serem actos arbitrários do Estado, a Relação extraiu do art. 83° da C.R.P. norma inconstitucional, por ser ofensiva dos direitos do cidadão à protecção de confiança, à igualdade, à responsabilização do Estado por actos lesivos e do próprio direito de propriedade, direitos fundamentais ou equiparados, consagrados nos arts. 1º a 3°, 13° ,22° e 62° da C.R.P.; kk. O Estado-Réu deve assumir as consequências do mau exercício da função legislativa descrita, indemnizando o Autor pelos danos morais e materiais que resultaram provados com as respostas aos quesitos 1º, 3º, 12º a 14º, 18º e 19º, e nas alíneas A), D), G) e primitiva alínea P) da Especificação, deva ser feito em execução de sentença;
Por outro lado, ll. A actualização monetária não ofende qualquer critério legal indemnizatório especial, e é uma consequência do atraso do pagamento imputável ao devedor, resultando da aplicação da norma do artigo 566° do C. Civil; mm. O dever de indemnizar traduz-se em dívida de valor, que deve ser actualizado em função da depreciação da moeda no momento do pagamento, e esta actualização não se confunde com o juro (BMJ 443, p.99 e BMJ 449, p.344); nn. O Estado-Legislador não previu a actualização monetária, porque não previu a liquidação da indemnização no caso dos autos com 17 anos de atraso; oo. E nada permite admitir que a definição de critérios legais especiais de indemnização excluam o critério legal geral, da actualização monetária; pp. Falseia a realidade o acórdão recorrido quando invoca os nefastos efeitos macro-económicos de pagamento da indemnização actualizada, pois ignora ou finge ignorar as condições em que o Estado vendeu a Socarmar no mesmo ano em que indemnizou o Autor (1992) e o que resulta provado nos autos nessa matéria
(resposta ao quesito 16º); qq. Falseia a verdade, o acórdão recorrido quando ignora a prova feita nos autos a respeito do valor efectivo da indemnização paga pelo R. ao A. (respostas aos quesitos 17° e 18), documento de fls. 461 e prova do 2° Arbitramento - resposta ao quesito 15° do A.); rr. Face ao que se alegou no ponto 1.5.1 e à prova feita o R. na pior solução para o A., ainda lhe deve Esc.: 65.560.000$00, que resultam da diferença entre o valor nominal e o valor real dos títulos (Esc.: 40.975.000$00), acrescidos da quantia de Esc.: 24.850.000$00, correspondentes ao juro de 2,5% sobre aquela verba, contados desde 1975 até ao presente; ss. A condenação do R. a pagar ao A, na pior das hipóteses, a referida verba,
é a única solução coerente com a condenação na indemnização do valor das 200 acções não pagas, acrescida do juro legal, e, ao não conhecer tal matéria, o acórdão recorrido também cometeu nulidade de omissão de pronúncia; tt. O acórdão recorrido confunde a realidade quando afirma que a actualização da indemnização traduzir-se-ia em fazer corresponder o valor assim apurado ao valor real ou de mercado do bem nacionalizado, quando isso é falso; uu. A actualização monetária pode incidir sobre a indemnização calculada segundo critérios legais formais ou artificiais e nada tem com o valor real do bem nacionalizado; vv) O tribunal a quo concluiu mal que a indemnização paga ao A. pelo R. não era irrisória e por isso não violava a lei, nem ofendia normas constitucionais; xx) Face ao que foi alegado e à prova que resulta dos autos, tendo em conta o real valor da nacionalização paga ao A. , o facto de o R. ter alienado a privados a mesma parcela de capital da Socarmar , por valor 40 vezes superior ao da indemnização paga ao A. , no mesmo ano em que liquidou esta indemnização, só pode permitir a conclusão de que a indemnização paga ao A. não é aceitável, nem razoável, nem proporcional, nem oportuna, mas irrisória;
yy) O tribunal da Relação ofendeu no seu acórdão, além dos artigos 562° e
566° do C. Civil e 659° (nº. 3) e 668º, nº.1, al. d) do C. P .C., e.os artigos
1° a 3°, 13° 20°, 22° e 62° da C.R.P. , fazendo do. artigo 83° da Constituição interpretação ofensiva dos aqui referidos preceitos constitucionais; zz) A interpretação que o tribunal recorrido fez das normas do Dec. Lei n°
701-E/75, Dec. Lei n° 528/76, Lei n° 80/77, Dec. Lei n° 206/78, Dec. Lei n°
51/86 e Dec. Lei n° 332/91, ofende os artigos 1° a 3°, 13°, 20° 22° e 62° da C.R.P., pois viola o direito à protecção da confiança no Estado de Direito, o direito à igualdade, o direito de acesso à justiça, o dever de indemnização e a responsabilidade do Estado por factos ilícitos ou lícitos lesivos dos cidadãos e o direito de propriedade; aaa) O acórdão recorrido cometeu a nulidade do artigo 668°, nº. 1, d) do C.P.C., pois omitiu o conhecimento da taxa de 2.5% ao condenar o Réu a pagar ao A. em singelo a indemnização de Esc.: 1.763.900$00 por 200 acções, quando, nessa hipótese a indemnização a título de juros ascendia a Esc.: 1.058.340$00 (2,5 x
24 anos – 1975/1999), ou seja a 60% da indemnização referida, o que levaria a condenar o Réu a pagar Esc.: 2.822.240$00; bbb) O tribunal a quo fez incorrecta e inútil descrição de factos históricos sobre as nacionalizações no Séc. XX para justificar no caso concreto a conduta do Réu, mas ignorou o que de essencial está documentado nos autos sobre o caso mais recente de nacionalização que ocorreu na Europa Ocidental (no Reino Unido) que foi objecto de decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em processo de queixa por ofensa do Direito de propriedade. ccc) Comparando o caso Lithgow com o caso destes autos, como resulta do ponto 1.7 desta alegação, o comportamento do Réu face ao Autor, comparativamente ao caso inglês, leva a acreditar como certo que o Tribunal Europeu faria ao recorrente a justiça que até hoje os tribunais portugueses lhe recusaram sem razões válidas;
............................................................................................................................'
O STJ negou a revista por acórdão de que o autor interpôs recurso para este Tribunal.
Transcreve-se o respectivo requerimento de interposição:
'S... notificado do acórdão que negou a Revista no processo em epígrafe1, vem dele interpôr recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, por considerar que o acórdão fez aplicação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente durante o processo. O recurso tem os seguintes fundamentos:
1 - Invocando a sua qualidade de único cidadão afectado por diploma legal nacionaliza dor de empresa pertencente ao ramo das cargas e descargas marítimas e, como tal, considerada integrada nas infraestruturas portuárias o autor desta acção – ora recorrente – suscitou ao longo de todo o processo a inconstitucionalidade das normas do diploma legal que nacionalizou a Socarmar - Sociedade de Cargas e Descargas Marítimas S.A.R.L., isto é do Decreto Lei n°
701-E/75, de 17 de Dezembro, bem como das normas que integraram diplomas legais em que, desde 1976 até 1991, foram definidos os critérios, os meios e os prazos de indemnização da lesão que a referida nacionalização lhe causou, especificamente, as normas do Decreto Lei nº. 528/76, de 7 de Julho, da Lei
80/77, de 26 de Outubro, do Decreto Lei 206/78, de 25 de Julho, do Decreto-Lei n° 51/86 e do Decreto-Lei n° 332/91, de 6 de Setembro.
2 - Nos articulados, o recorrente apontou o vício de inconstitucionalidade do D. Lei n° 701-E/75, tanto na medida em que discriminava o cidadão autor, nacionalizando apenas a Socarmar e mantendo no domínio privado as demais empresas do sector, como na medida em que o seu artigo 2° diferia o pagamento da indemnização para momento posterior à nacionalização (artigos 7° a 14° e 18° a
20° da P. I.).
3 - A discriminação ou violação do direito à igualdade, operada pelo Decreto-Lei nº. 701-E/75, como lesiva de direitos fundamentais do autor - ora recorrente -, incluindo o direito à protecção da confiança no Estado de Direito e do direito de propriedade, foi denunciada nas sucessivas alegações apresentadas no processo, tanto após a decisão da matéria de facto na 1ª instância, como nos recursos de apelação e de revista.
4 - O ora recorrente sustentou sempre no processo que a discriminação que lhe foi feita pelo diploma legal referido viciava-o de inconstitucionalidade por ofensa das normas dos artigos 1º, 3°, 13° e 62° da C.R.P. (que consagram o direito à protecção da Confiança no Estado de Direito, o direito à Igualdade e o direito de Propriedade).
5 - E pelo facto de o diploma nacionalizador ser anterior à Constituição de
1976, nem por isso deixava de relevar o vício apontado, pois a lei viciada devia considerar-se caduca, face ao artigo 290° (2) da C.R.P.),e os tribunais estavam vinculados à norma do artigo 207° da Constituição, que os impedia de aplicar tal lei.
6 - Na tese do acórdão recorrido, nunca o vício da discriminação poderia afectar o diploma que nacionalizou a Socarmar, mas seria, quando muito, o resultado de omissão posterior, por não terem sido nacionalizadas depois mais empresas do ramo.
7 - Além disso, segundo parece resultar do acórdão recorrido, também não seria possível anular a nacionalização da Socarmar, desaplicando o diploma legal em questão, dada a irreversibilidade das nacionalizações.
8 - Salvo o devido respeito, o primeiro argumento, parte do errado princípio de que nada ganhando o recorrente com o mal dos outros, só seria admissível falar-se em discriminação, se ele pudesse beneficiar com a posterior nacionalização de empresas com o objecto de comércio da Socarmar.
9 - Como é evidente, o Estado de Direito reclama o respeito pelo princípio da igualdade na distribuição dos encargos públicos e pela protecção da confiança dos cidadãos nele próprio.
10 - Nesta medida, o princípio da igualdade e o respeito pelo direito de propriedade impunham, face a matéria de facto que se provou nos autos, que se julgasse desproporcionado o sacrifício imposto ao recorrente com a nacionalização, já que não se confirmou que ela tivesse sido determinada pelo interesse geral.
11 - E, sendo assim, não se pode sequer falar em irreversibilidade da nacionalização, desde que, mesmo a posteriori, foi possível reconhecer a falta de fundamento da nacionalização, a inconstitucionalidade do diploma legal em causa e a sua caducidade, face à Constituição de 1976 (artigo 290° - 2), factores só por si suficientes para que os tribunais não aplicassem as suas normas (art. 207° da C.R.P.).
12 - Mas, admitindo que a reversão da posição social do recorrente na empresa nacionalizada se tornou impossível, sobretudo após a sua reprivatização, ou venda a terceiros de boa-fé, sempre seria possível reconhecer a responsabilidade do Estado por ter imposto um sacrifício particular e especialmente gravoso a certo e determinado cidadão, em proveito de um interesse não suficientemente geral e público ou sequer justificável, razoável e proporcional.
13 - E sempre a via da reparação do dano estaria aberta, já que, para além da discriminação, o recorrente suscitou ao longo de todo o processo os vícios de inconstitucionalidade das normas que, desde 1977 até 1991, durante 14 anos, definiram os critérios, os meios e os prazos de pagamento da indemnização por nacionalização, por forma a que tal indemnizacão tivesse resultado inadequada, injusta, inaceitável e mesmo irrisória em concreto, i.é, para o recorrente.
14 - Logo nos articulados o autor - ora recorrente - suscitou a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 1° da Lei n° 80/77, em termos de, onde ele expressamente fazia depender a privação do bem nacionalizado, da respectiva indemnização, se ter passado a entender que em matéria de nacionalizações, o Estado pagava quando queria, quanto queria e como queria (quem diz Estado, diz Governos ...) (artigos 18° a 21° e 98° e segs. da Petição Inicial).
15 - O recorrente considerou, não só que essa interpretação gerava norma ofensiva do direito de propriedade e dos artigos 62°, 82° e 83° da C.R.P., mas renovou esta sua posição nas alegações de recurso que apresentou no processo.
16 - Tanto nos articulados como nas sucessivas alegações nas instâncias e no S.T.J., o recorrente suscitou a inconstitucionalidade das normas a Lei n° 80/77 e dos Decretos-Leis n° 528/76, 206/78, 51/86 e 332/91, por ofenderem os direitos de protecção da confiança, da igualdade e de propriedade, consagrados nos artigos 1° - 3°- 13°- 62° e 83° da C.R.P..
17 - As inconstitucionalidades suscitadas não visaram apenas os critérios de indemnização (avaliação) dos artigos 19° e segs. da Lei n° 80/77, o artigo 5° do Dec. Lei n° 528/76 (aliás considerado organicamente inconstitucional), os artigos 2° a 7° do dec. Lei n° 332/91 (artigos 92° - 184° e segs., 203° e segs. e 210° da P.I., alegação de direito na 1ª instância, alegação de Apelação e Revista – conclusões YY – UU – VV – ZZ, nomeadamente), visaram também os meios e pagamento previstos no artigo 19º e no mapa anexo da Lei nº. 80/77 e todo o processo legislativo dilatório do pagamento, com especial destaque para o vazio legislativo criado entre a Lei nº. 80/77 e o Dec. Lei nº. 51/86 e entre este diploma e o Dec. Lei nº. 332/91.
18 - O recorrente, embora reconheça que na alegação de Revista já apontou o vício da inconstitucionalidade a todas as normas de cada um dos citados diplomas, sem especificação, nem por isso tem menos razão para recorrer para o T.C., pois efectivamente não se vê razão para poupar parte das referidas normas ao apontado vício.
19 - A partir do artigo 19° da Lei n° 80/77 e do seu mapa anexo, o lesado pela nacionalização de 45% do capital da Socarmar, foi forçado a aceitar uma indemnização calculada segundo critérios que foram estabelecidos arbitrariamente, em que os factores de ponderação privilegiaram o que menos vale em qualquer empresa (o património), em prejuízo do que mais vale (a rendibilidade), com o propósito de desvalorizar o bem indemnizável (D. Lei
332/91) (artigos 47° e segs. da Petição Inicial).
20 - O recorrente foi obrigado a receber a indemnização que lhe foi fixada, com
17 anos de atraso (em 1992) em relação a privação do bem (1975), em sucessivas entregas de títulos do tesouro que, findos os 17 anos apresentavam o valor aparente (nominal) de 84.848.000$00, mas valiam apenas 43.873.000$00 (quesito
15° do 2° Arbitramento e ponto 3.3 da Alegação de Direito na 1ª Instância e pontos 1.4 e 1.5 da alegação de Revista).
21 - Os títulos venceram o juro de 2,5%, quando se sabe que os próprios juros legais oscilaram entre 6% (1975 a 1980) e 15% (1980 a 1983), e entre 23º (de 83 a 87) e 15% (de 87 a 95) e de 10% (até Abril/99), o que significa que o recorrente sofreu um autêntico confisco.
22 - Para aqueles que não confundem os juros com a actualização do capital (o juro é certo e pré fixado e representa o rendimento do capital a actualização visa compensar a desvalorização da moeda resultante da inflação incerta), diremos que, face à Portaria 470/93 (ao caso aplicável) o vaIor indemnizatório fixado em 1992 deveria ter sido actualizado e o recorrente salientou em todas as peças do processo citadas que só assim seria conciliável de algum modo a normatividade da Lei n° 80/77 e do D. Lei n° 332/91 com os artigos 62°, 82° e
83° da C.R.P..
23 - Só assim, como se afirmou nos articulados e nas alegações de recurso, não haveria um verdadeiro confisco ou ofensa do direito de propriedade, respeitando-se as referidas normas constitucionais, bem como os arts. 1º - 3º e
22º da C.R.P..
24 - As normas dos diplomas referidos determinaram uma indemnização inaceitável e irrisória para o recorrente, o que significa que tais normas ofenderam os preceitos constitucionais já invocados no processo e que se mencionaram neste requerimento.
25 - É irrisória uma indemnização cujo valor real não ultrapassa os
43.873.000$00, já incluindo os juros, à taxa de 2,5%, recebida com 17 anos de atraso e cujo valor razoável, mesmo aceitando os critérios de avaliação do bem de que foi privado o recorrente, aplicando uma taxa de juro equivalente à média legal no período referido, e actualizando o capital simples (sem juros), corresponderia a quantia cerca de 20 vezes superior (arts. 95° a 99° e 127° da P.I.).
26 - Resulta da prova dos autos (Arbitramento) que antes de pagar a indemnização definitiva no valor de cerca de 43.000 contos ao recorrente, pela privação de
45% do capital da empresa, já o Estado havia alienado cerca de metade da empresa por quase dois milhões de contos e também resulta que, ao longo dos anos em que a empresa se manteve no domínio público, todos os aumentos de capital foram efectuados à custa dos fundos de reserva ou dos lucros reinvestidos, sendo certo que o Estado chegou a levantar os lucros pelo menos em um dos anos de gestão pública.
27 - Por ter entendido que a questão da indemnização paga, tanto quanto ao modo e ao montante como à oportunidade, era compreensível e justificável, o Tribunal recorrido não recusou a aplicação dos diplomas cujas normas foram consideradas inconstitucionais pelo recorrente, nem as interpretou de acordo com o único sentido compatível com a C.R.P..
28 - Este sentido seria o de considerar legal o critério que permite a actualização das dívidas de valor (art. 566° do C. Civil).
29 - O recorrente teve o cuidado de assinalar em todas as peças do processo
(articulados e alegações) que as normas que fixaram as indemnizações e o modo e tempo do seu pagamento (disposições da Lei nº. 80/77 e Decretos Leis 528/76,
206/78, 51/86 e 332/91) violaram directamente o artigo 62º da C.R.P. e também indirectamente, na medida em que alguns desses diplomas (nomeadamente o D.L. nº.
51/86) constituíram apenas meios dilatórios do cumprimento do dever de indemnizar do Estado.
30 - O Tribunal considerou que a demora do Processo Legislativo indemnizatório não fez incorrer o Estado em responsabilidade civil, mas isso não é correcto e tal interpretação do processo legislativo ofende o artigo 22º da C.R.P., para além dos outros citados preceitos da Lei Fundamental (arts. 1° - 3° - 62° - 82° e 83 e o próprio art. 20º), invocado pelo recorrente durante o processo como violado, na medida em que a omissão legislativa impedia o lesado de acesso à Justiça (conclusão 22 da alegação de Revista.
31 - Talvez não seja descabido acrescentar que no próprio dia 12 de Outubro, o Estado Português vai responder. perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violação do direito de propriedade consagrado no artigo 1º do protocolo Adicional n° 1 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tão só por ter privado da indemnização durante um período de vários anos, considerado um prazo não razoável, os queixosos - lesados por nacionalizações (o acórdão da Comissão Europeia deixou de ser confidencial após ter sido extinta a Comissão e a causa ter transitado para o Tribunal Europeu). Termos em que requer a admissão do recurso e a junção de um documento superveniente que ilustra a jurisprudência convencional internacional na matéria em questão.' Admitido o recurso, o recorrente apresentou alegações, concluindo:
'a) O diploma legal que nacionalizou a Socarmar - Sociedade de Cargas e Descargas Marítimas, S.A.R.L. e privou o recorrente da participação social de
45% no capital desta empresa - Decreto Lei nº. 701-E/75, de 17/12 - violou de modo discriminatório o direito de propriedade do recorrente, consagrado no artigo 62º da C. R. P., além do direito à protecção da confiança e do direito à igualdade, garantidos pelos artigos 1° a 3° e 13° da C.R.P.; b) Com efeito, o recorrente foi o único cidadão afectado pela nacionalização de empresas do ramo das cargas e descargas marítimas, consideradas integradas nas infraestruturas portuárias, já que o Estado, embora justificasse a nacionalização da Socarmar, no referido diploma legal, com a necessidade de afectar ao sector público as empresas do ramo, apenas o fez com Socarmar, mantendo no domínio privado todas as restantes, quer laborassem, no âmbito intraportuário do Tejo, quer nos outros portos do país; c) Ficaram claramente provados nos autos, através de documentos e das respostas aos quesitos, os facto referidos, resultando do preâmbulo do Decreto Lei n°
701-E/75 a justificação do legislador para a nacionalização da Socarmar; d) O facto de o diploma nacionalizador ser anterior à Constituição de 1976 não tira a relevância ao vício de inconstitucionalidade apontado, pois o artigo
290°, n° 2 da C.R.P. determinou a caducidade das normas anteriores contrárias à Constituição e, além disso, o artigo 207° (hoje artigo 204) da mesma C.R.P. obriga os tribunais a conhecer e a desaplicar normas inconstitucionais; e) O vício de inconstitucionalidade referido foi suscitado oportuna e atempadamente e o tribunal recorrido fez aplicação das normas cuja inconstitucionalidade por discriminação foi denunciada; f) Na tese do acórdão recorrido, o vício da discriminação não poderia afectar o diploma que nacionalizou a Socarmar, mas, quando muito, seria o resultado de omissão posterior, pelo facto de o Estado não ter nacionalizado as outras empresas do ramo; g) Além disso, como resulta do acórdão recorrido, também não seria possível anular a nacionalização da Socarmar, desaplicando o diploma legal em questão, dada a irreversibilidade das nacionalizações. h) O primeiro argumento parte do errado princípio de que, nada ganhando o recorrente 'com o mal dos outros', só seria admissível falar-se de discriminação, se ele tivesse podido beneficiar com a posterior nacionalização de empresas com o mesmo objecto de comércio da Socarmar; i) O Estado de Direito reclama o respeito pelo princípio da igualdade na distribuição dos encargos públicos e garante o direito à protecção da confiança dos cidadãos; j) Nesta medida, o princípio da igualdade e o direito à protecção da confiança, bem como o direito de propriedade do recorrente, impunham, face à matéria de facto provado nos autos, que se considerasse desproporcionado o sacrifício imposto ao recorrente com a nacionalização, posto que não se confirmou o projecto da nacionalização das empresas do género da Socarmar, nem sequer o facto de esta nacionalização ter sido determinada pelo interesse geral; k) O tribunal recorrido fez interpretação incorrecta do artigo 83° da C.R.P. , por forma a concluir que as nacionalizações não podem ofender nunca os direitos fundamentais e equiparados atrás referidos, por serem actos do poder discricionário do Estado; l) Esta interpretação é em si mesmo geradora de norma inconstitucional, pois ofende o correcto sentido do artigo 83° da C.R.P., de que a nacionalização deve fundar-se no interesse público através da lei geral, e o princípio da responsabilidade do Estado consagrado no artigo 22° da C.R.P.; m) O recorrente suscitou todas as apontadas inconstitucionalidades perante o tribunal recorrido (conclusões a a u, ii e jj), tal como o fez no requerimento de interposição deste recurso; n) Admitindo que a reversão da participação social do recorrente Socarltlar se tornou impossível, sobretudo, após a reprivatização, ou venda a terceiros de boa fé, nem por isso deixa de ser possível, em consequência da verificação da inconstitucionalidade em concreto, reconhecer a responsabilidade por imposição de um sacrifício particular especialmente gravoso a certo e determinado cidadão, sem que estivesse suficientemente justificado o interesse geral, razoável e proporcional; o) O tribunal recorrido devia ter condenado o Estado-Legislador a pagar a indemnização integral dos danos ao autor, incluindo os moras, a liquidar em execução de sentença; p) Com autonomia em relação à questão anterior da discriminação, o recorrente suscitou, ao longo do processo, incluindo no recurso de revista e no requerimento de interposição de recurso para o T.C., a inconstitucionalidade de diversas normas de cuja aplicação ao caso dos autos resultou o pagamento ao recorrente de indemnização adequada, inaceitável, manifestamente desproporcionada e mesmo irrisória; q) O recorrente teve presente a tese sustentada no Ac. do T.C nº. 39/88 e não pôs em questão a distinção entre nacionalização e expropriação, admitindo que, no primeiro caso, não funcione a regra da indemnização integral ou o princípio da equivalência; r) Logo após a fixação da matéria de facto provada, o recorrente reconheceu implicitamente que não foi possível fazer a prova valor real da Socarmar em
1975, embora criticando os critérios legais especiais de avaliação e fixação da indemnização, suscitando mesmo a inconstitucionalidade dos preceitos específicos que os previam e referindo, em regra, o vício à globalidade das normas incluídas nos diploma que regularam a matéria; s) Perante o tribunal recorrido, tal como neste tribunal, o recorrente considerou que o valor da indemnização que lhe foi pago pelo Estado resultou irrisório e manifestamente desproporcionado, por efeito de cinco factores determinantes, correspondentes a outras tantas inconstitucionalidades, oportuna e adequadamente suscitadas, consequentes de normas aplicadas, contrárias a preceitos constitucionais devidamente identificados; t) Para o recorrente, tendo em conta o preceituado na C.R.P., é matéria de lei, tanto as nacionalizações como as consequentes indemnizações (artigos 82º e 83º), e o valor real da indemnização efectivamente paga ao recorrente é facto que resulta da prova dos autos (v.g. respostas aos quesitos e arbitramentos), demonstrado também no ponto 5.1 desta alegação e na alegação de revista. u) Tal valor resultou dos seguintes factores:
- Pagamento da indemnização definitiva com atraso de 17 anos em relação à nacionalização, por se considerar que o devedor não estava sujeito a mora ou obrigado a prazo de cumprimento;
- Cumprimento do dever de indemnizar por dação em pagamento de títulos da dívida pública (meios de pagamento escolhidos pelo devedor), desvalorizados em relação ao valor nominal, sujeitos a limitadas condições de mobilização e amortizáveis a muito longo prazo (28 anos);
- Aplicação de taxa de juro de 2.5% ao capital indemnizatório;
- Determinação legal, na avaliação geral das empresas, de coeficientes de ponderação arbitrariamente distribuídos pelos factores económicos integrantes do respectivo valor - património e rendibilidade - com o objectivo de depreciar o valor da indemnização a pagar pelo devedor;
- Exclusão arbitrária do critério económico legal de actualização da indemnização, calculada com base em valores reportados à data da nacionalização, quando, em concreto, a indemnização definitiva foi fixada e paga 17 anos mais tarde. v) A incorrecta interpretação do artigo 1º da Lei nº. 80/77 permitiu aos tribunais ordinários, especialmente ao tribunal recorrido, extrair dele norma inconstitucional, que colide com o artigo 62º da C.R.P., na medida em que viola o direito de propriedade, por desobrigar o devedor de indemnizar prontamente o credor nos casos de nacionalização, quando é certo que, dos termos do artigo 1º daquela Lei resulta expressamente que a nacionalização só se completa com a indemnização; x) É também inconstitucional a interpretação dos preceitos do Dec. Lei nº.
701-E/75 (artigo 2º, nº. 3) da Lei nº. 80/77 (arts. 9º, 10º e 37º), bem como das normas dos Decretos Leis nºs. 528/76, 206/78 e 51/86, que fixaram prazos concretos para o Estado definir as indemnizações e cumprir o dever de indemnizar, ou determinaram a necessidade de regulamentação da matéria, quando leva a deles extrair normas que desvinculam o devedor da mora.
y) Semelhante entendimento torna os citados preceitos diplomas ofensivos do princípio da responsabilidade do Estado (artigo 22° da C.R.P.), e, em concreto, também do direito de propriedade (artigo 62° da C.R.P.), nomeadamente atendendo
à depreciação do capital indemnizatório, e ainda do direito à protecção da confiança do Estado de Direito (arts. 1° a 3°da C.R.P.); z) O conceito de direito de propriedade em direito internacional não coincide com o conceito jusprivatistico e abrange hoje o próprio crédito, quando a falta de liquidação excede o prazo razoável, impõe sacrifício desproporcionado ao credor e depende tão só do devedor (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - interpretação da 1ª frase do artigo 1° do P.A. n° 1 à Convenção Europeia - citado nesta alegação); aa) O recorrente suscitou a inconstitucionalidade que refere nas conclusões anteriores (v e segs) e no tribunal recorrido (pags. 8 a 13 da alegação de revista e conclusões z a gg), e a verdade é que o tribunal a quo fez interpretação das citadas normas, aplicando-as com o sentido da assinalada inconstitucionalidade, citando mesmo parecer do Prof. A. Varela em apoio da sua tese; bb) O processo legislativo da nacionalização - indemnização, em concreto, revela a negligência do devedor - Estado, que deixou por regulamentar sem justificação, ao longo de quase dezasseis anos, matéria de que dependia a satisfação de direitos fundamentais do cidadão ora recorrente, o que se traduziu em ofensa do disposto nos artigos 17º e 18º da C.R.P., ou limitação ilícita, por inconstitucional, daqueles direitos. cc) As normas que fixaram os meios legais de pagamento da indemnização, datas de emissão dos títulos, taxa de juro fixa de 2,5% para dívidas iguais ou superiores a 6.050 contos, amortização dos meios de pagamento em 28 anos e condições de mobilização limitadas, foram determinantes da desvalorização da indemnização paga ao recorrente pela nacionalização da sua participação na Socarmar, em termos inaceitáveis, injustos e desproporcionados em relação ao valor do bem afectado (artigos 18º e 19º e tabela anexa à Lei nº. 80/77); dd) O recorrente veio a receber, em consequência da aplicação daquelas normas, uma indemnização calculada com base em factores económico-financeiros de
1974/75, mas paga apenas em 1992 (pontos 5.4 e 5.5 da alegação deste recurso). ee) Foi da aplicação das referidas normas dos Decretos Leis nº. 528/76, 206/78 e
332/91 e da Lei nº. 80/77, em particular dos artigos 18º e 19º e tabela anexa deste último diploma, que resultou para o recorrente indemnização correspondente a cerca de metade do valor nominal dos títulos que lhe foram entregues pelo Estado (ponto 5.1 desta alegação). ff) Como resulta dos factos referidos no ponto 5.1, a indemnização efectivamente paga ao recorrente representa cerca de 3,5% do valor real que teria em 1991 a quota de capital correspondente à participação social do recorrente na Socarmar ao tempo da nacionalização. gg) Dos autos resulta que a evolução do capital da Socarmar e a sua valorização foi exclusivamente resultante de reavaliação e integração de reservas, após a nacionalização, e da rentabilidade extraordinária da empresa, em franca expansão ao tempo da nacionalização, sem que para tanto tivesse contribuído qualquer sacrifício do Estado. hh) Os preceitos legais referidos em ee, na sua aplicação concreta, traduziram-se no pagamento de irrisória indemnização, ofendendo o artigo 62° da C.R.P. e o direito de propriedade do recorrente. ii) A taxa de juro de 2,5% era verdadeiramente confiscatória do capital indemnizatório, convertendo-se, de sanção em prémio, atribuído à mora do devedor, tendo em conta os índices de inflação e taxa média de juro legal no período que decorreu entre a nacionalização e o pagamento da indemnização (docs. juntos). jj) O recorrente, embora no tribunal recorrido não tenha referido os preceitos legais concretos da Lei nº. 80/77 que considerava feridos de inconstitucionalidade, suscitou a tal respeito a inconstitucionalidade global dos diplomas legais, nomeadamente da referida lei, e deixou claramente exposta a justificação das inconstitucionalidades suscitadas, por forma a afastar qualquer dúvida sobre quais as normas consideradas viciadas (pags. 32, 41, 45 a 47 e 53 e conclusões bb – cc – nn – oo – zz da alegação de revista e pontos 16 – 17 – 19 e
21 do requerimento de interposição do recurso para o T.C.). kk) O recorrente suscitou a inconstitucionalidade da generalidade dos preceitos que fixaram os critérios de avaliação das acções e dos critérios de cálculo da indemnização, por considerar que as normas dos Decretos Leis 528/76, 206/78 e
332/91, bem como da Lei nº. 80/77 que regulavam aquelas matérias, foram determinantes do resultado da indemnização que lhe foi paga. II) É certo que o recorrente se referiu no recurso de revista à globalidade das normas dos referidos diplomas legais que definiram os critérios de avaliação e fixação da indemnização. mm) Na alegação de revista foram considerados artificiais todos os critérios legais de indemnização, suscitando-se a inconstitucionalidade e justificando-se em particular a que resultava da atribuição do coeficiente de ponderação de 70% ao factor patrimonial e de 30% à rentabilidade, por ter carácter arbitrário, conduzir à desvalorização do capital indemnizatório, confundir empresas em expansão com empresas falidas e ter por único objectivo permitir ao Estado pagar ao credor a indemnização mínima (pag. 44 - Parágrafo 2°, pag.45 e pag. 47 - 1 ° parágrafo e conclusões vv a zz da alegação de revista) . nn) As normas que fixaram critérios legais de avaliação e de fixação das indemnizações por nacionalizações, em especial a do artigo 7°, na sua aplicação ao caso dos autos, foram determinantes da indemnização irrisória paga ao recorrente e violaram também o artigo 62° da C.R.P., por ofensa do direito de propriedade. oo) A exclusão da actualização da indemnização resultou da interpretação errada dos preceitos legais que definiram os critérios legais de indemnizações por nacionalizações, nomeadamente do Dec. Lei n° 528/76, artigo 1° da Lei n° 80/77 e artigos 1º a 7° do Dec. Lei n° 332/91, bem como do artigo 566° do C. Civil. pp) Dessa interpretação resulta norma ofensiva do art. 62° da C.R.P. e do direito de propriedade do recorrente, pois foi determinante, na aplicação ao caso concreto, da irrisória indemnização que foi paga. qq) Com efeito, fixada de acordo com critérios e factores reportados a 1974/75 e paga em 1992, a indemnização definitiva estava sujeita a actualização, como dívida de valor, para salvaguarda do princípio da proporcionalidade entre a vantagem do devedor e o sacrifício do credor, em caso de não cumprimento do dever de indemnizar em prazo razoável. rr) O Estado-legislador não quis excluir a actualização da indemnização dos critérios legais especiais das indemnizações por nacionalizações e não tinha sequer que incluí-la expressamente nos ditos critérios, pois a sua aplicação resulta dos princípios gerais da responsabilidade civil e, em concreto, é a
única forma de corrigir os vícios de inconstitucionalidade daqueles critérios especiais. ss) Como foi salientado no recurso de revista e no requerimento de interposição de recurso para o T.C., a interpretação dos preceitos da lei referidos na conclusão oo, que levou a excluir neste caso a actualização do capital indemnizatório, extrai dos referidos preceitos normas contrárias ao artigo 62° da C.R.P., inconstitucionais em concreto, pois a sua aplicação foi determinante da indemnização irrisória e desproporcionada paga ao recorrente; tt) Se se considerar procedente este recurso, na parte relativa à violação discriminatória do direito de propriedade, terá o recorrente direito à indemnização integral dos danos, incluindo os danos morais, em liquidação que deve ser relegada para execução de sentença. uu) se se considerar que, em concreto, a inconstitucionalidade das normas que foi suscitada é determinada pelo valor irrisório ou manifestamente desproporcionado da indemnização, por ofender o direito de propriedade e a norma do artigo 62° da Constituição, então o recorrente terá direito a actualização do capital indemnizatório de base, de acordo com os índices da portaria n° 395/92
(seja referido ao ano de 1975, seja ao ano de 1976, conforme se entenda que o devedor se constituiu em mora na data da nacionalização, como resulta do artigo
1° da Lei n° 80/77, ou na data em que a liquidação da dívida passou a depender dele, após a publicação do Dec. Lei n° 528/76); vv) E terá também direito ao juro de mora, à taxa legal calculado sobre o capital indemnizatório não actualizado, se se entender que o juro é cumulável com a actualização monetária. xx) A actualização do capital indemnizatório será sempre uma solução minimalista de reposição da legalidade constitucional abalada pela aplicação de normas inconstitucionais que subverteram o direito de crédito do recorrente à indemnização, considerado tal direito como um bem integrador do direito de propriedade.' Contra-alegou o Estado, representado pelo Ministério Público, concluindo nos seguintes termos:
1 – O recorrente não suscitou, nas alegações que produziu no âmbito do recurso de revista que apresentou perante o Supremo Tribunal de Justiça – podendo perfeitamente tê-lo feito – qualquer questão de inconstitucionalidade de normas ou intepretações normativas, susceptível de servir de base ao recurso de fisclaização concreta que interpôs, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82.
2 – Na verdade, no nosso ordenamento jurídico, os recursos de fiscalização concreta têm inquestionavelmente um objecto e dimensão normativos, incidindo necessariamente sobre a apreciação da constitucionalidade de normas identificadas e especificadas, em termos tempestivos e bastantes, pelo recorrente – não assumindo nunca a configuração de um (inexistente) recurso de amparo, destinado a propriciar uma global reapreciação do mérito da causa por este Tribunal, na perspectiva de uma pretensa violação de direitos fundamentais, constitucionalmente tutelados, pelas decisões jurisdicionais proferidas acerca da composição do litígio.
3 – Termos em que - por faltar um elemento essencial pressuposto de admissibilidade do recurso - não deverá dele conhecer-se. Ouvido sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente sustenta a sua improcedência dizendo, no essencial que '(...) ao longo da sua alegação de recurso para o TC, deixou bem expresso que houve invocação de inconstitucionalidades mais e menos adequadas, através de referência a normas em termos mais globais, enquadradas em todo um diploma, ou em termos mais específicos, mas sempre procurou demonstrar como adequado o modo como suscitou a questão de inconstitucionalidade, por forma a que ela fosse compreendida e decidida pelo tribunal a quo, como realmente foi.'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Quer no nº 18 do requerimento de interposição de recurso, quer em 'Notas Prévias' nas alegações apresentadas neste Tribunal, deixa o recorrente transparecer o reconhecimento do modo como suscitou as questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
É a essa forma de suscitação que se reportam as conclusões das alegações do Estado Português e que conduziriam ao não conhecimento do objecto do recurso.
Em reiterada jurisprudência vinha este Tribunal decidindo que no recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC o preenchimento do requisito expresso nesse preceito – suscitação da inconstitucionalidade de norma durante o processo – devia ser entendido no sentido de que o recorrente deve colocar a questão de modo processualmente adequado.
Tal exigência veio a merecer consagração legal, com a nova redacção dada ao artigo 72º nº 2 da LTC, pela Lei nº 13-A/98 de 26 de Fevereiro, preceito que deixou ainda claro que ela deve ser cumprida 'perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida'.
Isto significa que há-de ser na peça processual onde o recorrente expôs, perante o tribunal 'a quo', as razões que justificavam a pretensão indeferida por aquele tribunal que o Tribunal Constitucional deverá ajuizar se o recorrente suscitou as questões de constitucionalidade – tal como vêm delimitadas no requerimento de interposição de recurso – de modo processualmente adequado; é, pois, irrelevante tudo o que o recorrente a este respeita alegou noutras fases e peças processuais.
Por outro lado e salientando apenas o que ao caso importa, sendo o recurso para o Tribunal Constitucional um recurso de constitucionalidade normativa, só é modo processualmente adequado de suscitar questões de constitucionalidade aquele em que o recorrente identifica a norma (ou uma sua interpretação) que entende desconforme à Constituição.
Trata-se de uma exigência razoável e proporcionada tendo em conta o objecto – 'estritamente normativo', como diz, e bem, o Ministério Público nas suas alegações – do recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta.
E tal não contradiz a norma do artigo 204º da CRP, pois aquela exigência, como pressuposto ou requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, é inteiramente compatível com o dever de os tribunais recusarem oficiosamente a aplicação de normas que julguem inconstitucionais – o recurso tem por objecto uma decisão do tribunal 'a quo' sobre a questão de constitucionalidade e, em termos oficiosos, ela só é proferida quando a norma em causa é considerada inconstitucional, não podendo entender-se o silêncio do julgador, quando não há arguição expressa de inconstitucionalidade, como julgamento implícito de constitucionalidade.
Impõe-se, assim, verificar se, como defende o Estado recorrido, o recorrente não suscitou as questões de constitucionalidade de modo processualmente adequado, em particular no que concerne à arguição de inconstitucionalidade reportada, em bloco, a um ou vários diplomas legais.
Que este modo de suscitar a questão de constitucionalidade não é, em princípio, processualmente adequado, tem-se por adquirido.
Na verdade, se a questão não é de constitucionalidade orgânica – caso em que, sendo a matéria regulada (toda ela) da competência legislativa de determinado órgão, se pode admitir que, na maioria dos casos, a suscitação da questão se reporte globalmente a todo um diploma – cada uma das normas é susceptível de um juízo de constitucionalidade autónomo, não podendo exigir-se que o Tribunal se pronuncie, neste plano, sobre todas as normas que o diploma contenha. Trata-se, de resto, de jurisprudência bem firmada deste Tribunal, anterior mesmo à nova redacção do artigo 72º nº 2 da LTC (cfr., entre outros, Acórdãos nºs 442/91, 155/95 e 131/97 publicados os dois primeiros nos 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 20º vol., p. 469 e 30º vol., p. 737, respectivamente, e sendo o último inédito).
Ressalvar-se-ão obviamente os casos em que o diploma contenha uma só norma (a sua identificação não deixa de ser feita com a referência ao diploma, podendo também admitir-se, com tolerância, tal modo de suscitação quando no complexo normativo do diploma, uma das normas assuma relevância preponderante, dela decorrendo, consequencialmente, todas as outras, e o recorrente, embora sem identificar o preceito legal que a contenha, se reporte claramente ao seu conteúdo.
Deixa-se, ainda uma outra nota prévia à resolução da questão agora em causa.
A acção de que emerge o presente recurso visou efectivar a responsabilidade do Estado por actos legislativos ilícitos (inconstitucionais); em tal conformidade, a causa de pedir radica na inconstitucionalidade daqueles actos.
Ora, o juízo que se fizer sobre o preenchimento dos requisitos de admissibilidade do recurso nada tem a ver – nem podia – com a forma como o autor explanou e articulou a aludida causa de pedir.
Pode, de facto, a alegação de inconstitucionalidade, como causa de pedir da dita acção, estar suficientemente substanciada e obedecer, assim, às exigências processuais próprias dessa acção, mas já ela não cumprir o ónus específico estabelecido no artigo 72º nº 2 da LTC relativo ao recurso de constitucionalidade.
Vejamos, pois.
De acordo com o requerimento de interposição do recurso as questões de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciadas por este Tribunal são: o 'a inconstitucionalidade das normas do diploma legal que nacionalizou a Socarmar – Sociedade de Cargas e Descargas Marítimas SARL, isto é do Decreto-lei nº 701-E/75, de 17 de Dezembro' (nºs 1 a 11); o 'a inconstitucionalidade das normas da Lei nº 80/77 e dos Decretos-Leis nºs 528/76, 206/78, 51/86 e 332/91' (nº 16).
No que concerne às primeiras a inconstitucionalidade residiria no carácter discriminatório da nacionalização da Socarmar, mantendo no domínio privado as demais empresas do sector e no diferimento do pagamento da indemnização para momento posterior à nacionalização.
Quanto ás segundas a inconstitucionalidade traduzir-se-ia nos critérios de indemnização (avaliação), nos meios e prazos de pagamento e em
'todo o processo legislativo dilatório do pagamento' que teriam conduzido a uma indemnização 'inaceitável e irrisória'.
Refira-se que o recorrente no mesmo requerimento identifica algumas das normas dos citados diplomas, o que para a resolução da questão não tem qualquer relevância – a suscitação da questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado teria que ser feita perante o tribunal 'a quo' e antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
Ora, analisando as 51 conclusões (excluindo as respeitantes ao valor da causa) das alegações de recurso para o STJ, verifica-se que não há uma única identificação de norma, reportada a um determinado preceito legal, de direito infra--constitucional a que o recorrente impute o vício de inconstitucionalidade. As referências são, todas elas, feitas à globalidade dos Decretos-Leis nºs 701-E/75, 528/76, 206/78, 51/86, 332/91 e da Lei nº 80/77.
Com diplomas que contêm numerosos preceitos legais, a imputação que
àqueles genericamente se faça de inconstitucionalidade material não pode considerar-se modo processualmente adequado de suscitação de questão de constitucionalidade nos termos do citado artigo 72º nº 2 da LTC.
Diga-se ainda que, se pode ser apropriada, como fundamento da acção de responsabilidade civil por actos normativos ilícitos, a alegação de 'todo um processo legislativo de nacionalização/indemnização desenvolvido pelo Estado' e como impugnação de uma decisão da Relação que considerara como única causa dos danos invocados o acto de nacionalização, não se integra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional no âmbito do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, conhecer da inconstitucionalidade de 'todo' esse processo, razão por que também tal suscitação de questão de constitucionalidade, feita perante o tribunal 'a quo' não preenche o requisito expresso no artigo 72º nº 2 da LTC.
Mesmo analisando o próprio texto das alegações para o STJ, também se não vê nele a identificação das normas arguidas de inconstitucionalidade, sendo aí clara a opção do recorrente em fundamentar o recurso com alusões genéricas a todo o processo legislativo, sobre os prazos estabelecidos para determinação da indemnização, os critérios de avaliação, a forma de pagamento daquela indemnização e – sempre presente – a demora na conclusão do processo (questão esta que está, também, fora dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional), tudo conduzindo a uma indemnização irrisória.
E que a individualização das normas em todo o complexo invocado era possível demonstram-no as alegações que o recorrente apresenta neste Tribunal, onde ela é feita, embora em momento já inoportuno.
Do que se disse há, porém, que fazer uma ressalva: a arguição de inconstitucionalidade do Decreto-lei nº 701-E/75.
Não porque a este respeito o recorrente tenha abandonado o modo como, em geral, alegou no STJ – a referência ao diploma é feita também sem identificação expressa de normas.
Sucede, contudo, que o diploma em causa, composto por oito artigos
(sendo um deles respeitante á data da entrada em vigor do diploma) regula dois aspectos distintos: o primeiro a nacionalização da Socarmar e pertinente indemnização a definir quanto ao montante, prazo e forma de pagamento (artigos
1º nº 1 e 2º nº 3) e o segundo, as regras essenciais de gestão e funcionamento da empresa pública criada e para que é transferida a universalidade dos bens, direitos e obrigações que integram o activo e passivo da empresa nacionalizada e os bens que se encontram afectos á sua exploração.
Ora não oferece margem para dúvidas que o recorrente põe em causa a constitucionalidade da nacionalização da Socarmar (logo, do artigo 1º nº 1 do Decreto-Lei nº 701-E/75), considerando-a discriminatória, violadora do direito de propriedade (artigo 62º da CRP) e do direito de protecção da confiança e do direito de igualdade (artigos 1º a 3º e 13º da CRP).
Nesta medida, porque, precisamente o Tribunal pode identificar, de imediato, a norma em causa, seria de rigor inadmissível uma solução de não conhecimento de tal arguição de inconstitucionalidade, com aquele fundamento.
Mas já o mesmo não acontecerá quanto à norma que difere o pagamento da indemnização ínsita no artigo 2º nº 3 do mesmo diploma.
Na verdade, não obstante ela vir referida na conclusão v) das alegações neste TC e no nº 2 do requerimento de interposição de recurso, ela não foi suscitada nem nas alegações nem nas pertinentes conclusões do recurso de revista, não se mostrando preenchido, também aqui, o requisito preenchido no artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC.
3 – Apesar do que acima se deixou dito, ao conhecimento da invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 1º nº 1 do DL nº 701-E/75, mediante a qual a Socarmar foi nacionalizada, poderá, porém, opor-se outra ordem de considerações
Na verdade, esse conhecimento pressupõe uma resposta afirmativa à questão de saber se é lícito formular um juízo de inconstitucionalidade
(material) tendo como parâmetro a Constituição de 76.
Ora, o artigo 293º nº 1 da CRP, na sua versão original, prevê a sobrevigência do direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição, desde que não contrário a esta e aos princípios nela consignados.
Colocado, assim, o direito ordinário anterior no mesmo plano do que o posterior no que concerne à sua compatibilidade com as normas e os princípios constitucionais, a 'caducidade' do direito anterior pressupõe um juízo de constitucionalidade idêntico ao juízo de constitucionalidade material relativamente a normas ordinárias posteriores à Constituição (cfr. entre outros Acórdão nº 40 da Comissão Constitucional in Apênndices ao Diário da República de
30/12/77 e Acórdão nº 201/86 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 7º vol., tomo II, pags. 933 e segs.).
Mas, para que isto suceda, impõe-se que o direito ordinário anterior vigore no momento em que foi publicada a Constituição – só assim se pode colocar uma questão de sobrevigência ou de caducidade.
Sucede que, no caso, a norma (publicada em 17 de Dezembro de 1975) que nacionalizou a Socarmar é uma norma individual e concreta, cujos efeitos se esgotaram com uma única aplicação no próprio momento em que entrou em vigor (a nacionalização operou ope legis), mostrando-se integralmente satisfeitos os fins politico-económicos que, nesta parte, o DL nº 701-E/75 visava.
Nesta medida, à data em que entrou em vigor a Constituição de 76, a norma do artigo 1º nº 1 do DL nº 701-E/75 havia há muito atingido os limites da sua eficácia (cfr. sobre a distinção entre leis norma e leis de medida, Gomes Canotilho, 'Teoria da Constituição e Direito Constitucional', pág. 628/629, onde, a propósito das leis de medida, se fala no seu condicionamento 'pelos limites de validade temporal'), estando assim fora do âmbito de aplicação do citado artigo 293º nº 1 da CRP.
Com isto se dirá que a referida norma não é susceptível de um juízo de constitucionalidade aferido pelas normas ou princípios da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que outros parâmetros de constitucionalidade estão fora dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional – a inconstitucionalidade que ao Tribunal Constitucional compete apreciar é aquela que se traduz na infracção ao disposto 'na Constituição ou aos princípios nela consignados' (artigos 223º nº 1 e 277º nº 1 da CRP).
3 - Mas para quem assim não entenda, a verdade é que, de todo o modo, a norma não seria contrária à Constituição ou aos princípios nela consignados, como se passa a demonstrar.
Considerada de 'alto valor estratégico e importância política, social e económica' a indústria dos transportes marítimos, o preâmbulo do DL nº
701-E/75 faz ressaltar a relevância do transporte marítimo no comércio externo do país em termos tais que se tornaria necessária a integração do sector na planificação geral da política sobre aquela matéria. Entende-se, no entanto, no mesmo preâmbulo, que a referida integração se insere 'num complexo mais vasto, de que é peça fundamental toda a actividade de serviços portuários ligados á movimentação de unidades marítimas'.
É, deste modo, que se justifica 'a necessidade de o Estado, ao planificar a actividade dos transportes marítimos, ter de actuar simultaneamente a nível das infra-estruturas portuárias'.
A nacionalização da Socarmar insere-se, assim, neste contexto de política económica, traçada de acordo com as concepções de então sobre o papel do Estado na actividade económica do país.
Com efeito, a Socarmar era, à data, de acordo com a matéria dada como provada, uma empresa que alcançara 'a liderança no sector de tráfego e estiva', tendo 'frota, clientela e prestígio superior às empresas concorrentes' e onde o Estado era já detentor da maioria do capital social.
A questão central que o recorrente coloca, em matéria de constitucionalidade, sobre a nacionalização da Socarmar, é, como se viu, a de não terem sido nacionalizadas outras empresas que como ela operavam no sector, base em que assenta a alegação de discriminação, desigualdade, ofensa do direito de propriedade e da protecção da confiança.
Ora, desde logo, se tem que por em causa a interpretação que o recorrente faz, no plano político-económico, da justificação expressamente dada para a nacionalização daquela empresa.
Com efeito, atentos os objectivos políticos e económicos que o Estado então prosseguia, não resulta dessa justificação o imperativo de nacionalizações que abrangessem a totalidade ou sequer a maior parte do sector da operação portuária. No âmbito da mesma política, nada parecia obstar a nacionalizações selectivas, de acordo com a importância que as empresas assumiam no sector.
Por outro lado, não se tendo procedido a nacionalizações globais, a dinâmica da actividade económica e as necessidades que ela ora criava ora abolia, nem mesmo seria inteiramente compatível com um inabalável propósito nacionalizante que legitimasse a certeza de que à nacionalização de uma empresa se seguisse necessariamente a de outra do mesmo sector.
Nesta medida, a nacionalização de uma empresa que assumia a liderança do sector, como era o caso da Socarmar, considerando os parâmetros e as finalidades que orientavam a política económica do Estado, não revela, em si, qualquer arbitrariedade; e não a revela também, mesmo que se fizesse apelo a procedimentos posteriores do Estado, o facto de não terem ocorrido outras nacionalizações no mesmo ramo da actividade económica.
Pela mesma razão, não se vê que o recorrente pudesse ter uma expectativa legitimamente fundada a que à nacionalização da Socarmar se seguisse a de outras empresas congéneres.
Releva, ainda, como razão que, neste ponto, infirma a argumentação do recorrente, o disposto no artigo 83º nº 1 da Constituição, na sua versão original.
Entende-se, na verdade, que ao proclamar a irreversibilidade das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974, aquele preceito tem também como efeito a convalidação dos actos de nacionalização, eventualmente feridos de ilegalidade (cfr. Acórdão nº. 102/87 publicado nos 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 9º vol., p. 73) . E a isto não se opõe o disposto no artigo 293º nº 1 da CRP, também na versão original, que não opera relativamente
àquele direito que, como é o caso, é expressamente recebido e constitucionalizado pela própria Lei Fundamental e, de qualquer forma, se mostra conforme ao disposto nos artigos 2º, 10º nº 2, 50º. 80º, 89º e 90º nº 2 da CRP, ainda na versão original.
Por último, não pode entender-se violado o direito de propriedade, constitucionalmente garantido 'nos termos da Constitução' (artigo 62º nº 1), quando a mesma Constituição autorizava a intervenção na vida económica através da nacionalização e socialização dos meios de produção (artigo 82º nº 1). De resto só pode compreender-se esta invocação do recorrente na decorrência da alegação do carácter discriminatório e violador do princípio da igualdade da nacionalização da Socarmar, o que se não deu como verificado.
Não procede, pois, a alegação de inconstitucionalidade da norma do artigo 1º nº 1 do DL nº 701-E/75.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso na parte em que dele se conhece.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 13 de Julho de 2000 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa