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Proc.º n.º 504/2000.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
Em 27 de Setembro de 2000 o relator lavrou nos autos despacho com o seguinte teor:-
'1. Por intermédio do Acórdão deste Tribunal nº 73/2000, tirado nestes autos de fls. 169 a 174 e rectificado pelo Acórdão nº 132/2000 (fls. 244 e 245), foi decidido, em aplicação da jurisprudência firmada pelo Acórdão nº
683/99, tirado em plenário, conceder provimento ao recurso - e, em consequência, determinar a respectiva reforma em consonância com o juízo de não inconstitucionalidade aí tomado - do acórdão lavrado em 10 de Dezembro de 1997 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o qual condenou o réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, a, por entre o mais, reintegrar a autora M. A. no seu posto de trabalho como auxiliar de acção educativa na escola de São João do Estoril, autora essa que, com o réu, tinha celebrado, em 8 de Março de
1993, um contrato designado como contrato de trabalho a termo certo, o qual terminaria em 31 de Agosto desse ano de 1993, sendo que, contudo, a mesma autora continuou a prestar o mesmo labor ao serviço do réu até 31 de Agosto de 1994, data na qual este último fez cessar o contrato celebrado com a autora.
Tendo os autos sido remetidos ao indicado Tribunal da Relação de Lisboa, aí foi, em 10 de Maio de 2000, proferido novo acórdão no qual se declarou nula a cessação da relação de emprego da autora ocorrida em 31 de Agosto de 1994 e se condenou o réu a reintegrar a autora no seu posto de trabalho e a pagar-lhe determinadas retribuições cujo montante se apuraria em execução de sentença, para além de juros de mora.
Para tanto, e no que ora releva, o acórdão de 10 de Maio de 2000 prosseguiu um raciocínio que, em síntese, se fundou nas seguintes premissas:
- o contrato de trabalho celebrado entre a autora e o réu em 8 de Março de 1993 era um contrato de trabalho a termo ‘de natureza exclusivamente civil’;
- não tendo esse contrato sido renovado, mediante comunicação feita pelo réu à autora nos termos do nº 3 do artº 20º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, haveria ele de considerar-se caduco em 31 de Agosto de 1993;
- contudo, porque depois desse dia 31 de Agosto de 1993 se manteve entre autora e réu uma relação de emprego em que ambas as partes continuaram a cumprir as respectivas obrigações, porque não houve a celebração, entre as partes, de um outro qualquer contrato, e porque, conforme foi decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 683/99, não poderia considerar-se que o contrato de trabalho anteriormente celebrado podia converter-se em contrato sem termo, então haver-se-ia de concluir que aquela relação de emprego - mantida após 31 de Agosto de 1993 e que se não podia aceitar como defluindo de um contrato de prestação de serviço, à míngua de qualquer acordo entre as partes em tal sentido - constituiu uma ‘relação de emprego atípica’ ou ‘uma relação de trabalho de facto, totalmente nova, não prevista legalmente, mas que não pode deixar de merecer a tutela do direito, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer no que respeita à sua cessação’;
- sendo assim, a cessação daquela relação de emprego epitetada de atípica e que ocorreu em 31 de Agosto de 1994 deveria considerar-se ‘em tudo semelhante a um despedimento promovido por um empregador, sem aviso prévio e sem justa causa’, razão pela qual, in casu, e em face de uma lacuna de regulamentação, seriam de aplicar, por analogia, as normas que se reportam ao despedimento sem justa causa e aviso prévio do contrato individual de trabalho e que são as que se contêm nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
Não tendo obtido deferimento, como se decidiu no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Junho de 2000, a arguição de nulidade suscitada pelo Ministério Público, veio este interpor recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse que se estribou nas alíneas b) e g) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pode ler-se no requerimento de interposição de recurso:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................
O presente recurso é interposto com fundamento nas alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15.11.
Por um lado, o douto Acórdão reformado faz tábua rasa do pressuposto fundamental em que assenta a tomada de posição do Plenário do Tribunal Constitucional e o douto Acórdão do TC de fls. 160, ao admitir um regime de vinculação laboral ao Estado, sem termo, regulado pela lei geral do contrato individual de trabalho, exorbitando da regulamentação especial e taxativa de tal vinculação, centrada na nomeação, no contrato administrativo e no contrato de trabalho com termo, em violação ao disposto no artº 47º, nº 2 da CRP.
Por outro, criando ‘ope iudicis’ uma realidade ‘sui generis’ a que chama de relação de emprego ‘atípica’ sem termo, em tudo semelhante, ponto por ponto, ao contrato individual de trabalho da lei geral da contratação laboral, aplicando indevidamente os artigos 12º e 13º do DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, ao declarar a ilicitude do despedimento e os efeitos dessa ilicitude, pressupõe o legitimar, por exclusiva iniciativa do julgador, de um regime de vinculação ao Estado, contra o estabelecido ‘ope legis’ relativamente ao especial regime de vinculação laboral à Administração Pública nas modalidades previstas no D.L.
427/89, de 07.12, artigos 3º e 14º).
O douto Acórdão em referência não aceita o pressuposto essencial de que parte o Plenário do Tribunal Constitucional ao considerar inconstitucional a conversão de contratos de trabalho a termo em contratos de trabalho sem termo, atendo o disposto no artigo 14º, nº 3 do DL nº 427/89, de 7 de Dezembro, dada a inadmissibilidade legal, como forma de contratação com o Estado, do contrato de trabalho sem termo previsto no regime geral da contratação laboral.
Em suma, o douto Acórdão desta Relação pretende alcançar o mesmo desiderato, relação de emprego sem termo, ‘ope judicis’, a partir de um inicial contrato de trabalho a termo que foi celebrado entre a A.. e o Estado, contra a interpretação claramente expendida pelo Tribunal Constitucional.
............................................................................................................................................................................................................................................’
O recurso foi admitido por despacho proferido em 5 de Julho de 2000 prolatado pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa.
2. Todavia, porque um tal despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº
3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que, ex vi do nº 3 do artº 3º do Código de Processo Civil, se imporá que, não sendo de conhecer de uma parte do recurso interposto (quer isso se aplique a um dos fundamentos do recurso, quer a uma parte do respectivo objecto), disso deva ser dado conhecimento ao impugnante, elabora-se o vertente despacho.
Na verdade, numa visão de primeira aparência, parece resultar que a decisão tomada no acórdão ora pretendido colocar sob a censura deste Tribunal é, em direitas contas, contrária àqueloutra tomada no Acórdão nº 73/2000.
É que, acolhendo este último a fundamentação carreada ao Acórdão nº
683/99, isso significa que fez sua a corte de argumentos aduzidos neste último, designadamente o que se contém nos seus pontos 24 a 27.
Do referido nesses mesmos pontos parece poder extrair-se que:
- não havendo qualquer previsão legal de contratos de trabalho com o Estado por tempo indeterminado, a aceitação de uma qualquer figura de relação laboral que, na prática e por via sucedânea, redundasse na manutenção do vínculo por tempo indeterminado, acarretaria, como consequência necessária, a contradição com a taxatividade legal das vias de acesso à função pública através de um novo modo de acesso de forma definitiva e tendencialmente perpétua, o que conferiria ao trabalhador, pelo menos, o gozo da protecção conferida aos restantes trabalhadores vinculados ao Estado por forma temporal indeterminada;
- essa aceitação prejudicaria o «direito de igualdade» no acesso à função pública, de que são titulares outras pessoas, potenciais candidatos a um lugar definitivo e sem termo, mas que não estão interessadas num contrato a termo certo;
- a criação de uma tal relação de emprego por tempo indeterminado iria ou poderia consequenciar que os quadros de pessoal pudessem, posteriormente, vir a ser ocupados a título definitivo pelos particulares sujeitos dessa relação, sem que tivesse havido, para tanto, qualquer precedência de concurso constitucional e legalmente exigido, com o que se violaria o nº 2 do artigo 47º da Lei Fundamental.
Ora, sucede que o acórdão intentado impugnar, conquanto aceitasse que não seria possível, em face da decisão já tomada pelo Tribunal Constitucional, a
«conversão» dos contratos com termo certo celebrados entre particulares e o Estado em contratos sem termo, e conquanto ainda aceitasse a impossibilidade legal, em face do ordenamento jurídico ordinário, de celebração de contratos sem duração determinada, o que é certo é que se não deixou de considerar que a relação laboral que foi criada entre o Estado e a então recorrente Maria Ermelinda Mixão Antunes era de perspectivar como uma relação atípica, não prevista na lei mas que, de todo o modo, ao menos quanto ao particular da sua cessação, haveria que ser regida pelas normas que dispõem sobre o regime da cessação do contrato individual do trabalho, fazendo-se referência expressa naquele aresto às normas sobre ‘despedimento, sem justa causa e sem aviso prévio’.
Em face desta perspectiva adoptada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão sub specie, necessariamente decorre que, não havendo justa causa para a cessação daquilo que foi designado como uma relação laboral atípica, não será possível à entidade empregadora - neste caso o Estado - operar uma tal cessação, sob pena de (como, aliás, traduziu a decisão tomada no mencionado aresto) o trabalhador poder exigir a sua reintegração no local de trabalho e de ser pago pelos vencimentos que, até à reintegração, deixou de receber.
Sendo assim, e sempre na esteira da aludida perspectiva, se e enquanto, da parte do trabalhador, não houvesse um comportamento passível de integração no conceito de justa causa, não poderia a entidade patronal Estado dar por finda, e de modo unilateral, a relação laboral atípica que se constituiu, a qual, desta sorte, tenderia a tornar-se tendencialmente perpétua ou de vínculo temporalmente indeterminado.
Daí que, como se disse, se afigure, em primeira aparência, que o decidido pelo acórdão de 10 de Maio de 2000 tenha desrespeitado o sentido e alcance do Acórdão nº 73/2000, o que, tem-no entendido este Tribunal, abre a via do recurso a que se reporta a alínea g) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, consequentemente não se vislumbrando, por ora, motivos para não conhecer do objecto do recurso fundado em tal normativo.
3. Outrotanto, porém, não sucede referentemente ao recurso ancorado na alínea b) daqueles número e artigo.
Na realidade, não só o requerimento de interposição do recurso não cumpre, minimamente que seja, qualquer das exigências dos números 1 e 2 do artº
75º-A da falada Lei nº 28/82, como ainda nem sequer faz qualquer menção a qualquer ou quaisquer normas (ou uma sua forma interpretativa) que teriam sido utilizadas no acórdão em apreço para caracterizar, do modo como foi caracterizada, a denominada relação laboral atípica e que haveria de ser regida, pelo menos no que concerne à sua cessação, pelas normas respeitante à cessação do contrato individual de trabalho (aliás, até se concede que é de difícil, se não impossível, o vislumbre, no acórdão recorrido dessas mesmas eventuais normas).
Neste contexto, não se conhecerá do objecto do recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
Notifique-se o recorrente do presente despacho com a advertência de que o poderá impugnar para conferência, em 10 dias, respeitantemente à parte em que se não toma conhecimento do objecto do recurso.
Não havendo reclamação, voltem os autos conclusos'.
Do transcrito despacho reclamou o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal para a conferência, aduzindo, em síntese:-
- o recurso previsto na alínea g) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82 pressupõe que o tribunal a quo tenha aplicado a norma ou a interpretação normativa que o Tribunal Constitucional havia precedentemente julgado desconforme à Lei Fundamental, razão pela qual, em determinados casos, poderá suceder que sejam lícitas dúvidas sobre se, ao menos numa análise liminar da questão, a interpretação levada a efeito pelo tribunal a quo coincide precisamente com aquilo que já foi objecto de julgamento por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa;
- por isso, é possível entender-se e justificar-se uma estratégia processual que passe pela subsidiária interposição do recurso, mas desta feita fundado na alínea b) do nº 1 daquele artº 70º, 'do qual se tomará conhecimento sempre que (...) seja necessário indagar se a inovatória dimensão ou interpretação da norma, realizada pelo tribunal ‘a quo’, não continua a padecer de inconstitucionalidade';
- no caso dos autos, esse elemento inovatório traduziu-se na circunstância de a Relação de Lisboa apelar a um 'insólito conceito de ‘relação laboral atípica’, de onde 'a natural dificuldade do recorrente em especificar qual o preceito ou preceitos legais em que se fundava tal ‘interpretação normativa’';
- o requerimento de interposição do recurso parece cumprir 'as exigências legais, ao especificar como interpretação inconstitucional, por violação do nº 2 do artigo 47º da Constituição da República Portuguesa, a que se traduz em aplicar à relação laboral ‘atípica’, alegadamente constituída com o Estado, um regime jurídico - alicerçado nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei
64-A/89 e 3º e 14º do Decreto-Lei 427/89- que se traduz em converter em permanente uma relação laboral precariamente constituída, a termo certo, inviabilizando a sua cessação por iniciativa da entidade empregadora, findo que seja esse termo, interpretando aqueles dois últimos preceitos legais em termos de ampliar o elenco de modalidades típicas de vinculação laboral à Administração Pública', sendo certo que, ainda que se entendesse que o ónus de indicação da norma ou da interpretação normativa não foi adequadamente cumprido, deveria o recorrente ser convidado a melhor precisar essa indicação.
Cumpre decidir.
2. Independentemente da questão de saber se, em face das notórias deficiências do requerimento de interposição do recurso, as mesmas poderiam ou não ser colmatadas após a prolação de despacho consubstanciador do convite a que se reportam os números 5 e 6 do artº 75º-A da Lei nº 28/82 e da indicação correcta que, eventualmente, viesse a ser feita após tal convite, o que é certo
é que se não pode sustentar que daquele requerimento (e, para o que neste ponto releva só interessará o seu passo onde foi dito que ' [p]or outro, criando ‘ope iudicis’ uma realidade ‘sui generis’ a que chama de relação de emprego ‘atípica’ sem termo, em tudo semelhante, ponto por ponto, ao contrato individual de trabalho da lei geral da contratação laboral, aplicando indevidamente os artigos
12º e 13º do DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, ao declarar a ilicitude do despedimento e os efeitos dessa ilicitude, pressupõe o legitimar, por exclusiva iniciativa do julgador, de um regime de vinculação ao Estado, contra o estabelecido ‘ope legis’ relativamente ao especial regime de vinculação laboral
à Administração Pública nas modalidades previstas no D.L. 427/89, de 07.12, artigos 3º e 14º', e isso já que as demais asserções ínsitas em tal requerimento unicamente podem alicerçar o recurso previsto na alínea g) do nº 1 do falado artº 70º) se extrai que a dita criação ope judicis constituiu uma interpretação normativa que, pelo seu carácter de todo em todo insólito ou inusitado, veio a surpreender o recorrente de sorte tal que o mesmo se haveria de considerar dispensado do ónus de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade.
Esta alegação, claramente, nunca foi expressa ou implicitamente equacionada no requerimento de interposição do recurso e, seguramente, para que a mesma pudesse vir a constar dos autos, não seria adequado lançar mão do meio a que aludem os mencionados números 5 e 6 do artº 75º-A.
Por este motivo não merece censura a decisão constante da parte final do despacho sob reclamação. Lisboa, 28 de Novembro de 2000 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida