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Proc. nº 549/99
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M..., SA, interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do acto do Ministro da Justiça que indeferiu o recurso hierárquico do despacho do Director-Geral dos Registos e Notariado, de 7 de Abril de 1995.
A recorrente havia reclamado perante o Notário do 6º Cartório Notarial do Porto da liquidação de emolumentos referente a uma escritura pública de alteração da denominação e do objecto da sociedade. Tendo a reclamação sido indeferida, a recorrente impugnou tal decisão junto da Direcção-Geral dos Registos e Notariado. O recurso hierárquico foi indeferido, por despacho do Director-Geral, de 7 de Abril de 1995, pelo que a recorrente interpôs de novo recurso hierárquico, agora para o Ministro da Justiça, que, através do acto contenciosamente impugnado, indeferiu o recurso (a notificação do despacho do Director-Geral dos Registos e Notariado referia que a impugnação de tal acto seria deduzida perante o Ministro da Justiça).
Tendo a entidade recorrida suscitado a questão prévia da incompetência do tribunal, a recorrente pronunciou-se no sentido da improcedência de tal questão.
O Ministério Público pronunciou-se, igualmente, no sentido da incompetência do Tribunal.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 16 de Janeiro de
1997, determinou a redistribuição dos autos pela 2ª Secção.
Feita a distribuição e produzidas as alegações, o Ministério Público teve de novo vista do processo, pronunciando-se no sentido da irrecorribilidade do acto do Ministro da Justiça impugnado, em virtude de tal acto não ser lesivo, por não definir qualquer situação jurídica (acto lesivo, e portando recorrível, seria o acto de liquidação dos emolumentos).
A recorrente, em resposta, sustentou a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, quando interpretado no sentido de 'estabelecer uma exclusividade do recurso jurisdicional quanto ao acto do Notário', por violação dos artigos 18º, 20º e 268º, nº 3, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 5 de Novembro de
1997, rejeitou o recurso, em virtude de o artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ao estabelecer a competência dos tribunais tributários de 1ª instância para apreciar os recursos dos actos de liquidação de receitas tributárias, excluir a possibilidade de recurso contencioso quando se impugna graciosamente o acto de liquidação.
2. A recorrente interpôs recurso do acórdão de 5 de Novembro de
1997 para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. Nas respectivas alegações, a recorrente sustentou a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, interpretado no sentido de apenas admitir o recurso imediato para o Tribunal Tributário de 1ª instância como meio único exclusivo de impugnação contenciosa da liquidação emolumentar, por violação dos artigos 18º e 268º, nº 4, da Constituição.
Foi junto aos autos um parecer de Mário Esteves de Oliveira, no qual se sustenta a recorribilidade do acto em questão.
O Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 12 de Maio de 1999, considerou que o artigo 62º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revogou o artigo 69º do Decreto-Lei nº 519-F2/79, que estabelecia uma reclamação necessária para o Notário e para o Director-Geral dos Registos e Notariado, pelo que o meio de impugnação da liquidação dos emolumentos seria o recurso para o Tribunal Tributário de 1ª instância, não sendo consequentemente recorrível o acto do Ministro da Justiça impugnado, em virtude de tal acto não ser lesivo (lesivo seria, eventualmente, o acto de liquidação de emolumentos, esse sim, portanto, recorrível).
4. M..., SA, interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de
12 de Maio de 1999, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (na interpretação acolhida no acórdão recorrido) e 92º, nº 2, 100º, 118º, nº 2 e
123º do Código de Processo Tributário.
A Relatora proferiu despacho notificando para alegações, suscitando, porém, a questão prévia do não conhecimento do recurso relativamente às normas dos artigos 92º, nº 1, 100º, 118º, nº 2 e 123º do Código de Processo Tributário, em virtude de a conformidade à Constituição de tais normas não ter sido questionada durante o processo.
A recorrente alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1ª - A Recorrente sustenta que apenas poderá existir uma diminuição do direito de recorrer contenciosamente contra actos da autoridade, consagrado no art. 268° n° 4 da Constituição, no caso de ser restrição ou limite consagrado expressamente por lei, que veicule ou se justifique num valor constitucionalmente atendível e que não ultrapasse o necessário para salvaguardar a protecção destes valores (art. 212° n° 3, art. 268° n° 4 e arts.
17° e 18° da CRP).
2ª - Assim, as diminuições ou limitações do acesso à justiça administrativa e fiscal devem, antes de mais, ser claras e precisas: ... devidamente formuladas pelo legislador por forma nítida e perceptível. Somente deste modo se poderá dar algum seguimento a um princípio 'pro actione' implicado na garantia constitucional. Afigurando-se, pelo contrário, desproporcionada a sanção da 'rejeição' com a consequência implicada da 'preclusão' dos direitos substantivos, aí, onde a exigência do pressuposto processual não tenha sido clara e manifesta.
3ª - O legislador poderia, porventura, ter dito, de uma forma clara e inequívoca, que a reacção contra as 'liquidações emolumentares' proferidas pelos Notários era única e exclusivamente a 'impugnação/recurso judicial' previsto no art. 62° nº1 - a) do ETAF (e não, também, as vias de impugnação que consagrou nas leis específicas sobre 'contas emolumentares'). Mas não o disse assim. Em lado nenhum. Apenas estatuiu que aos Tribunais Tributários de 1ª instância cabe conhecer dos
'recursos de actos de liquidação das receitas tributárias estaduais'. Tudo o resto, a partir do texto desta disposição, são apenas 'restrições' não escritas ..., que a jurisprudência invoca, agora, como que implícitas nesta norma ou no sistema.
4ª - Esta disposição, que é atributiva de competência jurisdicional, por si só, não impede que de tais actos (de liquidação de receitas) se possa recorrer na ordem hierárquica e que das decisões do Ministro da área administrativa respectiva caiba, depois, recurso contencioso para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos dos arts. 32° n° 2 c) do ETAF, conjugado com os arts.
92° n° 2, 100º n° 2 e 123° do Código de Processo Tributário.
5ª - Não é de modo nenhum clara a revogação total das normas específicas (arts.
69° do DL 519-F2/79 e 139° do DR 55/80) dos diplomas sobre orgânica e competência dos serviços notariais e sobre 'liquidações de contas emolumentares'
- na parte em que estatuem meios graciosos de impugnação. Pois que o ETAF trata, primordialmente, da orgânica e 'competência' do Tribunal, e não sobre outros pressupostos processuais, como a 'imediata recorribilidade do acto'. Sobre este ponto valerão, especialmente, as leis de processo contencioso, administrativo e/ou tributário (ou seja, hoje, e por enquanto, a 'LPTA' ou o
'CPT').
6ª - E em qualquer dos sistemas instituídos por estas duas ('LPTA' e 'CPT') leis de processo contencioso, o tipo ou categoria de actos como o do Ministro da Justiça, agora sub judice, seria uma categoria de acto plenamente recorrível: a) Na primeira (na lei do contencioso administrativo), porquanto teria de se partir, então, da admissão do pressuposto de estar em causa um 'acto administrativo respeitante a questão fisca' (art. 118º n° 3 do CPT): e, assim, o primeiro 'acto administrativo' proveio de órgão situado numa hierarquia e estava sujeito a recurso hierárquico prévio, dado não se tratar de competência
'exclusiva' ou 'reservada' ou 'delegada' a primeiramente exercida pelo Notário
(mas simplesmente 'separada'), sendo a resposta do Ministro, então, o 'acto plenamente recorrível' (art. 25° da LPTA). b) Na segunda - lei do contencioso tributário -, porquanto aí expressamente se consagra a opção do particular-contribuinte em, dentro dos respectivos prazos, ou impugnar logo judicialmente a liquidação {art. 123° do CPT) ou desta reclamar e recorrer graciosamente, cabendo depois, das decisões negativas, o respectivo 'recurso contencioso' - salvo se houver sido deduzida já impugnação judicial sobre a questão de fundo (arts. 92° n° 2 e 100° n° 2 do CPT). Não tendo sido deduzida ainda nenhuma 'impugnação judicial', a via de tutela judicial da pretensão mantém-se intocada, dentro dos prazos dos respectivos recursos.
8ª - Eram estes os sistemas que existiam na altura (1995), qualquer deles viabilizando o tipo de recurso 'sub judice': só o não admite uma terceira regra, um 'terceiro sistema', construído agora, não pela lei directamente, mas pela jurisprudência, ao aplicar a lei (art. 62° do ETAF), com pedaços desgarrados de um e de outro daqueles dois sistemas, quando conclui que da 'conta emolumentar' cabe logo a 'impugnação tributária' para tribunal, e somente esta impugnação, sem que a sua contestação imediata por via graciosa obste à 'consolidação jurídica' da decisão.
9ª - Por outro lado, não poderá ser considerado um 'acto meramente confirmativo' de outro anterior, quando nos dois actos os sujeitos não são os mesmos (Notário e Ministro da Justiça), e a fundamentação é muito diferente nos dois casos.
10ª - O entendimento ou regra segundo a qual o art. 62° n° 1 alínea a) do ETAF, sem mais, obriga a um recurso imediato da 'liquidação emolumentar' para o Tribunal Tributário de 1ª instância, como meio único e exclusivo de se atacar tal conta emolumentar, e sob pena da preclusão total da garantia de acesso à jurisdição administrativa e fiscal, e isto apesar daquilo que está disposto nos arts. arts. 69° do DL 519-F2/79 e 139° do DR 55/80 e sobretudo nos arts. 118° e
92° n° 2 e 100° n° 2 do Código de Processo Tributário - ofende a Constituição, no seus arts. 18° e 268° n° 4. Ou seja, essa interpretação da regra do art. 62° n° 1 a) - que daí extrai aliás o que não está lá expressamente dito e de forma inequívoca - não é conforme com a Constituição, nomeadamente com o verdadeiro princípio 'pro actione' postulado no art. 268° n° 4 e reforçado pela aplicação a esta garantia do regime consagrado no art. 18° da Lei Fundamental. Tem vindo a ser, na verdade, intenção do legislador constituinte acabar com autênticos 'alçapões' por onde se escapavam decisões da Administração sem possibilidades de um controlo jurisdicional, pretendendo-se antes oferecer uma efectiva tutela judicial para as relações jurídicas administrativas e fiscais. O mesmo é dizer, assegurando plenamente o direito a uma decisão de fundo sobre a relacão controvertida, que não encalhe liminarmente em 'labirínticos formalismos' - excepto os casos em que haja limites claramente estabelecidos pelo legislador e que de uma forma necessária e proporcionada veiculem uma salvaguarda a outros valores concretos constitucionalmente protegidos.
11ª - Do mesmo modo ofenderá o disposto nos arts. 13°, 18° e 268° nº 4 da CRP, a interpretação conjugada dos arts. 62° do ETAF e arts 92° n° 2, 100° nº 2, 118° nº 2 alínea a) e 123° nº 1 do CPT, segundo a qual já não é contenciosamente recorrível um acto que decidiu um recurso hierárquico interposto de 'acto materialmente tributário' (ou 'de liquidação de receitas fiscais') de que se não tenha deduzido ainda uma impugnação jurisdicional - quando tais actos, embora tributários, hajam sido praticados por administração não fiscal.
12ª - E, assim, violam ainda o princípio constitucional da igualdade (e o princípio da justiça e da proporcionalidade) as normas do art. 62° do ETAF e dos arts. 92° e 100° do Código de Processo Tributário quando interpretadas no sentido de que o
'sistema de alternatividade e livre opção' preconizado nestas últimas (100° nº 2 do CPT) se aplica apenas às relações jurídicas tributárias em que o particular-contribuinte seja destinatário de 'acto de liquidação tributária' emitido por órgãos da administração fiscal, e não também às relações jurídicas tributárias em que o particular-contribuinte é destinatário de um 'acto de liquidação tributária' mas emitido por outros órgãos do Estado. Nada há que substantivamente o justifique (tal diferença).
13ª - De facto, por força da própria 'natureza das coisas', da realidade institucional subjacente aos actos (substantivamente) tributários, deverá entender-se hoje que a garantia constitucional do acesso à justiça tributária abrange as situações de 'actos confirmativos' (tempestivamente provocados, por via de impugnação graciosa do acto confirmado) de actos de 'liquidação' ainda não judicialmente impugnados.
14ª - O sistema da 'alternatividade livre', mais abrangente para o exercício da garantia de recurso, que é desenhado nos arts. 92° e 100° do CPT , deverá, constitucionalmente, e na medida do possível, aplicar-se a todos os actos autoritários de 'liquidação de receitas', a que, de resto (cfr. arts. 71°, 95° do CPT), se aplica o Código: aos actos substantivamente tributários, de
'liquidação de tributos'.
15ª - De acordo com o princípio constitucional da igualdade perante a lei, o particular contribuinte deve gozar da mesma amplitude na garantia do recurso contra os 'actos de liquidação de receitas tributárias', ou 'actos substantivamente tributários', amplitude esta que abrange quer a impugnação directa do acto de liquidação quer também o recurso contra actos 'confirmativos'
(em resposta a meios graciosos tempestivamente interpostos) de actos primários ainda não jurisdicionalmente impugnados ...
16ª - Uma eventual restrição da garantia do recurso contencioso deve provir de lei expressa (o que não é o caso das 'liquidações emolumentares', pois o CPT estabelece expressamente e literalmente um só regime, sem distinções específicas; o mesmo acontecendo com o art. 62° do ETAF), e deve além disso ser justificada em 'razão institucional necessária' para proteger outro valor constitucional autonomamente atendível. . . sob pena da violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça (arts. 18° n° 2 e 268° n° 4 da CRP). O que não sucede no caso da regra agora invocada e aplicada.
17ª - Por outro lado, as noções de 'acto confirmativo' e de 'caso decidido' são noções 'constitucionalmente relevantes'. Ligadas à operacionalidade do conceito funcional de 'acto lesivo', tornam-se também, cada uma, em noção de recorte e alcance constitucional.
18ª - Assim, entender que o 'acto confirmativo' nunca é, por si, um 'acto lesivo' para efeitos da admissibilidade do recurso contencioso, é ofender o conteúdo da garantia constitucional de acesso à justiça tributária através do recurso contencioso.
19ª - Pelo contrário: o 'acto confirmativo' deve ser tomado como um verdadeiro
'acto que lesa direitos e interesses legítimos dos particulares' - para efeitos de preencher o pressuposto constitucional da garantia da recorribilidade contenciosa – em casos em que incida sobre um acto primário arguido de ilegal, mas ainda não impugnado em Tribunal antes só recorrido graciosamente no devido tempo ...
20ª - E em casos onde a situação inicial quanto às vias de recorribilidade não fosse, ao tempo, totalmente clara e incontroversa, e por isso a conduta adoptada por parte do particular recorrente não revele qualquer negligência em contestar a situação, nem lhe fosse manifestamente e claramente exigível, à data, uma outra opção processual ... Ora, deverá entender-se que em matéria de garantia de acesso à justiça administrativa, deverá imperar a chamada 'doutrina do acto claro' (utilizada, em vertente próxima, pelo Direito e Jurisprudência Comunitário ...): o que levará a que o ónus da exigibilidade de conduta específica processual se aplique a situações expressas e claras nas fontes normativas.
21ª - E, ainda, será 'acto confirmativo mas lesivo', em casos, em que a situação, a acrescer às anteriores, diga respeito a meros actos de 'liquidação de receitas tributárias', onde não se justifica substancialmente, pela natureza das coisas e do real equilíbrio e protecção de todos os interesses envolvidos, a restrição operada pelo efeito preclusivo implicado na noção.
22ª - Deste modo, é inconstitucional a norma do art. 62° nº 1 alínea a) do ETAF quando interpretada no sentido de o recurso ou a impugnação judicial, consagrados nos arts. 120° e 123° do CPT, não abranger nunca os casos de recurso de actos confirmativos, nomeadamente actos confirmativos das 'liquidações de receita emolumentar' ainda não impugnadas em Tribunal mas recorridas (e logo) graciosamente ... Na verdade, o 'acto de liquidação de receita emolumentar' não deve chegar a adquirir um estado jurídico de 'consolidação' e 'força de caso resolvido' ... enquanto for logo atacado graciosamente (e em tempo) pelo contribuinte e enquanto estiver a ser analisado pela Administração que o praticou. Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.Exas. mais doutamente suprirão: a) devem ser julgadas inconstitucionais as normas do art. 62° nº 1 alínea a) do ETAF e dos arts. 92° e 100° do CPT quando interpretadas conjugadamente no sentido de a possibilidade de recurso contencioso prevista contra actos confirmativos de actos primários de liquidação ainda não judicialmente impugnados, não abranger o caso em que os actos primários de liquidação de receita tributária provenham de órgãos do Estado não inseridos na DGI; b) deve ser julgada inconstitucional a norma do art. 62° nº 1 a) do ETAF quando interpretada no sentido de o recurso ou a impugnação judicial aí consagrados não abranger nunca os casos de recurso de 'actos confirmativos' , nomeadamente actos de confirmação das 'liquidações de receita emolumentar' ainda não impugnadas em Tribunal mas recorridas (de imediato) graciosamente ...
Em relação à questão prévia suscitada, a recorrente sustentou a sua improcedência, em virtude de a dimensão normativa impugnada abranger uma interpretação conjugada de todos os preceitos referidos (tratar-se-ia da interpretação do artigo 62º do ETAF, no sentido da irrecorribilidade do acto impugnado, o que implicaria a inaplicabilidade dos preceitos do Código de Processo Tributário).
A entidade recorrida não contra-alegou.
5. Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação A Delimitação do objecto do recurso
6. A recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional as normas contidas nos artigos 62º, nº 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 92º, nº 2, 100º, 118º, nº 2 e 123º do Código de Processo Tributário, afirmando que o fundamento normativo do acórdão recorrido é consubstanciado por uma interpretação conjunta de todos os preceitos e que suscitou a questão de constitucionalidade relativa aos artigos do Código de Processo Tributário nas alegações apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo.
Contudo, da transcrição da peça processual apresentada no tribunal a quo apenas resulta que a recorrente questionou a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 62º, nº 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, interpretada no sentido de impor 'um recurso imediato de liquidação emolumentar para o tribunal tributário de 1ª instância, como meio
único e exclusivo de se atacar tal conta emolumentar'. Por outro lado, verifica-se que a decisão que considerou, in casu, o acto ministerial impugnado contenciosamente irrecorrível fundou-se em tal dimensão normativa (considerando, concomitantemente, não ter aplicação à situação dos autos o disposto nos artigos
99º e 100º do Código de Processo Tributário, por tais preceitos só serem aplicáveis aos tributos liquidados e cobrados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos - tais preceitos não foram, portanto, aplicados pela decisão recorrida).
Assim, o objecto do presente recurso de constitucionalidade é constituído pela apreciação de conformidade à Constituição da norma contida no artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, interpretada no sentido de apenas admitir recurso contencioso do acto do notário que procedeu à liquidação de emolumentos, considerando-se, consequentemente, irrecorrível o acto proferido pelo Ministro da Justiça na sequência de impugnação hierárquica daquele acto inicial.
B Apreciação da questão de constitucionalidade normativa suscitada
7. O preceito impugnado tem a seguinte redacção: Artigo 62º
[Competência]
1. Compete aos tribunais tributários de 1ª instância conhecer: a) Dos recursos de actos de liquidação de receitas tributárias estaduais, regionais, locais e parafiscais;
(...)
O Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 12 de Maio de 1999, considerou que o artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ao consagrar a competência dos tribunais tributários de 1ª instância para conhecer dos recursos dos actos de liquidação de receitas tributárias estaduais, regionais, locais e parafiscais, revogou tacitamente
(atento o disposto no artigo 134º, nº 1, do mesmo diploma) os artigos 69º do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro, e 139º e 140º do Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro, que estabeleciam a reclamação e a impugnação hierárquica da decisão sobre a reclamação do acto de liquidação de emolumentos notariais (o tribunal invocou também o artigo 7º, nº 2, do Código Civil e, subsidiariamente, o artigo 11º do Decreto-Lei nº 154/91, para fundamentar a revogação daqueles diplomas).
Entendendo, como já se referiu, que os artigos 99º e 100º do Código de Processo Tributário não teriam aplicação na situação dos autos, o tribunal considerou que o acto ministerial recorrido foi proferido sobre um acto de liquidação que por falta de recurso para os tribunais tributários se consolidou na Ordem Jurídica com força de caso resolvido ou decidido.
O tribunal afirmou, também, que acto lesivo foi o acto de liquidação emolumentar, não o sendo, consequentemente, o acto do Ministro da Justiça que o confirmou. Uma vez que aquele acto era impugnável contenciosamente, o tribunal concluiu não se verificar qualquer violação dos artigos 18º e 268º, nº 4, da Constituição. Consequentemente, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso.
A recorrente sustenta que a interpretação do artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, acolhida pelo acórdão recorrido é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do disposto no artigo 268º, nº 4, da Constituição.
Apreciar-se-á, em primeiro lugar, a alegada violação do princípio da igualdade.
8. É verdade que o Código de Processo Tributário em vigor permite, relativamente
às receitas dos impostos em geral, a impugnação graciosa e, caso esta não seja procedente, a impugnação contenciosa dos actos proferidos em sede de reclamação ou recurso hierárquico. Cabe, porém, sublinhar que o ordenamento jurídico consagra, a propósito de várias matérias e no que respeita às garantias de defesa, soluções diversas das constantes do Código de Processo Tributário, uma vez que do princípio da igualdade não decorre que todas as receitas tributárias tenham de ter o mesmo regime impugnatório. Nomeadamente, o artigo 112º, nº 3, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (que consagra o efeito suspensivo do recurso hierárquico), afasta-se da norma do artigo 92º, nº 1, do Código de Processo Tributário (que consagra, genericamente, o efeito devolutivo do recurso hierárquico). Verificam-se, assim, diferenças de regime no âmbito do Direito Tributário que se inserem no exercício da liberdade de conformação legislativa, não se configurando, necessariamente, como arbitrárias, intoleráveis ou injustificadas, podendo, desse modo, o legislador, em face das diferentes matérias em causa, consagrar soluções diversificadas, desde que garanta o acesso à tutela jurisdicional efectiva.
Ora, a dimensão normativa impugnada não veda a possibilidade de impugnação contenciosa. Por outro lado, também não impede a impugnação graciosa. Apenas não admite o recurso contencioso do acto proferido em sede de impugnação hierárquica. Na medida em que o acto de liquidação pode ser de imediato impugnado contenciosamente, a norma em apreciação apenas nega, portanto, a possibilidade de impugnação contenciosa do acto de superior hierárquico. Nada impede, contudo, que o particular utilize concomitantemente as duas vias de impugnação (a solução em causa evita, aliás, o protelamento do acesso à tutela jurisdicional).
Trata-se, tão somente, da regulamentação do modo de impugnação contenciosa de determinada categoria de actos, que em nada discrimina os particulares, podendo estes, de acordo com a solução normativa questionada, interpor recurso contencioso logo do acto inicial de liquidação. Não se verifica, pois, qualquer violação do princípio da igualdade.
9. O que se deixa dito é, mutatis mutandis, aplicável quanto à alegada violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva.
A questão delineada pelo recorrente no que respeita à violação de tal princípio pressupõe que do nº 4 do artigo 268º da Constituição decorre a imposição de recurso contencioso das decisões tomadas no termo de recurso hierárquico.
No entanto, tal assim não acontece. O que a Constituição impede é que o legislador consagre soluções que obstem ou dificultem consideravelmente a reacção do particular na defesa, pela via contenciosa, dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Contudo, o legislador apenas terá de garantir a impugnação contenciosa dos actos que efectivamente lesem tais direitos ou interesses, não estando vinculado a referir o momento de lesividade à decisão confirmativa de um acto proferido na sequência da interposição de um recurso hierárquico
Este tem sido, aliás, o entendimento do Tribunal Constitucional quando procede à apreciação da conformidade à Constituição de normas que determinam a irrecorribilidade de actos sujeitos a recurso hierárquico necessário ou de actos confirmativos (cf., entre nós, os Acórdãos nºs 603/95 - Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38º vol., 41 e ss; e 431/99, de 30 de Junho
- inédito). No Acórdão nº 416/99 ( D.R., II Série, de 13 de Março de 2000) o Tribunal afirmou o seguinte: 'não sendo o direito de acesso à justiça e aos tribunais um direito absoluto, não existe qualquer contradição entre a garantia constitucional de acesso à justiça e a delimitação pelo direito ordinário dos pressupostos ou requisitos de natureza processual para efectivação dessa garantia'.
O nº 4 do artigo 268º da Constituição não impõe a consagração da impugnabilidade alternativa do acto de liquidação e do acto que o confirma. Apenas exige que o legislador consagre um mecanismo eficaz de impugnação contenciosa que permita a eliminação (se for o caso) do acto lesivo. A dimensão normativa em apreço, ao permitir a impugnação contenciosa do acto de liquidação, concretiza de modo adequado o disposto em tal preceito constitucional. Não se verifica, pois, qualquer restrição de um direito fundamental ou análogo que fosse vedado pelo artigo 18º da Constituição.
10. Do que se disse, resulta igualmente que a norma do artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não viola o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, tendo sido demonstrado que tal norma não procede à restrição de um qualquer direito, liberdade ou garantia ou direito análogo (e tendo presente que o Tribunal Constitucional, como se referiu, tem considerado não ser desproporcionada a irrecorribilidade de actos sujeitos a recurso hierárquico necessário ou confirmativo), a alegada violação do princípio da proporcionalidade perde o seu fundamento.
11. Finalmente, no sentido que agora se propugna foi já proferido o Acórdão nº 211/2000 (ainda inédito).
III
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na interpretação acolhida na decisão recorrida, negando, consequentemente, provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 UCs. Lisboa, 5 de Julho de 2000 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, pois concederia provimento ao recurso, por entender estar ferida de inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 20º, nº 1 e 268º, nº
4, conjugados com o artigo 18º, todos da Constituição, a norma do artigo 62º, nº
1, a), do ETAF, com a dimensão normativa com que foi aplicada na decisão recorrida, 'ou seja a interpretação da alínea a) do nº 1 do artº 62º do ETAF segundo a qual da liquidação de emolumentos cabe única e exclusivamente recurso para o tribunal tributário de 1ª instância, assim ficando precludida a possibilidade de se sindicarem os actos administrativos proferidos pelos superiores hierárquicos que indeferiram os recursos graciosos interpostos daquele acto de liquidação'. Sobre a mesma matéria e com a mesma sociedade recorrente, relativamente também à norma do nº 62º, nº 1, a), da ETAF, 'interpretada no sentido de apenas admitir recurso contencioso do acto do notário que procedeu à liquidação de emolumentos, considerando-se, consequentemente, irrecorrível o acto proferido pelo Ministro da Justiça na sequência de impugnação hierárquica daquele acto inicial', talqualmente se diz no acórdão, juntei Declaração de Voto no acórdão nº
356/2000, que aqui repito e dou por integralmente reproduzida.
Guilherme da Fonseca