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Processo nº 325/96
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A Freguesia de Lever, do concelho de Vila Nova de Gaia, instaurou no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto contra a Freguesia de Crestuma, do mesmo concelho, uma acção, com processo ordinário, destinada a obter a demarcação entre as duas freguesias. Para o efeito, juntou fotocópia de um 'documento existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Ordem de Cristo, Tombo da Comenda de Santo André de Lever – Cod. 283)', alegando 'que ambas as autarquias sempre aceitaram a demarcação [dele] constante'. O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acolhendo a oposição deduzida pela ré na contestação, julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer deste pedido e absolveu-a da instância, por considerar que decorre do disposto no artigo 1º da Lei nº 11/82, de 2 de Junho, que é à Assembleia da República que cabe a competência para fixar os limites das circunscrições territoriais. Inconformada, a Freguesia de Lever recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 23 de Janeiro de 1996, julgou improcedente o recurso. Conforme decidiu, 'A única questão posta à cognição deste Supremo Tribunal pela Agravante Freguesia de Lever é a de ‘saber – como ela própria se exprime –,’se a competência para dirimir conflitos quanto à linha divisória da circunscrição territorial de duas freguesias compete aos Tribunais ou à Assembleia da República’.
'A posição da recorrente, alicerçada aliás em douto parecer que fez juntar aos autos, parte, salvo o devido respeito, de um pressuposto errado, que haveria de inquinar toda a sua argumentação jurídica, qual é o de que agravante e agravada pretendem uma definição dos respectivos direitos e interesses legalmente protegidos (através da definição concreta dos respectivos limites territoriais) tanto quanto se encontrariam em conflito sobre eles pois se arrogam, respectivamente, território uma à outra. Ora, a composição de conflitos de interesses cabe aos Tribunais, nos termos do nº 2 do art. 205 da Constituição da República Portuguesa, sendo que, porque tais interesses são públicos, é aos Tribunais Administrativos que compete a resolução, nos termos do art. 3º do ETAF, por se tratar de uma questão emergente de uma relação jurídica administrativa não confiada a outro Tribunal e porque o contencioso administrativo comporta, a título subsidiário, os meios do processo civil, a acção de demarcação regulada no C.P.C é um meio idóneo e mais apto para resolver o presente conflito. Se estivesse correcta, juridicamente, esta enunciação do problema, nada teríamos a opor à intervenção de um tribunal para resolver o conflito das partes em confronto, freguesias de Lever e Crestuma. Efectivamente, só um tribunal poderia exercer a função de o compor, independentemente e acima dos contendores pois se trataria claramente do exercício da função judicial. Porém, salvo o devido respeito, não é assim. As freguesias de Lever e Crestuma, independentemente das justas dúvidas que tenham à cerca dos respectivos limites territoriais, e da boa fé em as resolver, por mais razões históricas ou legais que invoquem para honestamente se arrogarem fronteiras, a verdade é que (...) não detêm direitos sobre elas, como não detêm um direito sobre a sua própria existência ou sobre os seus limites territoriais.
(...) hoje (...) compete à A.R. o regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais, nos termos da al. n) do artigo 167 CRP, inclusivamente fixação dos limites quando forem duvidosos, igualmente de acordo com a Lei 11/82 citada (...). O poder adequado a exercitar, não é o jurisdicional claramente pela inexistência de direitos ou obrigações a conferir ou interesses a ressalvar pois os pretensos não existem na esfera jurídica das autarquias, mas o político e o legislativo pois só destes é apanágio a definição do interesse nacional.
(...) Ora, nos termos do art. 4 do ETAF, estão excluídos da jurisdição administrativa, além do mais, as acções que tenham por objecto actos políticos ou legislativos, alíneas a) e b) do nº 1; por maioria de razão isto significa que os Tribunais Administrativos não têm atribuições sequer para julgar, definindo, o conteúdo de um acto de tais naturezas.'
2. Recorreu então a Freguesia de Lever para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a 'fiscalização concreta de constitucionalidade' da norma 'contida no art. 1º (na parte ainda em vigor, após a revogação parcial decorrente do estatuído no art. 14º da Lei nº 8/93, de 5 de Março) da Lei nº 11/82, de 2 de Junho, a qual, interpretada nos termos constantes do douto aresto recorrido, padece de inconstitucionalidade, por violação dos preceitos dos arts. 20, nº 1, 167, al. n) e 205, nº 1, da C.R.P., como a Recorrente sustentou na alegação' para o Supremo Tribunal Administrativo.
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações.
A recorrente, em resumo, sustentando a inconstitucionalidade da interpretação da
'norma do art. 1º da Lei nº 11/82, com o sentido que lhe deu o aresto sub iudice
(...), por violação do art. 205-1, CRP', em primeiro lugar, porque a demarcação pretendida se traduz num acto juridiscional, da competência dos tribunais e não da Assembleia da República; em segundo lugar, porque, tendo já a Assembleia da República manifestado 'não ter vontade de se ocupar, por via legislativa, do caso que se discute (...) a falada negação de competência traduz-se numa verdadeira denegação de justiça, violadora do preceito do art. 20-1' e do nº 4 do artigo 268º da Constituição; finalmente, porque 'tal interpretação dá origem a que duas freguesias exerçam as suas atribuições e competências sobre uma mesma faixa territorial, infringindo o próprio conceito de autarquia local vertido no art. 237-2 da CRP'. Explicitou, então, que a 'interpretação desconforme com a Constituição da República' que o Supremo Tribunal Administrativo fez da norma contida no artigo
1º da Lei nº 11/82 consistiu em 'sustentar que a expressão ‘fixação dos limites’ se reporta, também, a ‘fixação dos limites quando forem duvidosos’ '. A Freguesia de Crestuma contra-alegou, pronunciando-se no sentido da não verificação de qualquer inconstitucionalidade.
3. Corridos os vistos e substituído o relator, que cessou funções neste Tribunal, cumpre decidir, começando por verificar se estão reunidos os pressupostos para que se possa conhecer do objecto do recurso. A norma cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional declare é, como consta do requerimento de interposição do presente recurso, a norma 'contida no art. 1º (...) da Lei nº 11/82, de 2 de Junho (...) interpretada nos termos constantes do douto aresto recorrido (...) como a Recorrente sustentou na sua alegação' no recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo. Há, pois, que recorrer a essas alegações para determinar a norma que constitui o objecto do presente recurso, uma vez que, no requerimento de interposição, essa identificação só é feita por remissão. Interpretando as referidas alegações, concluímos que a recorrente afirma que seria inconstitucional interpretar o artigo 1º citado no sentido de que 'atribui
à Assembleia da República competência para dirimir conflitos de dúvidas (ou de certezas incompatíveis) na delimitação de autarquias locais – nomeadamente de freguesias', porque se lhe estaria a atribuir competência para a prática de um acto próprio da função jurisdicional, constitucionalmente reservada aos tribunais. Note-se que a recorrente refere 'delimitação' no sentido de 'demarcação' no terreno.
4. A razão determinante da rejeição do recurso no Supremo Tribunal Administrativo foi a aplicação do regime estatuído no artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, em que o Supremo Tribunal Administrativo se baseou para julgar incompetentes os tribunais administrativos. É, todavia, inegável que há uma relação lógica necessária entre a interpretação atribuída por este Tribunal ao artigo 1º da Lei nº 11/82, no sentido de caber à Assembleia da República a competência para decidir a questão, e a consequente exclusão da competência dos tribunais administrativos, determinada pelo artigo 4º do Estatuto. Tem, assim, utilidade o conhecimento da norma que foi extraída pelo Supremo Tribunal Administrativo do artigo 1º da Lei nº 11/82 e por ele aplicada; mas já não pode o Tribunal Constitucional pronunciar-se, nem sobre a correcção do meio processual escolhido, nem sobre a competência dos tribunais administrativos, uma vez que o objecto do presente recurso se circunscreve à apreciação da eventual inconstitucionalidade da norma identificada.
5. Coloca-se a questão de saber se o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de que foi interposto o recurso de constitucionalidade, aplicou a norma do artigo 1º da Lei nº 11/82 com o sentido que a recorrente acusou de ser inconstitucional. Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo, considerando não ser, sequer, possível um conflito de direitos em matéria de fronteiras autárquicas, a resolver pelos tribunais, interpretou e aplicou a norma contida no artigo 1º da Lei nº 11/82 no sentido de atribuir competência à Assembleia da República para delimitar autarquias, definindo – teoricamente – as respectivas fronteiras, mesmo na hipótese de serem duvidosas – teoricamente – os limites. A recorrente, por seu lado, acusa de ser inconstitucional a norma do artigo 1º da referida Lei nº 11/82 quando interpretada no sentido de atribuir competência
à Assembleia da República para, no terreno, proceder à demarcação (à delimitação concreta) da fronteira das duas autarquias, demarcação que, na prática, levanta dúvidas. Entende o Tribunal Constitucional que o Supremo Tribunal Administrativo, ao julgar-se incompetente nos termos descritos, aplicou, ainda que implicitamente, a norma impugnada pela recorrente, cabendo, portanto, conhecer do objecto do presente recurso.
6. E a verdade é que é materialmente inconstitucional essa norma, segundo a qual cabe à Assembleia da República proceder à demarcação (delimitação no terreno) de duas freguesias, por ofensa do princípio da tipicidade das competências constitucionais dos órgãos de soberania. Com efeito, da simples leitura dos artigos 110º, nº 2, conjugado com os artigos
161º a 163º da Constituição (no seu texto actual, correspondente aos artigos
113º, nº 2 e 164º a 166º vigentes à data da propositura da acção e das decisões entretanto proferidas; note-se que, para o que agora interessa, é irrelevante a versão tomada como aplicável), maxime do artigo 161º, decorre claramente a impossibilidade de reconduzir a competência para demarcar a qualquer das competências constitucionalmente atribuídas à Assembleia da República. Ora, como se sabe, 'pelo menos em relação aos órgãos de soberania, as competências legais, ou seja, as competências atribuídas por via de lei, devem ter fundamento legal expresso. É o que se passa, por ex., com as competências legais da AR (art.
161º/o) (...)' (J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, 1998, pág. 491). Não é, pois, constitucionalmente admissível que a Lei nº 11/82, de 2 de Junho, sem permissão constitucional expressa, venha atribuir à Assembleia da República a competência que neste recurso está em apreciação.
Nestes termos, decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma, constante do nº 1 do artigo 1º da Lei nº
11/82, de 2 de Junho, na interpretação segundo a qual cabe à Assembleia da República a competência para proceder a demarcação da fronteira de duas freguesias, por violação do princípio da tipicidade das competências constitucionais da Assembleia da República, decorrente da conjugação dos artigos
110º, nº 2 e 161º a 163º da Constituição; b) Em consequência, julgar procedente o recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado no que respeita à questão de constitucionalidade. Lisboa, 20 de Dezembro de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração de voto) Guilherme da Fonseca Bravo Serra (com a declaração de voto idêntica à aposta pela Exmª Relatora) Luís Nunes de Almeida Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
Pronunciei-me no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, por entender que a norma que foi impugnada pela recorrente, com o sentido que considera inconstitucional, não foi, nem sequer implicitamente, aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido, o que retira utilidade ao julgamento do presente recurso.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza