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Processo nº 500/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. C... reclama para este Tribunal do despacho da Desembargadora relatora, de 23 de Abril de 1999, que não admitiu o recurso que, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, interpôs do acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de Março de 1999, para apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 69º, nº 1, alínea a), e 71º, nº 1, alíneas a) e b), do Regime do Arrendamento Urbano, que, em seu entender, violam o artigo 44º da Constituição. Neste acórdão, a Relação negou provimento ao recurso interposto pela reclamante da sentença proferida na acção de despejo por si proposta contra R... e RP..., que julgou improcedente o pedido de denúncia do arrendamento do 1º andar do prédio da Avenida dos Bombeiros Voluntários, nº 20-A, no Estoril, formulado com a invocação de que necessitava da casa para sua habitação, já que, embora resida na Alemanha, pretende regressar a Portugal para aqui passar a viver.
2. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação.
3. Os reclamados, ouvidos na Relação, pronunciaram-se no sentido de que o recurso para o Tribunal Constitucional não deve ser admitido e de que a reclamante deve ser condenada, por litigância de má fé, em multa e no pagamento de uma indemnização a favor dos reclamados, 'em quantia a fixar segundo o prudente arbítrio do julgador [...], mas nunca inferior a 250.000$00.
É que – disseram – a reclamante, 'ao invocar o artigo 44º da Constituição da República Portuguesa, sabe muito bem que a matéria provada nos autos demonstrou exactamente o oposto' e que 'a sua pretensão de recurso para o Tribunal Constitucional é totalmente sem fundamento', por isso que, com tal comportamento, 'está a entorpecer a acção da justiça, protelando o trânsito em julgado da decisão' e a causar 'prejuízos e danos patrimoniais e não patrimoniais vários aos réus'.
4. Ouvida neste Tribunal sobre o pedido de condenação em multa e indemnização por litigância de má fé, a reclamante disse, em síntese, que 'o pedido formulado não tem razão de ser e a sua fundamentação distorce o que verdadeiramente está em causa', não tendo 'razão de ser o apelo à ideia de entorpecimento da justiça e da criação de um novo grau de jurisdição ilicitamente aproveitado'.
5. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
6. A reclamação só é de deferir no caso de se verificarem os pressupostos do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – recte, no caso de a reclamante ter suscitado perante a Relação, que é o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 69º, nº 1, a), e 71º, nº 1, alíneas a) e b), do Regime do Arrendamento Urbano, e de o ter feito durante o processo (ou seja, antes de proferido o acórdão de que recorre) e de modo processualmente adequado, em termos de a Relação estar obrigada a decidir essa questão de inconstitucionalidade (cf. o nº 2 do artigo 72º daquela lei); e, no caso, bem assim, de a Relação, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade, ter aplicado aquelas normas como ratio decidendi do julgamento que proferiu.
Pois bem: não restam dúvidas de que a Relação aplicou as referidas normas legais no julgamento do recurso. De facto – depois de referir que o mencionado artigo 71º, nº 1, alíneas a) e b), faz depender a denúncia do arrendamento do facto de o senhorio ser proprietário do prédio há mais de 5 anos e de não ter casa própria ou arrendada, na área da comarca onde se situa o imóvel ou nas suas limítrofes, há mais de 1 ano – a Relação acrescentou que a ora reclamante 'é comproprietária do prédio onde se situa o 1º andar, objecto da denúncia, desde 13 de Maio de 1983, e, por isso, há mais de 5 anos, tendo em atenção a data da propositura da acção, não tendo qualquer outra casa própria ou arrendada, quer na comarca, que nas suas limítrofes'. E, no tocante ao referido artigo 69º, nº 1, alínea a), a Relação, depois de referir que, nos termos deste preceito legal, o senhorio pode denunciar o contrato 'quando necessite do prédio para sua habitação ou para nele instalar a família', sublinhou que, 'para se efectivar o direito à denúncia, a necessidade efectiva, séria, actual e inadiável, terá de ser demonstrada, não se contentando a lei com o mero desejo de habitar a casa arrendada'. E, depois de dar como assente a ausência de prova sobre os factos alegados pela reclamante capazes de consubstanciar a referida necessidade da casa para sua habitação, a Relação ponderou que isso conduz 'à inevitável conclusão de que apenas existe um desejo da Autora [...] em habitar a casa, na altura em que se desloca a Portugal e aqui permanece, ou um mero pretexto para que a mesma seja desocupada, o que não poderá ser confundido com efectiva e real necessidade, objectivamente apreciável, em função das suas condições de vida e carências'. A reclamante não suscitou, porém, a inconstitucionalidade das ditas normas legais perante a Relação. Ao menos, não o fez de forma processualmente adequada, em termos de a Relação ficar obrigada a conhecer dessa questão de constitucionalidade. Na verdade, nas alegações então apresentadas, a reclamante – depois de dizer que
'pretende, e tem o direito, a regressar a Portugal e fixar residência no arrendado'; que 'não tem há mais de 1 ano casa própria ou arrendada, seja na localidade do Estoril, seja no concelho de Cascais ou outro ponto do país'; e que 'tem, assim, a invocada necessidade de habitação' [cf. as conclusões c), d) e e)] – acrescentou, na alínea f) das mesmas conclusões, que, 'ao entender diversamente, a douta sentença em recurso violou o disposto nos artigos 69º, nº
1, alínea a), e 71º, nº 1, alíneas a) e b), do RAU e artigo 44º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa'.
Significa isto que a ora reclamante – que, segundo diz, no caso a inconstitucionalidade arguida tiver sido cometida pela sentença, 'só poderia reagir em sede de recurso' – imputou a violação do artigo 44º, nºs 1 e 2, da Constituição, à própria sentença de que então recorria, e não aos artigos 69º, nº 1, alínea a), e 71º, nº 1, alíneas a) e b), do Regime de Arrendamento Urbano, que essa sentença aplicou no julgamento da acção de despejo. E essas normas legais, ao invés de as considerar violadoras da Constituição, teve-as a reclamante por violadas pela referida sentença. Foi, de resto, a questão de saber se a sentença então sob recurso violava o artigo 44º, nºs 1 e 2, da Constituição – e não a questão de saber se este preceito constitucional era violado por aquelas normas legais – que a Relação decidiu, tendo-lhe dado resposta negativa. Escreveu-se a esse propósito, no acórdão, que 'não está vedado à apelante o direito de regressar a Portugal, de férias, ou a título definitivo'; 'o que está vedado à apelante, no âmbito e na economia desta acção e por manifesta falta de prova da necessidade que a lei impõe que seja alegada e demonstrada, é obter a denúncia do contrato de arrendamento [...]'.
Como o ora reclamante não suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que constituem objecto do recurso – a saber: das normas constantes dos artigos 69º, nº 1, alínea a), e 71º, nº 1, alíneas a) e b), do regime do Arrendamento Urbano – e o recurso de constitucionalidade da alínea b) do nº 1 do referido artigo 70º não pode ter por objecto a decisão recorrida, em si mesma considerada, mas apenas normas legais que ela tenha aplicado, não obstante a sua inconstitucionalidade ter sido suscitada perante o tribunal recorrido, falta um dos pressupostos do recurso interposto. Por isso, a reclamação, que visava conseguir a admissão do recurso que o despacho reclamado não admitiu, tem que ser indeferida.
7. Ex abundante, sempre se dirá que, ainda que, acaso, se verificasse o pressuposto da suscitação da questão da inconstitucionalidade durante o processo, a reclamação devia ser, na mesma, indeferida; é que o recurso é manifestamente infundado, e essa circunstância é motivo de indeferimento da reclamação, como se decidiu no acórdão nº 294/99 (publicado no Diário da República, II série, de 15 de Julho de 1999). Efectivamente, este Tribunal, no seu acórdão nº 174/92 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 417, página 196), já decidiu que o exigir-se do senhorio a prova da necessidade da casa para sua habitação, para o efeito de denunciar o arrendamento, não viola o artigo 44º, nº 1, da Constituição. Escreveu-se aí, entre o mais: 'exigir a prova da necessidade da casa para habitação do senhorio não impedia a mudança de residência de um local para outro do território nacional, nem tornava o exercício do correspondente direito particularmente oneroso. De facto, exigir a prova da necessidade da casa não era fazer uma exigência excessiva ou desproporcionada; tratava-se, antes, de exigir a prova de um facto, com vista a evitar fraudes ou abusos – o que era uma exigência a todos os títulos razoável'. Ora, a reclamante, ao invocar perante a Relação a violação da mencionada norma constitucional pela sentença da 1ª instância, não aduziu um único argumento capaz de sustentar esse seu ponto de vista. Limitou-se a dizer que, achando-se
'constitucionalmente declarados e garantidos' 'os direitos de deslocação, fixação e regresso'; e sendo, por isso, livre 'a escolha do local de habitação';
'o senhorio que pretende denunciar um contrato de arrendamento para habitação própria não tem que provar a necessidade de ir viver para certo local: o que tem que provar é que, indo para certo local, tem necessidade de certa casa'.
8. Por último: improcede o pedido de condenação da reclamante como litigante de má fé.
É que, o carácter manifestamente infundado do recurso não autoriza a afirmação – que, de resto, os reclamados nem sequer intentam provar – de que a reclamante, ao recorrer e reclamar, está, conscientemente, a entorpecer a acção da justiça.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos:
(a). indeferir a reclamação;
(b). condenar a reclamante nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 27 de Outubro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida