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Proc. nº 249/94
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. C... interpôs recurso contencioso para o Supremo Tribunal Administrativo de despacho do Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros de
26 de Junho de 1991. Tal despacho negara provimento ao recurso hierárquico que tinha sido interposto do despacho do Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros de 13 de Março de 1991. Este último, por sua vez, considerando a doutrina do parecer nº 4/91 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República – homologado por despacho do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, de 12 de Março de 1991 (e publicado no D.R., II série, de
7 de Maio de 1991) - , havia indeferido, 'por não se verificar comprovado o cômputo de tempo indispensável exigido pela lei', o requerimento de 7 de Novembro de 1990 de atribuição ao recorrente da subvenção mensal vitalícia prevista no artigo 24º da Lei nº 4/85, de 9 de Abril. Requerimento no qual, por seu turno, o ora recorrente pedira a contagem para tal efeito do tempo durante o qual exerceu as funções de Governador de Macau. A 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 8 de Fevereiro de
1994, negou provimento ao recurso. Quanto à questão de constitucionalidade, apoiou-se, no essencial, na seguinte fundamentação:
É, pois a situação do governador de Macau substancialmente diferente da do ministro do Governo da República, pelo que o tratamento consagrado no art. 24º nº 1 da Lei nº 4/85, ao não contemplar o governador de Macau, tem o seu fundamento material bastante, de maneira a que se não possa considerar postergado ou afrontado o art. 13º da C.R.P..
2. Inconformado com esta decisão, C... interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto nos artigos 280, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Como o requerimento de interposição do recurso não satisfazia os requisitos previstos no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente foi convidado, no tribunal recorrido, a indicar os elementos previstos nesse preceito legal. Na resposta a tal convite, indicou que: o 'a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie
é o artigo 24º, nº 1 da Lei 4/85, de 9 de Abril'; o 'a norma violada é o nº 1 do Artigo 13º da Constituição da República Portuguesa'; e o 'a questão da inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento de recurso e alegações do recorrente'. Posteriormente, nas alegações do recurso de constitucionalidade, apresentou as seguintes conclusões:
1ª) A Lei nº 4/85 representa o cumprimento parcial da imposição constitucional constante do artº 120º da CRP, nela se regulando o estatuto remuneratório dos titulares de diversos cargos políticos e o apoio público aos mesmos após a cessação das respectivas funções;
2ª) O regime constante da Lei nº 4/85 fundamenta-se no reconhecimento do prejuízo que o exercício de funções políticas pode causar, no plano das respectivas carreiras profissionais, aos titulares de cargos políticos, e constituem seus objectivos, no tocante ao apoio público após a cessação de funções, a dignificação do seu estatuto e a possibilidade de um reingresso na vida civil compatível com esta;
3ª) O conceito de cargo político constante do artº 120º da CRP abrange todos os cargos aos quais está constitucionalmente confiado o exercício da função política;
4ª) O ordenamento jurídico de Macau é autónomo relativamente à ordem jurídica portuguesa, e nele o EOM tem natureza de lei fundamental, não vigorando a CRP no Território senão na medida em que é por aquele recebida;
5ª) O EOM tem, simultaneamente, natureza de lei constitucional da República;
6ª) O cargo de Governador de Macau tem natureza híbrida, porquanto é, do mesmo passo, órgão de governo próprio do Território e órgão constitucional da República, que representa em Macau os órgãos de soberania, com exclusão dos tribunais;
7ª) Em função dessa natureza híbrida, certos aspectos do estatuto do cargo de Governador estão subtraídos à competência dos órgãos legislativos da República - como é o caso do seu estatuto remuneratório - mas nos demais aspectos, a sua natureza de cargo político vincula o legislador português, por força do artº
120º da CRP, a regular o respectivo estatuto, na medida necessária à uniformização do âmbito de regulamentação dos diversos cargos políticos;
8ª) O princípio da igualdade impõe a proibição do arbítrio no exercício da função legislativa e determina a proibição de discriminações não baseadas numa diferenciação objectiva das situações materiais objecto de regulamentação, ou que não sejam necessárias, adequadas e proporcionais à medida da diferença dessas situações;
9ª) O principio da proporcionalidade, nas suas vertentes da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, tem uma função ansilar relativamente ao princípio da igualdade, na medida em que se há-de recorrer
àquele para avaliar se as diferenciações de tratamento são admissíveis face à distinção das situações materiais subjacentes;
10ª) Do ponto de vista do estatuto jurídico dos cargos de membro do Governo e de deputado, previstos no artº 24º, nº l, da Lei nº 4/85, e do cargo de Governador de Macau, a distinção existente é no sentido de uma maior responsabilidade política deste último;
11ª) Do ponto de vista do objectivo de apoio público aos titulares de cargos políticos após a cessação das respectivas funções - objectivo prosseguido pela Lei nº 4/85 - não existe distinção entre a situação do cargo de Governador de Macau e dos cargos enunciados no 24º, nº 1, deste diploma;
12ª) A distinção existente ao nível dos respectivos estatutos remuneratórios durante o exercício de funções tem o seu fundamento na natureza de órgão de governo próprio de Macau de que o cargo de Governador se reveste, mas não tem relevância do ponto de vista do estatuto após a cessação dessas funções, em que a natureza de cargo constitucional sobreleva a anterior;
13ª) A diferenciação de tratamento operada pelo artº 24º, nº 1, da Lei nº 4/85 entre o Governador de Macau e os cargos aí previstos não é adequada e proporcional à distinção dos estatutos jurídico-políticos subjacentes;
14ª) O artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucionalº 24º, nº 1, da Lei nº 4/85 ofende, por isso, o princípio da igualdade, consagrado no artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucionalº 13º da CRP.'.
O Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, por sua vez, apresentou contra-alegação, na qual concluiu: A - O recurso para o Tribunal Constitucional previsto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da C.R.P. e 70º, nº lº alínea b), da Lei nº 28/82, só é admissível se a decisão de que se recorre não admitir recurso ordinário; B - Do acordão de 8/2/94 da lª Secção do STA cabia recurso ordinário para o Pleno da Secção, nos termos do artigo 24º, alínea a), do Dec.-Lei nº129/84, de
27 de Abril - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - recurso esse que não foi interposto; C - Não é, pois, admissível recurso, para o Tribunal Constitucional, do referido acordão, por não estar verificado o pressuposto da exaustão dos recursos ordinários, o que determina o não conhecimento do recurso; D - Nem a Constituição nem a Lei adoptaram qualquer fórmula geral relativa a uma noção de cargo político; E - Nos diplomas editados em execução do disposto no artigo 120º da Constituição, o legislador tem optado por enunciar, em relação a cada uma das matérias disciplinadas (controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos, crimes de responsabilidade, incompatibilidades, estatuto remuneratório), por enunciar taxativamente os cargos abrangidos pelas respectivas normas, variando assim o respectivo âmbito subjectivo de aplicação que, nuns casos é mais amplo, noutros, mais restrito; F - No que respeita ao Estatuto Remuneratório (Lei nº 4/85, alterada pela Lei nº
16/87) o artigo 1º faz uma enumeração geral dos cargos abrangidos, procedendo depois, nos vários títulos em que o diploma se divide, a restrições do âmbito subjectivo de aplicação, nomeadamente no que se refere à atribuição da subvenção mensal vitalícia. (Artº 24º) G - Desta delimitação resulta que apenas têm direito a tal subvenção os membros do Governo, os Deputados à Assembleia da República e os Juízes do Tribunal Constitucional que não sejam magistrados de carreira. H - No que respeita à espécie do tempo contados para efeitos de computo do período exigido como pressuposto de atribuição da subvenção mensal vitalícia, considera-se, em benefício dos Deputados, o tempo de serviço no exercício de funções de Governador e Vice-governador Civil. I - A opção pela instituição deste regime fechado, quanto à enunciação de cargos e quanto ao tempo de serviço contável para efeitos da atribuição da subvenção vitalícia, é perfeitamente legítima, na falta de norma constitucional que estabeleça uma noção geral de cargo político. J - E nem a finalidade visada por aquele diploma - apoio público aos titulares de cargos políticos após a cessação de funções - através da instituição de uma medida de segurança social que acresce aos regimes normais de aposentarão ou reforma,- obsta que o legislador pondere, em face do estatuto de cada cargo político, os que devem beneficiar de tal medida, incluindo uns e excluindo outros. L - O artigo 24º da Lei nº 4/85, ao não incluir o Governador de Macau - a par de outros cargos de conteúdo político e mesmo alguns orgãos constitucionais - não faz mais do que reconhecer a especificidade dos respectivos ‘estatutos’; M - Tal exclusão - a do cargo de Governador de Macau - não constitui tratamento diferenciado que acarrete a inconstitucionalidade daquela norma. N - Na verdade, o princípio constitucional da igualdade não proíbe que, por lei, se estabeleçam distinções, desde que apoiadas em fundamento material bastante segundo critérios objectivos constitucionalmente relevantes; O - No caso concreto, a especificidade do ‘Estatuto’ do Governador de Macau, ou seja, o complexo de normas do E.O.M. que fixam as suas atribuições, competências, poderes, deveres, remunerações etc. torna a respectiva situação substancialmente desigual em relação às dos cargos previstos na Lei nº 4/85, pelo que, o tratamento consagrado no artº 24º, nº 1, da mesma Lei, não só tem fundamento material suficiente, como é perfeitamente proporcional à distinção dos estatutos jurídico-políticos em presença. P - O artº 24º, nº 1, da Lei nº 4/85 não ofende, assim. o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º da constituição na interpretação jurisprudencial dominante. Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada nestas contra-alegações, veio o recorrente responder que ela deve ser considerada improcedente, sustentando, em conclusão, que:
1. Constitui pressuposto do recurso de constitucionalidade previsto no artº
70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82 o prévio esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam;
2. Para que tal pressuposto se tenha por verificado não é necessário que se verifique a efectiva utilização das vias de recurso ordinário, bastando que a possibilidade de utilização desses recursos esteja afastada pelo decurso do prazo;
3. Não tendo o recorrente interposto recurso da decisão recorrida para o pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA dentro do prazo legal, encontram-se esgotados os recursos ordinários que no caso cabiam, pelo que, no caso vertente, se encontra satisfeito o pressuposto constante do artº 70º, nº 2 da lei nº 28/82.
3. Devido a alteração na composição do Tribunal, mudou o relator do presente processo e completaram-se os vistos legais. Não logrando obter vencimento quanto
à questão de constitucionalidade, o relator foi novamente substituído. Cumpre, agora, apreciar e decidir, começando por tratar da questão prévia suscitada.
II Fundamentos A Questão prévia
4. O presente recurso vem interposto ao abrigo dos artigos 280, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. São requisitos específicos desse tipo de recurso de constitucionalidade: a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente; a arguição da inconstitucionalidade normativa durante o processo; o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso cabiam. No presente caso, não se questiona o preenchimento dos dois primeiros requisitos. A norma do artigo 24º, nº 1 da Lei 4/85, de 9 de Abril, interpretada no sentido de não se dever contar o tempo de serviço como Governador de Macau para efeitos de atribuição da subvenção mensal vitalícia prevista nessa norma, foi efectivamente aplicada na decisão recorrida, como sua ratio decidendi; e por outro lado, a inconstitucionalidade dessa norma foi adequadamente suscitada pelo recorrente, durante o processo.
É, todavia, controvertido o problema de saber se o último requisito mencionado está preenchido. A questão prévia a decidir consiste, assim, em saber se o recorrente esgotou todos os recursos ordinários que no caso cabiam antes de interpor o recurso de constitucionalidade. Ora, sobre o sentido do 'esgotamento dos recursos ordinários' exigido pela lei podia identificar-se, antes da introdução no artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional de um novo nº 4 (pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), uma divergência na jurisprudência deste Tribunal. Tal divergência incidia sobre a questão de saber se se podiam considerar esgotados os recursos ordinários apenas quando o recorrente se tivesse efectivamente prevalecido de todos os recursos legalmente admissíveis (não se podendo recorrer da decisão apenas por já não existir mais nenhum recurso previsto na lei), ou se bastava que a decisão se tivesse tornado definitiva por razões processuais como a renúncia do recorrente a interpor recurso ou o decurso do prazo de recurso sem a sua interposição. Para uma posição (a perfilhada no Acórdão nº 8/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., 1988, p. 1065 e ss.; ver também Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em processo civil, 2ª ed., Lisboa, 1994, p. 332), deveria dispensar-se a exigência de efectiva utilização de todos os recursos previstos na lei. Considerar-se-iam, pois, esgotados os recursos ordinários também quando não pudesse já interpor-se recurso por ter havido renúncia, por ter decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou quando não pudessem tais recursos ter seguimento por razões de ordem processual. Segundo esta posição, a ratio essendi da exigência de esgotamento dos recursos ordinários residia num objectivo de economia processual, que levava a exigir que se obtivesse sobre a questão de constitucionalidade, antes da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, uma decisão definitiva, no sentido de insusceptível de recurso – não sendo possível interpor recurso de constitucionalidade de decisões que ainda pudessem ser objecto de um recurso cuja resolução pudesse vir a tornar desnecessária a intervenção do Tribunal Constitucional. Para outra posição (seguida no Acórdão nº 282/95, D.R., II série, de 24 de Maio de 1996), só deveriam considerar-se esgotados os recursos ordinários quando para essa decisão já não estivesse previsto na lei recurso ordinário, não sendo de considerar a renúncia a este, o decurso do prazo sem a sua interposição, ou outras razões processuais, e antes se exigindo que o recorrente fizesse efectiva utilização dos recursos legalmente previstos. Para esta perspectiva, o requisito
'esgotamento dos recursos ordinários', previsto para o recurso do referido artigo 70º, nº 1, alínea b), significava a necessidade de obter não só uma decisão irrecorrível (definitiva), mas também uma decisão produzida pelo tribunal na posição mais elevada na hierarquia judicial, para que se encontre legalmente previsto um recurso naquele tipo de processo, atento o seu valor e os outros factores determinantes da admissibilidade de recurso – uma decisão que constituísse, neste sentido, a última palavra possível segundo o esquema de recursos previsto na lei sobre a questão de constitucionalidade, antes da intervenção do Tribunal Constitucional. Ora, a alteração introduzida na Lei do Tribunal Constitucional pela Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro, veio explicitamente resolver a questão no primeiro dos sentidos referidos - o perfilhado pelo Acórdão nº 8/88, citado (e consagrado já no artigo 29º, nº 2, do Decreto-Lei nº 503-F/76, de 30 de Junho - Estatuto da Comissão Constitucional; para mais indicações, podem consultar-se os citados Acórdãos). Na verdade, segundo o artigo 70º, nº 4 da Lei do Tribunal Constitucional, na redacção introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro:
Entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários, nos termos do nº
2, quando tenha havido renúncia, haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual. Nos termos desta norma devem, portanto, considerar-se esgotados os recursos ordinários se o recorrente já não puder, na data em que interpôs recurso de constitucionalidade, interpor o recurso ordinário que coubesse no caso concreto, por ter deixado decorrer o respectivo prazo. A referida divergência jurisprudencial sobre o sentido do requisito 'esgotamento dos recursos ordinários' encontra-se hoje, pois, superada, no sentido de ser bastante que se esteja perante uma decisão definitiva, por exemplo, por o recorrente ter deixado decorrer o prazo para interposição dos recursos ordinários, não tendo, portanto, utilizado efectivamente todos os recursos que para o caso a lei preveja. Tendo o recurso em causa sido interposto ainda em 1994, não pode, todavia, deixar de se interpretar o artigo 70º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional em sentido idêntico ao que viria a ser explicitamente consagrado. Na verdade – independentemente da questão de saber se tal posição, adoptada no Estatuto da Comissão Constitucional e defendida no citado Acórdão nº 8/88, é ou não de preferir de iure condendo –, ela veio, como se disse, a ser consagrada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, devendo considerar-se o novo nº 4 do artigo 70º, introduzido na Lei do Tribunal Constitucional por aquele diploma, como norma interpretativa do direito anterior, que visou pôr fim à referida divergência jurisprudencial, fixando, consequentemente, o sentido do texto legislativo de modo inequívoco, e preterindo a outra interpretação sustentada por parte da jurisprudência. Há, assim, que averiguar se, no caso vertente, são de considerar esgotados os recursos ordinários, seja por não caber recurso do acórdão recorrido, seja por,
à data em que foi interposto o recurso de constitucionalidade, já se ter esgotado o prazo para interpor o recurso ordinário previsto na lei.
5. O presente recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto de um Acórdão proferido pela 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 8 de Fevereiro de 1994, que negou provimento ao recurso interposto por C... do despacho do Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, de 26 de Junho de 1991. Este despacho, por sua vez, havia negado provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros de 13 de Março de 1991, que indeferiu o requerimento do recorrente a solicitar que lhe fosse contado, para efeitos de atribuição da subvenção mensal vitalícia prevista no artigo 24º, nº 1, da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, o tempo durante o qual exerceu as funções de Governador de Macau. O Acórdão recorrido foi, pois, proferido em recurso directamente interposto para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, pelo que, nos termos do artigo
24º, alínea a), do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), cabia recurso desse Acórdão para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Em consonância com este artigo 24º, alínea a), do citado diploma, o artigo 103º, alínea a), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), restringe a irrecorribilidade dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo àqueles que decidam em segundo grau de jurisdição – o que não foi o caso.
6. O prazo de interposição do recurso de constitucionalidade era, em 1994, de oito dias (artigo 75º, nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional), contado nos termos gerais do Código de Processo Civil (artigos 56º, nº 1 daquela lei e artigo 144º deste Código), isto é, continuamente, mas com suspensão 'durante as férias, domingos, sábados e dias feriados' (citado artigo 144º, nº 2). Por sua vez, o prazo para a interposição do recurso para o Pleno, previsto no artigo 24º, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e regulado nos artigos 102º e segs. da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, tinha a mesma duração (artigo 102º da referida Lei de Processo, que remete para o Código de Processo Civil, e artigo 685º, nº 1, deste Código) -
'o prazo de recurso, mesmo para o Tribunal Pleno, é (...) de oito dias a contar da notificação da decisão' (Artur Maurício/Dimas de Lacerda/Simões Redinha, Contencioso Administrativo, 2ª ed., Lisboa, 1987, nota 4, ao referido artigo
102º). A notificação do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de Fevereiro de 1994 teve lugar por carta registada enviada em 11 de Fevereiro do mesmo ano e é de presumir realizada 'no terceiro dia posterior ao do registo ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja' (artigo 1º, nº 3, do Decreto-Lei nº 121/76, de 11 de Fevereiro, e, agora, artigo 254º, nº 2, do Código de Processo Civil), ou seja, em 14 de Fevereiro de 1994. E, portanto, o prazo para interposição de recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo (artigos 102º e 103º, alínea a) da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 685º, nº 1 do Código de Processo Civil), que começou a correr no dia imediato ao da notificação (15 de Fevereiro de 1994), esgotou-se em 24 de Fevereiro de 1994. Ora, o recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto no dia 2 de Março de 1994 - tendo, aliás, nos autos sido liquidada a multa prevista no artigo
145º, nº 5 do Código de Processo Civil, que permite a prática do acto processual até ao terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo. Será que este recurso, interposto depois de ter decorrido prazo de interposição do recurso ordinário, se pode considerar tempestivo? A seguir-se a referida posição, consagrada no Acórdão nº 8/88 - segundo a qual se acham esgotados todos os recursos ordinários também quando haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição –deve entender-se, numa aplicação analógica do artigo 75º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que, nesses casos, nas palavras de Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em processo civil, cit., pág. 332), 'o prazo para interpor o recurso de constitucionalidade só começa a correr, após o termo do prazo para interpor o recurso ordinário que no caso coubesse', e que não foi interposto. Assim sendo, dúvidas não restam sobre a tempestividade do recurso de constitucionalidade interposto em 2 de Março. E também sobre a circunstância de este recurso ter sido interposto já depois de esgotado (em 24 de Fevereiro) o prazo para interpor o recurso ordinário para o Pleno da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo. Pelo que, à data da interposição do recurso de constitucionalidade, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de Fevereiro de 1994 era já uma decisão definitiva, para a qual tinham sido, no sentido referido (correspondente ao actual artigo 70º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional), esgotados todos os recursos ordinários. Desatende-se, portanto, a questão prévia relativa ao esgotamento dos recursos ordinários, suscitada pelo recorrido.
7. Uma outra questão prévia refere-se ao interesse processual do recorrente na procedência do recurso. Na verdade, a decisão recorrida negou provimento ao recurso interposto por C... do despacho do Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, de 26 de Junho de 1991, que havia negado provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros de 13 de Março de 1991, que indeferiu o requerimento do recorrente no qual este solicitava que lhe fosse contado, para efeitos de atribuição da subvenção mensal vitalícia prevista no artigo 24º, nº 1, da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, o tempo durante o qual exerceu as funções de Governador de Macau. O objecto do presente recurso de constitucionalidade é, justamente, constituído pela referida norma do artigo 24º, nº 1 da Lei 4/85, de 9 de Abril, interpretada no sentido de não se dever contar o tempo de serviço como Governador de Macau para efeitos de atribuição da subvenção mensal vitalícia prevista nessa norma. Assim, diz o artigo 24º, nº 1, da citada Lei nº 4/85, na sua redacção originária:
Os membros do Governo, os deputados à Assembleia da República e os juízes do Tribunal Constitucional que não sejam magistrados de carreira têm direito a uma subvenção mensal vitalícia desde que tenham exercido os cargos ou desempenhado as respectivas funções após 25 de Abril de 1974 durante 8 ou mais anos, consecutivos ou interpolados. Esta norma foi, todavia, alterada pela Lei nº 26/95, de 1 de Agosto, alargando o tempo de exercício de funções exigido para 12 anos, consecutivos ou interpolados, e acrescentando-se ao elenco de cargos políticos cujo exercício confere direito os Ministros da República, o Governador e os secretários adjuntos de Macau.
É o seguinte o texto daquele artigo 24º, nº 1, alterado pela Lei nº 26/95: Os membros do Governo, os Ministros da República, os Deputados à Assembleia da República, o Governador e secretários adjuntos de Macau e os juízes do Tribunal Constitucional que não sejam magistrados de carreira têm direito a uma subvenção mensal vitalícia, desde que tenham exercido os cargos ou desempenhado as respectivas funções, após 25 de Abril de 1974, durante 12 ou mais anos, consecutivos ou interpolados. Poderia, assim, pensar-se que, por virtude da alteração da norma que serviu de base à decisão recorrida – e ao despacho de indeferimento do requerimento em que se solicitava a contagem, para efeitos de atribuição da subvenção mensal vitalícia, do tempo de exercício das funções de Governador de Macau - , o presente recurso perdeu utilidade, ou que desapareceu o interesse processual do recorrente. Todavia, assim não é. Em primeiro lugar, intervindo o Tribunal Constitucional no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade para decidir recursos de decisões judiciais, é claro que a revogação ou alteração da norma que serviu de base a essas decisões, só por si, subsistindo a decisão recorrida, é inapta a produzir a perda de interesse na apreciação da questão de constitucionalidade e na sua decisão, com repercussão no processo concreto (mesmo o interesse na fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas revogadas tem, aliás, sido reconhecido em diversos casos pelo Tribunal Constitucional). Há, pois, logo por esta razão, que apreciar o presente recurso, pois ele respeita a uma decisão concreta, que subsistirá no ordenamento jurídico, ainda que o recorrente venha a conseguir, posteriormente, como consequência da alteração legislativa de 1995, alcançar o efeito útil pretendido com o requerimento. Em segundo lugar, deve reconhecer-se que, no presente caso, não se pode desde já reconhecer, sem mais, que o simples facto de o Governador de Macau ter passado a constar entre os cargos políticos cujo exercício confere direito a uma subvenção mensal vitalícia garanta claramente ao recorrente a produção do efeito visado com o requerimento indeferido pelo despacho do Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros de 13 de Março de 1991 – isto, mesmo considerando uma aplicação de tal normativo a titulares de cargos políticos que cessaram funções anteriormente a 1995 (veja-se o Acórdão deste Tribunal nº 448/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., 1993, págs. 691 e segs.; cfr. também o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 50/96, publicado no D.R., II série, de 21 de Julho de 1998). Assim sendo – e independentemente da questão de saber se o recorrente poderá, na sequência de novo requerimento, vir a obter o reconhecimento do direito à subvenção mensal vitalícia por aplicação das normas introduzidas pela Lei nº
29/95 (cfr., aliás, o Acórdão deste Tribunal e o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República por último citados), não prejudicada pela decisão do presente processo –, não pode afirmar-se que o interesse processual na apreciação do presente recurso tenha desaparecido, por o efeito útil visado com o requerimento que deu origem ao presente processo estar garantido. Subsistindo no ordenamento jurídico a decisão judicial que negou provimento ao recurso do ora recorrente na sequência do indeferimento do seu requerimento pelo Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, há que apreciar o presente recurso de constitucionalidade.
B A questão da inconstitucionalidade do artigo 24º, nº 1, da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, por eventual violação do artigo 13º da Constituição
8. Resulta dos autos que o sentido normativo concreto cuja constitucionalidade é questionada é o de o exercício do cargo de Governador de Macau não poder ser considerado para efeitos do cômputo do tempo necessário à atribuição de uma subvenção vitalícia pelo exercício de cargo público, não se adicionando ao tempo de exercício dos cargos públicos referidos no artigo 24º da Lei nº 4/85, de 9 de Abril.
A não inclusão do tempo de exercício do cargo de Governador de Macau no cômputo do tempo para efeitos de atribuição de uma subvenção vitalícia viola efectivamente o artigo 13º da Constituição? Poderão ser válidos os argumentos da remissão daquela matéria para o espaço de livre escolha do legislador ou existirão razões diferenciadoras do referido cargo relativamente às situações previstas na lei para o exercício de outros cargos públicos?
Na verdade, o Tribunal Constitucional só tem admitido a violação do princípio da igualdade quando entre situações abstractamente comparáveis não exista qualquer circunstância razoavelmente justificadora da diferenciação ou quando se trate de matérias em que deva prevalecer a margem de liberdade de opção do legislador.
Todavia, no caso dos autos, como se verá, não existe qualquer razão decisiva para não assegurar ao cargo de Governador de Macau igual protecção jurídica.
9. Em primeiro lugar, não é admissível que o legislador possa escolher livremente, de modo absoluto, quais os cargos públicos cujo tempo de serviço entre no cômputo do tempo necessário à atribuição de subvenção vitalícia. A liberdade de escolher está condicionada e limitada pela própria ratio legis. Com efeito, se a razão de ser da norma é a protecção dos titulares de cargos públicos pelos inconvenientes que as funções públicas poderão acarretar para a continuidade e o desenvolvimento normal das suas carreiras profissionais, como expressão de protecção da própria função, então a determinação do elenco dos cargos públicos a que tal direito é atribuído está determinada pela essencialidade, na perspectiva pública, dos mesmos cargos e pela possibilidade de tal prejuízo. Não existe, assim, liberdade de escolha ou de exclusão de cargos que substitua a ratio legis pela vontade arbitrária do legislador. Ora, o cargo de Governador de Macau partilha com os outros cargos públicos enunciados no artigo 24º da Lei nº 4/85 da mesma necessidade de protecção no que diz respeito à compensação pelas desvantagens da interrupção de carreiras do seu titular. E tal como nos outros cargos aquela necessidade de compensação é justificada pelo próprio interesse público de protecção do cargo, devido à sua essencialidade para o Estado Português.
10. Por outro lado, não são sustentáveis os argumentos que invocam a especificidade do cargo, como razão suficiente para a diversidade legal de tratamento. Assim, não seria procedente o argumento de que o Governador de Macau se rege por legislação específica e é detentor de um estatuto próprio. Um tal argumento, apoiado na diversidade do complexo normativo (o Estatuto Orgânico de Macau) que rege o cargo de Governador de Macau, não logra esbater a arbitrariedade de uma diversidade de tratamento. Uma tal perspectiva não só faz derivar a diferenciação de regimes de um cargo de uma pura razão normativo-formal, sem qualquer substancialidade, relativamente a situações idênticas regidas por outro complexo normativo, como não considera o facto de o próprio Estatuto Orgânico de Macau equiparar o Governador de Macau aos Ministros do Governo da República.
11. Também não será de considerar o facto de o Governador de Macau exercer as suas funções fora do território nacional, ser pago pelo Orçamento do Território e ter um regime remuneratório específico. Essas especificidades não se podem repercutir na contagem do tempo para atribuição de subvenção vitalícia, em que não está em causa qualquer relação compensatória (ou contrapartida) com a remuneração auferida, mas sim com a interrupção de carreiras. Aliás, no caso concreto, não está sequer directamente em causa a atribuição de uma subvenção vitalícia pelo exercício do cargo de Governador de Macau mas apenas a contagem do tempo do exercício desse cargo para efeitos de atribuição da subvenção fundamentalmente em razão de outros cargos exercidos anteriormente.
Deste modo, o elenco de especificidades existentes não é suficientemente decisivo para tornar objectivamente razoável, e não arbitrário, o diferente tratamento concedido ao cargo de Governador de Macau, no que respeita à contagem do tempo condicionante da atribuição de pensão vitalícia. Rejeitados todos os argumentos favoráveis à compatibilidade da norma em crise com o princípio da igualdade, impõe-se a conclusão de que tal norma contraria o princípio da igualdade, ínsito no artigo 13º da Constituição, ao não permitir, sem justificação pertinente, que o exercício do cargo de Governador de Macau seja relevante para efeitos do cômputo do tempo de serviço pressuposto da atribuição de subvenção vitalícia aos titulares de cargos públicos.
III Decisão
12. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Desatender a questão prévia suscitada pelo recorrido; b. Julgar inconstitucional o artigo 24º, nº 1, da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, na medida em que não contempla a contagem do tempo de serviço prestado como Governador de Macau para efeito de atribuição da subvenção mensal vitalícia nele prevista; c. Determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 13 de Julho de 1999 Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa (vencido quanto à questão prévia) DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à questão prévia relativa à interpretação dada ao nº 4 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que entendo deveria ter sido observado na redacção vigente à data da interposição do recurso e não à luz do texto resultante da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(que, assim, não tomo por norma interpretativa). Perfilharia, assim, a tese professada no acórdão nº 282/95 (Diário da República, II Série, de 24/5/96) e, consequencialmente, não tomaria conhecimento do objecto do recurso, por não considerar verificado o pressuposto do prévio esgotamento de todos os recursos ordinários que ao caso cabiam. Vítor Nunes de Almeida (voto a decisão, mas com diferente fundamentação, conforme declaração que junto).
DECLARAÇÃO DE VOTO Votei a questão prévia do esgotamento dos recursos ordinários não obstante ter subscrito na 1ª Secção, o Acórdão n.º 282/95, por entender que a norma do n.º 4 do artigo 70º da LTC tem natureza interpretativa. Quanto ao mérito, votei a decisão mas com fundamento em argumentos que não assentam especifica e exclusivamente no princípio da igualdade. Na verdade, entendo que a norma do artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, na interpretação de que o tempo de exercício do cargo de Governador de Macau, não pode ser considerado para efeito do cálculo da subvenção vitalícia pelo exercício de cargo público, viola o artigo 50º, n.º 2, da Constituição. A não contagem de tal tempo de serviço iria redundar em prejuízo do respectivo titular quanto a benefícios sociais a que ele tivesse direito relativamente a outros cargos públicos, exercidos ou a exercer, prejuízos esses que o n.º 2 do artigo 50º proíbe, ao determinar que 'ninguém pode ser prejudicado na sua colocação, no seu emprego, na sua carreira profissional ou nos benefícios sociais a que tenha direito, em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos' Neste enquadramento, o princípio da igualdade, na medida em que a discriminação que a norma em análise acolheu não se afigura arbitrária tal como se afirmou no voto de vencido do Conselheiro Mota Pinto, surge apenas em segunda linha, em reforço da conclusão obtida: é contrário ao sentido da norma do n.º 2 do artigo
50º que o desempenho de cargos políticos coloque quem os exerce ou exerceu em posição de desfavor perante os restantes cidadãos. Paulo Mota Pinto (vencido quanto à alínea b) e , consequentemente, quanto à alínea c), nos termos da declaração de voto que junto).
Declaração de voto Votei vencido quanto ao fundo da questão, em conformidade com o projecto de acórdão que apresentei, e com os fundamentos que se seguem:
1. A inconstitucionalidade material da norma do artigo 24º, n.º 1 da Lei 4/85, de 9 de Abril, interpretada no sentido de não se dever contar, para efeitos de atribuição da subvenção mensal vitalícia prevista nessa norma, o tempo de serviço como Governador de Macau, é sustentada pelo recorrente com fundamento na violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República. É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92 e 210/93, publicados, no Diário da República, respectivamente, I série, de 3 de Março de 1988, II série, de 1 de Março de 1993 e II série, de 28 de Maio de 1993). Tolera, pois, o princípio da igualdade, a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob uma ou mais perspectivas, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante. Por outras palavras, dir-se-á que a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de poder considerar-se a justificação a partir de tal perspectiva como fundamento razoável, constitucionalmente relevante, para a distinção. Significa isto, aplicado ao presente caso, que não há que controlar se a diferenciação de tratamento operada pelo artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85 entre o cargo de Governador de Macau e os cargos políticos nessa lei previstos se afigura como a melhor solução, considerando a distinção de funções desempenhadas no exercício desses cargos. A meu ver, é legítimo ao legislador, ao prever os pressupostos das subvenções de titulares de cargos políticos, optar, até por razões financeiras e de segurança jurídica, pela instituição de um regime próprio de enunciação taxativa desses cargos que conferem direito a uma determinada subvenção – ou cujo tempo de exercício deve ser contado para esse efeito. Aliás, não existe uma norma constitucional que estabeleça uma noção geral de cargo político, ou, sequer, que imponha a atribuição da subvenção mensal vitalícia aos titulares desses cargos. A finalidade que se visou alcançar com a Lei 4/85, de 9 de Abril – que entendo como o apoio público aos titulares de cargos políticos após a cessação de funções, por forma a possibilitar a manutenção de um padrão digno de vida (instituindo uma medida de segurança social que acresce aos regimes normais de aposentação ou reforma) – não obsta, assim, a que o legislador pondere, em cada momento e em face de cada cargo político, quais os que devem beneficiar de tal medida, incluindo uns e excluindo outros, e quais os pressupostos (designadamente, em termos de tempo de exercício de funções) para a concessão das subvenções a atribuir.
2. O artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, ao não incluir o Governador de Macau – tal como outros cargos de conteúdo político, que vieram a ser incluídos em 1995
(como, por exemplo, o cargo de Ministro da República) –, pode alicerçar-se justamente na especificidade do respectivo cargo, especificidade, esta, que é de molde a constituir justificação razoável, constitucionalmente relevante, para a distinção de tratamento introduzida no exercício da referida liberdade de ponderação do legislador. Na verdade, a meu ver, não pode negar-se a especificidade do cargo e das funções de Governador de Macau, em relação aos cargos previstos no texto originário da Lei n.º 4/85. Antes do mais, tal 'situação especial' decorre da existência de um complexo de normas próprio, contido em diploma que não é uma lei interna (o Estatuto Orgânico de Macau), pelo qual se fixam as atribuições, competências, poderes, deveres, remunerações etc., do cargo em causa, e adequado àquilo que a própria Constituição designa, no artigo 292º, n.º 1, como a 'situação especial' do território de Macau. Além disso, e diferentemente do que acontece com todos os outros cargos referidos no artigo 24º, n.º 1, as funções do Governador de Macau não são exercidas no território nacional (cfr. os artigos 5º e 292º da Constituição). Por outro lado, os vencimentos dos titulares do cargo em causa não são pagos pelo Orçamento Geral do Estado, também diversamente do que acontece em todos os outros casos referidos na citada norma – especificidade que pode ser relevante
(dir-se-ia mesmo, que normalmente será relevante), aos olhos do legislador, como justificação para a delimitação dos cargos cujo exercício confere o direito a uma subvenção mensal vitalícia. Neste contexto, cumpre notar, ainda, que a especificidade do Governador de Macau (mesmo à luz da finalidade de apoio público aos titulares de cargos políticos após a cessação de funções) resulta do próprio valor da remuneração que lhe era atribuída, se comparada com a dos titulares de cargos políticos em Portugal – assim, por exemplo, enquanto o vencimento de um Ministro do Governo Português era desde 1 de Outubro de 1989 de
522400$00 (e o do Primeiro-Ministro 602700$00), o vencimento mensal do Governador fora fixado já pela Lei nº 9/87/M, de 10 de Agosto em 48000 patacas macaenses (ultrapassando, pois, 800000$00 mesmo tomando por base uma cotação da pataca de 17$00), vindo a ser fixado em 1990 (Lei nº 10/90/M, de 6 de Agosto), com o recorrente ainda em funções, em 70000 patacas (1190000$00, à mesma cotação). E, como se não bastasse, verifica-se a circunstância de, no caso do Governador de Macau, não estar em causa um titular de órgão de soberania da República, ao contrário também do que acontecia com todos os restantes titulares de cargos políticos referidos na norma em questão. O controlo da solução normativa à luz do princípio da igualdade não podia, a meu ver, afirmar a 'arbitrariedade da diversidade de tratamento' ignorando a clara relevância substancial, para uma definição de limites das possibilidades de conformação legislativa, de todos ou de alguns destes dados. Tal evidente relevância (por exemplo, da diferença de remunerações) à luz da ratio da subvenção mensal vitalícia não se deixa infirmar, ou, sequer, diminuir, nem através da delimitação de tal razão da lei (por exemplo, por forma a considerar apenas elementos posteriores ao termo do exercício das funções) contrapondo-a à
'vontade arbitrária' do legislador (quod erat demonstrandum?), nem pela alusão, aparentemente complementar, a uma distinção entre 'atribuição de uma subvenção vitalícia pelo exercício do cargo de Governador de Macau' e 'contagem do tempo do exercício desse cargo para efeitos de atribuição da subvenção fundamentalmente em razão de outros cargos exercidos anteriormente' – distinção, esta, que não é, ela sim, não só formal (pois, como é óbvio, em ambos os casos o que está directamente, e não apenas 'fundamentalmente', em causa é a relevância do exercício do cargo de Governador de Macau para a atribuição da subvenção mensal vitalícia) como ilógica (não se vêem razões para que o tempo de exercício do cargo seja relevante, não conferindo o exercício de tal cargo o direito à subvenção mensal vitalícia). Rejeito uma compreensão do princípio constitucional da igualdade eliminadora da liberdade de conformação legislativa na delimitação dos cargos cujo exercício conta para atribuição de subvenção mensal vitalícia, que leva a justiça constitucional a substituir-se ao legislador na ponderação da 'melhor' solução jurídica – e não apenas a determinar o seu 'espaço de conformação' através da definição de fundamentos constitucionalmente relevantes (neste sentido
'razoáveis') para o tratamento desigual. De tal entendimento do princípio da igualdade, o mínimo que se haverá que dizer é que atira o legislador para dentro de um autêntico (e dificilmente previsível) 'colete de forças'.
3. Diga-se, ainda, que não se me afigura válido argumentar com a inclusão, pela Lei n.º 26/95, de 18 de Agosto, do Governador de Macau e dos secretários adjuntos de Macau entre os cargos políticos cujo exercício confere aos respectivos titulares direito à subvenção mensal vitalícia prevista no artigo
24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, uma vez que tal inclusão (mesmo concedendo que correspondesse à melhor solução) não implica por certo que a solução anterior constituísse 'não-direito', ou seja, que fosse inconstitucional por violação do princípio da igualdade. Se não se pretender pura e simplesmente ignorar as especificidades que o cargo de Governador de Macau exibe, cuja relevância podia legitimamente ser considerada pelo legislador português, não se pode, por outro lado, aceitar como probante, à luz do princípio constitucional da igualdade, qualquer argumento retirado de uma equiparação resultante do Estatuto de Macau, que, aliás, é, nos termos do artigo 292º, n.º 1, da Constituição, adequado à 'situação especial' do território de Macau. Isto, sobretudo, quando, como se viu, tal equiparação (cujo sentido pode aliás ser controvertido) apenas funcionaria para uma parte do regime, e não, como se viu, para todo ele. Não pode, assim, deixar de concluir-se que a exclusão do cargo de Governador de Macau do elenco dos cargos cujo exercício conferia direito a subvenção mensal vitalícia, ou – o que substancialmente não se vê como possa ser diferente – cujo tempo de serviço deve ser contado para esse efeito, resultante da interpretação questionada do artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85 (na redacção anterior à conferida pela Lei n.º 26/95), é susceptível de se apoiar numa justificação constitucionalmente razoável, resultante da ponderação da especificidade desse cargo, e não importando, portanto, uma discriminação arbitrária (mesmo que possa eventualmente – repete-se – não traduzir a melhor solução). Não teria, portanto, considerado a norma do artigo 24º, n.º 1, na redacção anterior à referida Lei n.º 26/95, violadora do princípio da igualdade, tal como consagrado no artigo 13º da Constituição e sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Artur Maurício (vencido quanto à alínea a) da decisão, pois entendo que, devendo a questão prévia ser apreciada à luz do regime vigente na data da interpretação do recurso - sem assim se ter em conta o disposto no artº 70º nº 4 da Lei nº
28/82, na redacção dada pela Lei nº 13-A/98, que não tenho como norma interpretativa - e adoptando a tese que fez vencimento no Acórdão nº 282/95, o recorrente não esgotou os recursos ordinários que no caso caberiam) vencido, ainda, quanto à alínea b) da decisão nos termos da declaração de voto do Cons. Mota Pinto). Luís Nunes de Almeida