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Proc. nº288/00
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal Judicial da Comarca de Évora acusou ES de condução sob a influência do álcool, com uma TAS de 2,53 g/l, tendo o Ministério Público invocado para fundamentar a acusação apenas o artigo 292º do Código Penal (CP).
Realizado o julgamento, a arguida confessou os factos na audiência, pelo que foi logo proferida a decisão, tendo o arguida sido condenada pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no artigo 292º do Código Penal, na pena de 100 dias de multa à razão de 1500$00 por dia, no total de 150.000$00, tendo sido descontado um dia em virtude da detenção sofrida. Mais foi a arguida condenada, ao abrigo do disposto no artigo 69º, n.º1, alínea a) do Código Penal, na inibição de conduzir pelo período de 4 meses e 15 dias.
2. – Não se conformando com o assim decidido, ES interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora alegando que, tendo a acusação invocado apenas o artigo 292º do CP não pode a sentença aplicar pena acessória de inibição de conduzir por a mesma não se conter naquela disposição legal, sendo certo que qualquer interpretação dos artigos 283º, 358º e 359º do Código de Processo Penal (CPP) que permitisse nos autos a aplicação de medidas ou penas acessórias seria inconstitucional por violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo
32º da Constituição.
Na Relação de Évora, por acórdão de 22 de Fevereiro de
2000, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Para assim decidir a Relação enfrentou e resolveu as duas seguintes questões: a) a alegada impossibilidade de aplicação na hipótese concreta dos autos, da pena acessória de inibição de conduzir, sob pena de preterição das garantias de defesa consagradas no artº 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição; e b) a questão da suspensão da pena acessória, caso não proceda a primeira questão.
Interessa aqui considerar apenas a primeira questão enunciada.
O acórdão da Relação depois de afastar o tratamento da questão abstracta da aplicabilidade da pena acessória prevista no artigo 69º, n.º1, alínea a) do CP ao tipo legal de crime pelo qual a arguida vem condenada, uma vez que não foi suscitada tal questão, passa a tratar da tese da recorrente que assenta na inobservância das garantias de defesa do arguido previstas nos artigos 358º e 359º do CPP, na medida em que, não constando da acusação qualquer referência ao artigo 69º, não podia a sentença condená-la na referida pena acessória.
Escreveu-se na decisão para confirmar a sentença recorrida o seguinte:
'Não está em causa uma alteração de factos, substancial ou não substancial, até porque, como se verifica da própria fundamentação da sentença recorrida, a arguida confessou em audiência, integralmente e sem reservas, os factos que lhe eram imputados. E sendo essa, e só essa, a factualidade integrante da acção típica, está fora de questão terem sido vertidos na sentença, quanto aos elementos típicos do crime, quaisquer factos diferentes daqueles que da acusação constavam. Assim sendo, a alegação da recorrente ó procederia se a hipótese dos autos coubesse na previsão do n.º3 do artigo 358º, ou seja, que a sentença tivesse operado uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, sem previamente a ter comunicado à arguida, concedendo-lhe, sendo caso disso, o tempo necessário à preparação da defesa. Mas também neste particular não parece que lhe assista razão.
É que o que está em causa não é uma alteração da qualificação jurídica dos factos, que pressupõe necessariamente uma condenação por um tipo legal de crime diferente daquele que antes fora imputado ao acusado. Do que se trata no caso dos autos é, tão só, a condenação da arguida, pelo mesmo crime de que vinha acusada, mas numa pena acessória cuja aplicabilidade não tinha sido expressamente referenciada na acusação. Ora, tal situação não cabe manifestamente no âmbito das disposições alegadamente violadas pela decisão recorrida.
É certo que um dos requisitos de uma acusação é a indicação das disposições legais aplicáveis ao caso (cfr. Artº 283º, n.º3, al. c), do C.P.P.), muito embora a lei não defina o respectivo âmbito (no limite, tal indicação restringir-se-á ao preceito legal que tipifica o crime). De qualquer modo, essa
é uma formalidade que, a par de outras, se acham previstas na lei processual a propósito da regularidade de uma acusação deduzida pelo Mº Pº, no âmbito do encerramento do inquérito, e num processo comum. Como parece óbvio, não podem tais requisitos ser exigíveis quando, como no caso dos autos, o processo é sumário, por isso naturalmente simplificado, e em que a apresentação da acusação até pode ser substituída pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido á detenção (n.º3 do já citado artº
389º). Daí que, mostrando-se observadas todas as formalidades exigidas para o caso, tendo em conta a natureza sumária do processo, não se veja como, ao invés do afirmado na motivação, possa ter havido preterição de garantias de defesa consagradas na Constituição, designadamente nos n.ºs 1 e 5 do seu artº 332º. Fundamental será sim, em qualquer hipótese, num processo sumário ou em qualquer outra forma de processo criminal, como garantia elementar da defesa, que a delimitação objectiva do processo se defina sempre pelo âmbito fáctico da acusação. E essa mostra-se sem dúvida salvaguardada, como se disse desde logo pela confissão da arguida em audiência.
É por isso de concluir que, nesta parte, não merece qualquer censura a sentença recorrida.'
É deste acórdão que ES veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional pretendendo que se aprecie a inconstitucionalidade dos artigos 283º, 358º e 359º do CPP se interpretados no sentido de permitirem a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir sem que na acusação ou posteriormente se tenha dado conhecimento ao arguido de tal possibilidade.
3. – A recorrente apresentou alegações, que concluiu pela forma seguinte:
'Os artigos 283º, 358º e 359º do Código de Processo Penal, se interpretadas no sentido de que permitem eles a aplicação da sanção penal (ainda que de natureza acessória como seja a de inibição de condução de veículos automóveis) sem que na acusação ou (equivalente) ou em momento posterior se tenha feito ou faça alusão ou previsão da aplicabilidade dessa sanção e se tenha dado conta ao arguido dessa previsão, poriam em causa princípios estruturantes do processo penal, tais o do contraditório e a própria estrutura acusatória do processo penal, princípios esses que têm apoio e sede no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, nessa medida havendo de ser julgados inconstitucionais.'
Pelo seu lado, o Ministério Público também produziu as pertinentes alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º Só tem utilidade a apreciação da questão de constitucionalidade das normas que constituíram - de forma efectiva e decisiva – 'ratio decidendi' do acórdão proferido pelo Tribunal «a quo».
2º Assim, não tendo a arguida – condenada em processo sumário por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e em que não teve lugar a elaboração de peça acusatória pelo Ministério Público (substituída pela leitura do auto de notícia elaborado pela autoridade policial – questionado a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 243º (que prescreve qual o conteúdo desse auto) e do artigo 389º, nº3, do Código de Processo Penal (que faculta a substituição da acusação pela leitura de tal auto), não tem qualquer utilidade a apreciação da constitucionalidade das normas que integram o objecto do presente recurso, por as mesmas não terem sido efectivamente aplicadas pelo Tribunal «a quo» à dirimição do caso.
3º Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso.'
Uma vez que o Ministério Público suscita a questão prévia do não conhecimento do recurso, foi a recorrente notificada para responder à referida questão prévia.
A recorrida veio então dizer que não tinha fundamento a questão prévia suscitada, uma vez que o que estava em causa era a estrutura acusatória do processo penal e o princípio do contraditório. Ora, não só o artigo 389º como o artigo 358º, ambos do CPP, concretizam aquela estrutura e princípio, pelo que mesmo o julgamento em processo sumário não pode deixar de realizar todas as garantias de defesa, pelo que também a leitura do auto de notícia em substituição da acusação tem de respeitar os princípios constitucionais.
Corridos que foram os visto legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
4. – A arguida foi acusada da prática do crime de condução em estado de embriaguez e, tendo confessado os factos em julgamento, foi condenada em cem dias de multa e na proibição de conduzir veículos motorizados por um período de quatro meses e quinze dias.
De acordo com o auto de noticia, a recorrente e arguida foi considerada incursa na prática do crime previsto e punido no artigo 292º do Código Penal (CP) revisto em 1995 e, tendo recusado submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo que foi considerada como tendo infringido o artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril.
Na audiência da 1ª instância, o Ministério Público substituiu a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que procedeu á detenção. Na decisão, depois de se considerar a factualidade provada como inserida no artigo 292º do CP, escreveu-se: 'A conduta da arguida é, ainda, integrável no disposto no artº 69º/nº1/al. a) do Código Penal, já que a condução sob o efeito do álcool constitui uma grave violação das regras de trânsito rodoviário. Impõe-se pois, a aplicação da pena acessória aí prevista.'
Segundo a recorrente, 'a sentença não pode, por isso, determinar a aplicação de uma pena, acessória ou principal, cuja aplicabilidade não tivesse sido expressamente prevista e referida na acusação'.
Nas alegações para o Tribunal da Relação de Évora, a recorrente suscitou a seguinte questão: qualquer interpretação dos artigos 283º,
358º e 359ºdo CPP e 69º do CP que permitisse, nos autos a aplicação de medidas ou penas acessórias , violaria as normas dos n.ºs 1 e 5 do art.32º da C.R.P..'
A Relação, entendeu que não só a factualidade dos autos como também a própria situação processual não era subsumível ao âmbito de aplicação dos artigos 358º e 359º do CPP, pois não se tratava de uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Quanto à questão da não indicação das disposições legais aplicáveis ao caso, a Relação entendeu que, tratando-se de um processo sumário, em que até a acusação pode ser substituída pela leitura do auto de notícia, não pode afirmar-se ter havido preterição das garantias de defesa.
5. – O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo da alínea b), do nº1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(LTC) e pretende que o Tribunal aprecie a conformidade à Lei Fundamental das normas dos artigos 283º, 358º e 359º do CPP, na interpretação que permita a aplicação de uma sanção acessória sem que na acusação ou em momento posterior se tenha dado conta ao arguido dessa previsão.
As normas que estão questionadas têm a seguinte redacção:
'Artigo 283º
(Acusação pelo Ministério Público)
1.Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de dez dias, deduz acusação contra aquele.
2. Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida ou segurança.
3. A acusação contém, sob pena de nulidade: a) (...) c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
[...].' Artigo 358º
(Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3. O disposto no nº1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Artigo 359º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.'
Segundo o Ministério Público, as normas que a recorrente questiona não foram aplicadas na decisão recorrida, não tendo sido a ratio decidendi do acórdão em recurso e, por isso, não tem utilidade conhecer-se do recurso.
De facto, a decisão recorrida teria apenas utilizado a norma do artigo 243º do CPP – na medida em que nele se estabelecem os requisitos do auto de notícia e o artigo 389º, nº3, também do CPP, na medida em que permite que a acusação pelo Ministério Público seja substituída pela leitura do auto de notícia.
A questão prévia, assim suscitada, tem de ser afrontada e decidida.
6 – O presente recurso de constitucionalidade vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que constituem requisitos de admissibilidade (a) que tenha sido suscitada a questão de constitucionalidade de uma norma jurídica durante o processo, e (b) que essa norma tenha sido aplicada como fundamento normativo da decisão recorrida.
Acresce também que o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental: isto é, apenas se deve conhecer da constitucionalidade de normas que, tendo sido suscitada durante o processo e utilizadas na decisão recorrida, possa vir a influir de forma decisiva o sentido do acórdão recorrido.
De facto, se a decisão a proferir sobre a questão de constitucionalidade for irrelevante e inócua para alterar o decidido, o recurso de constitucionalidade perde toda a sua utilidade.
Estabelecidos os pressupostos do recurso de constitucionalidade, analisemos a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
7. - No julgamento foram considerados provados todos os factos constantes do auto de notícia, factualidade essa que foi provada por confissão expressa e espontânea da arguida e esses factos não sofreram qualquer alteração substancial ou não substancial, independentemente de se apurar agora de qual seja o exacto entendimento de tal expressão (de acordo com a alínea f) do artigo 1º do CPP, define-se 'alteração substancial dos factos' como 'aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis').
Por outro lado, tais factos foram subsumidos ao comportamento abstractamente descrito na lei penal como definindo um tipo legal de crime. Ora, para alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação é necessário subsumir a factualidade constante dos autos num comportamento abstracto diferente daquele que inicialmente fora previsto, isto
é, que o tipo legal de crime imputado ao arguido sofra modificações posteriores.
Porém, o que decorre dos autos é que os factos apurados foram, na decisão, relacionados com duas normas legais, sendo certo que apenas uma delas tinha sido indicada no auto de notícia. Ou seja, entendeu-se que, nos crimes directamente relacionados com a circulação rodoviária e com a condução de veículos sob a influência de álcool, a punição prevista na lei penal reveste uma natureza complexa, compreendendo, por um lado, o aspecto penal, que consiste na sanção principal – uma pena de prisão ou uma pena de multa (artigo 292ºCP), e, por outro lado, uma pena acessória, a pronunciar conjuntamente com a pena principal, mas que não é efeito dessa pena principal, uma vez que se exige que o julgador apure na factualidade demonstrada um particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a aplicação de tal pena acessória.
Mas, face a tal entendimento vertido na decisão recorrida, então, não pode deixar de proceder a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
8. - Com efeito, numa tal perspectiva, as normas que vêm questionadas pelo recorrente não foram utilizadas na decisão recorrida como ratio decidendi. De facto, quanto ao artigo 283ºCPP reporta-se ele à acusação deduzida pelo Ministério Público após processo de inquérito. No caso, trata-se de um processo sumário, em que o Ministério Público para acusar, se socorreu da faculdade concedida pelo nº3 do artigo 389º CPP, substituindo a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia – única norma que foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida, no que à acusação se refere.
No que se refere às restantes normas identificadas pelo recorrente – os artigos 358º e 359º do CPP – é manifesto que, como ficou referido, no caso, não existiu qualquer alteração dos factos constantes da acusação, os quais se mantiveram inalterados durante todo o processo.
Quanto a uma possível alteração da qualificação jurídica de tais factos, pode agora concluir-se que não existiu qualquer modificação da subsumpção dos factos constantes do auto de notícia: o julgador limitou-se a considerar o crime de condução de veículo sob o efeito do álcool como integrando uma grave violação das regras do trânsito rodoviário, aplicando á recorrente as consequências relativas à pena acessória correspondente.
É, assim, evidente que as normas dos artigos 283º, 358º e 359º, todos do CPP, não foram aplicadas pela decisão recorrida.
Pelo exposto, tem de proceder a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e, em consequência o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do presente recurso. III – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
8 unidades de conta.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa