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Processo n.º 426/12
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público, B. e Hospitais da Universidade de Coimbra, foi interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal de 7 de maio de 2012.
2. A decisão recorrida, mediante a qual não foi admitido o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, tem a seguinte fundamentação:
«3. O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da parte do acórdão da Relação que ordenou a substituição do despacho de comunicação da alteração não substancial dos fatos por outro e a manutenção dos atos e prova produzida até à prolação do despacho cuja substituição é ordenada.
O reclamante alega que recurso deve ser admitido, por a decisão de que pretende recorrer ter sido proferida pela Relação em primeira instância.
Mas sem razão.
Com efeito, o acórdão do tribunal da Relação, na parte em que decidiu pela manutenção dos atos e prova produzida até à prolação do despacho de alteração não substancial dos factos, não constitui uma decisão proferida em primeira instância, mas antes uma decisão inteiramente integrada no âmbito do conhecimento do recurso.
O direito ao recurso em processo penal, entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, terá de ser perspetivado como uma faculdade de recorrer, e não sempre e em qualquer caso de uma primeira decisão ainda que proferida em recurso.
Em outra perspetiva, no domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, a redação do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do artigo 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.
O objeto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa – ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.
E no segmento em que o acórdão da Relação decidiu pela manutenção dos atos e prova produzida até à prolação do despacho de alteração não substancial dos factos, trata-se de decisão de natureza interlocutória, consequentemente sem conhecer a final do objeto do processo, que prossegue para decisão na 1.ª instância.
Logo, o recurso não é admissível ao abrigo do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP».
3. Pela Decisão Sumária n.º 327/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«2. O recurso foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça, importando verificar se deve prosseguir.
Invoca o recorrente as alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de novembro), nos termos das quais cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (b)); e que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional, ou ilegal, pelo próprio Tribunal Constitucional (g)).
Exige-se, portanto, que a norma impugnada haja sido aplicada na decisão recorrida e que, no caso específico da alínea g), tal norma já tenha sido julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal.
O recorrente pretende impugnar uma norma que enuncia 401º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que 'é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido'.
Acontece que a norma não aplicada na decisão recorrida.
Com efeito, a decisão recorrida valorizou unicamente a circunstância de se estar perante um caso de não conhecimento do objeto do processo, por se tratar de uma decisão interlocutória, que nada teria a ver com a alegada pronúncia sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido, conforme diz o recorrente. Com efeito, o tribunal recorrido entendeu que a decisão, por ser interlocutória, não punha em causa 'as garantias de defesa do arguido'. Não é assim possível ao Tribunal pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma impugnada, pois a verdade é que a decisão recorrida não aplicou tal determinação.
E também é absolutamente certo que o Acórdão n.º 686/04, invocado pelo recorrente, não julgou inconstitucional a norma enunciada pelo recorrente, pois não julgou inconstitucional a norma do artigo 401.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que 'é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido', uma vez que julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação 'que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a', o que é bem diferente da norma impugnada.
Deve, assim, concluir-se que não só o tribunal recorrido não aplicou a norma impugnada, como ainda que, em anterior jurisprudência, não julgou inconstitucional tal norma».
4. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, mediante requerimento onde se lê o seguinte:
«12. É útil, pois, parece, esclarecida que está a questão de saber se o Tribunal a quo fez ou não aplicação da norma da alínea c) do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal, recordar qual o sentida pelo qual o Tribunal a quo fez aplicação dessa mesma norma como fundamento da recusa, que sentenciou, de admissão do recurso pelo ora Recorrente interposto de decisão do Tribunal de hierarquia inferior.
13. E o sentido que a essa mesma norma foi dado pelo Tribunal a quo resulta absolutamente claro do teor da decisão: no entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, as decisões interlocutórias que não conheçam do objeto do processo não são suscetíveis de recurso.
14. É que, não obstante, em sede de reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão de não admissão do recurso por si originariamente interposto da decisão do Tribunal da Relação, o ora Reclamante ter, já então, suscitado a questão da inconstitucionalidade daquela mesma norma da alínea c) do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal na medida em que a sua interpretação e aplicação possa ter como consequência a denegação do direito de recurso (sequer em, um grau) em situação em que as garantias de defesa do arguido sejam afetadas, o Supremo Tribunal de Justiça não chega, sequer, a considerar tal questão.
Analiticamente:
a) O Supremo Tribunal de Justiça poderia ter concluído por que a decisão recorrida não afetasse garantias de defesa do arguido e, assim, ter concluído por que a não admissão de recurso por aplicação in literis do disposto na alínea c) do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal, não colocasse ela mesmo em risco um direito constitucionalmente consagrado do arguido – seja, o de recorrer, pelo menos em um grau, de decisões que afetem as suas garantias constitucionais de defesa.
b) Alternativamente, o Supremo Tribunal de Justiça poderia ter concluído por que, não obstante a decisão recorrida afetasse garantias de defesa do arguido, atenta a sua natureza interlocutória e o facto de que não conhecesse do objeto do processo, a denegação recurso nos termos do disposto na alínea c_ do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal de igual modo não colocasse relevantemente em crise a garantia constitucional de recurso (pelo menos em um grau) de decisões que afetem as garantias constitucionais de defesa.
c) Não foi, porém, isso o que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu. E tal não foi de todo, de todo em todo, decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, não correspondendo, assim, à realidade o que sobre tal vai afirmado no despacho ora sob reclamação e que ora se cita para facilidade de referência por V. Exas.:
“Com efeito, a decisão recorrida valorizou unicamente a cfrcunstância de se estar perante um caso de não conhecimento do objeto do processo, por se tratar de decisão interlocutória, que nada teria a ver com a alegada pronúncia sobre guestão susceptiveí de contender com as garantias de defesa do arguido, conforme diz o recorrente. Com efeito, o tribunal recorrido entendeu que a decisão, por ser interlocutória, não punha em causa as garantias de defesa do arguido. Não é assim possível ao Tribunal pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma impugnada, pois a verdade é que a decisão recorrida não aplicou tal determinação”
(Fim de citação);
d) O Supremo Tribunal de Justiça limita-se a, repetir o disposto, in literis, a norma da alínea c) do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal, concluindo que da mesma resulta a exclusão do recurso porque a decisão de que o mesmo havia sido interposto tivesse caráter interlocutório e não conhecesse do objeto do recurso.
E, a este propósito, o ora Reclamante não pode deixar de lamentar que, chegando mesmo a socorrer-se de aspas apócrifas (como se estivesse a citar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça), o despacho do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Relator afirme que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o que o mesmo não decidiu.
15. Sempre quanto a este ponto, e agora em síntese, o que conclusiva e inequivocamente se extrai da decisão do Supremo Tribunal de Justiça é que o mesmo faz aplicação declarativa, literal, da norma da alínea c) do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal, recusando o recurso interposto, mesmo na situação em que de tal aplicação resulte a preclusão do direito de recorrer de decisão que afete as garantias constitucionais de defesa do arguido.
Julga o ora Reclamante, assim, achar-se adequadamente estabelecido que, ao conhecer do recurso de constitucionalidade, esse Venerando Tribunal não exorbite os seus poderes de cognição: aquilo de que se trata é de sancionar a interpretação que àquela norma foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça quando esta se traduz em uma preclusão do direito de recurso do ora Reclamante em situação em que, conforme pelo mesmo arguido, tal tenha como consequência a imposição irrecorrível, na sua esfera, de uma diminuição das suas garantias constitucionais de defesa.
(…)
20. A decisão reclamada manifestou o entendimento de que o Tribunal Constitucional nunca julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º1, alínea c) do Código de Processo Penal interpretada no sentido de (sic) “(…) é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido uma vez que julgou inconstitucional a norma do artigo 400º nº 1 alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a(...)”
21. Julgava o ora Recorrente que, para que possa concluir-se por que o Tribunal Constitucional haja proferido decisão anterior em que tenha desaplicado norma por inconstitucionalidade – rectius, em que o mesmo tenha feito aplicação da mesma em interpretação conforme a Constituição – houvesse fundamentalmente que atende, quer, por um lado, (i) aos diferentes sentidos de que a norma objeto de controlo seja suscetível, quer, por outro lado, (ii) à norma ou princípio constitucional que se mostre posto em crise por um (ou vários) daqueles sentidos.
22. Ou seja, em outros termos, abrangendo a alínea g) do no. 1 do Artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional não apenas a emissão de decisão de provimento (decisão positiva de inconstitucionalidade) mas, também, decisão interpretativa em que o Tribunal haja concluído pela desaplicação de norma por um seu resultado interpretativo se mostrar violador de norma ou princípio constitucional, é essencial, nesta circunstância, atentar na ratio decidendi da pronúncia anterior, ou seja, nas razões por que a norma, em uma sua determinada interpretação, tenha sido julgada desconforme ou incompatível com regra ou princípio constitucional.
23. O Acórdão 686/04 julgou (sic) “inconstitucional por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da norma do artigo 400.º, n.º1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a.”
24. Ora, como é evidente:
a) A norma da alínea c) do no. 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal nada dispõe, in literis, quanto à inadmissibilidade de recurso de decisão em que o Tribunal se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo;
b) Por outro lado, e como é também evidente – e foi especificamente notado pelo Tribunal Constitucional – o que está em causa é a denegação do direito de recurso de decisões relativamente às quais a lei preveja como não admissível a recurso – seja, as proferidas pelas relações, de caráter interlocutório e que não conheçam do objeto da causa – mas que ponham em causa garantias constitucionais de defesa do arguido.
c) Mais concretamente ainda, a “pronúncia sobre a especial complexidade do processo”, pelas implicações processuais que tem no estatuto do arguido, designadamente constitui um caso de espécie em que, não obstante tal decisão assumir caráter interlocutório e não conhecer do objeto do processo, importa garantir o direito de recurso.
25. Tal como ficou expressamente consignado no Douto Acórdão,
“A questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos é, pois, a de saber se a irrecorribilidade em decisão que pela primeira vez se pronuncie sobre a especial complexidade do processo, declarando-a, proferida pelo Tribunal da Relação, irrecorribilidade decorrente da norma impugnada, é compatível com o artigo 32.º, n.º1 da Constituição que consagra como garantia de defesa o direito ao recurso.
(...)
“A tutela constitucional do direito de recorrer quanto a decisões que impliquem uma definitiva afetação de direitos há de implicar a garantia efetiva do recurso, no caso de tal ser possível (por existir instância adequada e superior), nas decisões que restringem direitos fundamentais, não sendo suficiente para a sua concretização a possibilidade que o arguido tem de reclamar perante o órgão que proferiu a decisão”.
(Fim de citação)
26. O ora Reclamante não tem dúvida de que uma leitura atenta da questão pelo mesmo suscitada nos Autos revela que é isso mesmo o que está em questão no incidente por si suscitado:
a) A questão decidida pelo Tribunal da Relação de Coimbra não havia sido objeto de decisão anterior;
b) Tal decisão reveste-se de caráter interlocutório e não conhece do objeta do processo; mas
c) A mesma afeta garantias constitucionais de defesa do Arguido;
d) Razão por que, relativamente à mesma, deve manter-se garantido o direito à respetiva apreciação por órgão jurisdicional diferente daquele que a proferiu».
5. Notificados os recorridos, respondeu apenas o Ministério Público, o que fez nos seguintes termos:
«12º
Na sua reclamação para a conferência, contesta o Réu este entendimento, do Ilustre Conselheiro Relator deste Tribunal Constitucional, porém, sem qualquer razão.
13º
Assim, relativamente à aplicação da norma da alínea c) do nº 1 do art. 400º do CPP, refere designadamente o arguido (cfr. fls. 165, 186 dos autos):
“5. A norma de que se trata – seja, a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada – é, como o despacho ora sob reclamação não deixa de reconhecer, a da alínea c) do nº 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal.
E é absolutamente inquestionável que foi essa mesma norma – e não qualquer outra ou qualquer «não norma» - aquela em que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça expressamente se louvou para justificar a recusa de admissão do recurso antes interposto pelo ora Reclamante da decisão originariamente proferida pelo Tribunal da Relação.”
14º
Só aparentemente, porém, o Reclamante tem razão na sua afirmação.
Como lucidamente sublinhado pelo Ilustre Conselheiro Relator, e como facilmente se constata, a dimensão normativa invocada pelo arguido não é a mesma da decisão reclamada, não sendo, por isso, coincidentes, nem o seu sentido, nem o seu alcance.
Por outras palavras, a questão de constitucionalidade invocada pelo arguido não integrou, realmente, a ratio decidendi do despacho reclamado, prolatado pelo Senhor Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
15º
Atente-se, para o efeito, no seguinte excerto da Decisão Sumária reclamada, anteriormente transcrito, em que este argumento está claramente enunciado (cfr. supra nº 10 do presente Parecer)
“Com efeito, a decisão recorrida valorizou unicamente a circunstância de se estar perante um caso de não conhecimento do objeto do processo, por se tratar de uma decisão interlocutória, que nada teria a ver com a alegada pronúncia sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido, conforme diz o recorrente. Com efeito, o tribunal recorrido entendeu que a decisão, por ser interlocutória, não punha em causa 'as garantias de defesa do arguido'. Não é assim possível ao Tribunal pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma impugnada, pois a verdade é que a decisão recorrida não aplicou tal determinação”.
16º
Refere, por outro lado, o ora Reclamante, quanto ao argumento relativo ao fundamento alternativo de recurso, respeitante à alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, (cfr. fls. 175, 191 dos autos):
“24. Ora, como é evidente:
a) A norma da alínea c) do nº 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal nada dispõe, in literis, quanto à inadmissibilidade de recurso de decisão em que o Tribunal se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo;
b) Por outro lado, e como é também evidente – e foi especificadamente notado pelo Tribunal Constitucional – o que está em causa é a denegação do direito de recurso de decisões relativamente às quais a lei preveja como não admissível o recurso – seja, as proferidas pelas relações, de caráter interlocutório e que não conheçam do objeto da causa – mas que ponham em causa garantias constitucionais de defesa do arguido.
c) Mais concretamente ainda, a «pronúncia sobre a especial complexidade do processo», pelas implicações processuais que tem no estatuto do arguido, designadamente constitui um caso de espécie em que, não obstante tal decisão assumir caráter interlocutório e não conhecer do objeto do processo importa garantir o direito de recurso.”
17º
Não é, porém, assim, como o arguido alega.
Quando se invoca, como fundamento do recurso, a alínea g) do nº 1 do art. 70º da LTC, é necessário haver estrita coincidência entre a dimensão normativa da norma julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e a norma cuja constitucionalidade se pretende suscitar.
18º
Como referido, a este propósito, na obra de Lopes do Rego “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional” (Livraria Almedina, 2010) (cfr. fls. 147 da mesma obra) (destaques do signatário):
“A admissibilidade do recurso previsto na alínea g) pressupõe uma estrita e perfeita coincidência entre a norma ou interpretação normativa já precedentemente julgada inconstitucional e a norma (ou uma interpretação dela) efetivamente aplicada à dirimição do caso pelo tribunal «a quo»: esta situação torna-se particularmente evidente nos casos em que o precedente juízo de inconstitucionalidade incidiu apenas sobre determinada parcela, segmento ou interpretação da norma (como ocorre nas decisões de inconstitucionalidade parcial, quantitativa ou qualitativa). – não sendo admissível o recurso fundado na alínea g) quando o tribunal «a quo» tenha, afinal, aplicado outros segmentos ou dimensões da norma, não abrangidos pelo anterior juízo de inconstitucionalidade – cfr., v.g. Acórdãos nºs 538/98, 586/98, 315/97, 317/02, 537/05, 451/05, 482/06, 142/07, 395/07, 572/07, 358/07, 409/07, 529/08, 568/08 (…)”
19º
Ora, não há, efetivamente, coincidência entre a dimensão normativa julgada inconstitucional pelo Acórdão 684/04, deste Tribunal Constitucional, e a dimensão normativa invocada pelo arguido, no seu recurso, quanto à alínea c) do nº 1 do art. 401º do Código de Processo Penal.
20º
Tem, por isso, inteira razão, o Ilustre Conselheiro Relator deste Tribunal, quando afirma, como anteriormente transcrito (cfr. supra nº 11 do presente Parecer):
“E também é absolutamente certo que o Acórdão n.º 686/04, invocado pelo recorrente, não julgou inconstitucional a norma enunciada pelo recorrente, pois não julgou inconstitucional a norma do artigo 401º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que 'é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido', uma vez que julgou inconstitucional a norma do artigo 400º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação 'que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a', o que é bem diferente da norma impugnada.
Deve, assim, concluir-se que não só o tribunal recorrido não aplicou a norma impugnada, como ainda que, em anterior jurisprudência, não julgou inconstitucional tal norma.”».
21º
Pelo exposto, crê-se que a Decisão Sumária 327/12, que determinou a apresentação da reclamação para a conferência em apreciação, julgou bem, em face do requerimento do recurso do arguido, pelo que deverá ser confirmada».
Tendo havido mudança de relator, por o primitivo ter cessado funções no Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 401.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido.
1. Na decisão reclamada decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na não verificação do requisito da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação foi requerida. Entendeu-se que o tribunal recorrido valorizou unicamente a circunstância de se estar perante um caso de não conhecimento do objeto do processo, por se tratar de uma decisão interlocutória, que nada teria a ver com a alegada pronúncia sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido.
Não obstante ter requerido a apreciação daquele artigo do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que “é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido” (itálico aditado), o reclamante argumenta agora que o sentido dado àquela disposição legal foi o de que «as decisões interlocutórias que não conhecem do objeto do processo não são suscetíveis de recurso» (ponto 13. da reclamação). Não deixando também de alegar que o tribunal recorrido fez «aplicação declarativa, literal, da norma da alínea c) do n.º 1 do Artigo 400º do Código de Processo Penal». Reconhece, pois, que a norma cuja apreciação requereu não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça como razão de decidir, uma vez que especificou no enunciado de tal norma, relativa à irrecorribilidade de decisões tomadas em recurso pela relação, que esta se tenha pronunciado, pela primeira vez, sobre questão que seja suscetível de contender com os direitos processuais do arguido.
De resto, o próprio reclamante reconhece que a razão de decidir do Supremo Tribunal de Justiça foi alheia à qualificação da questão como suscetível ou não de contender com os direitos processuais do arguido (ponto 14. da reclamação). Ora, foi isso mesmo o que se quis afirmar na decisão reclamada, quando se concluiu que a decisão recorrida valorizou unicamente a circunstância de se estar perante um caso de não conhecimento do objeto do processo, por se tratar de uma decisão interlocutória. Por outro lado, dizer como o reclamante diz que aquele Supremo Tribunal fez uma aplicação declarativa, literal, da norma, recusando o recurso interposto, mesmo na situação em que de tal aplicação resulte a preclusão do direito de recorrer de decisão que afete as garantias constitucionais de defesa do arguido (ponto 15. da reclamação), já não tem nada a ver com a natureza, necessariamente normativa, do recurso de constitucionalidade interposto. A afirmação do reclamante é bem significativa de duas coisas bem distintas: a norma; e o resultado da aplicação da norma.
Com efeito, o tribunal recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja apreciação foi requerida ao Tribunal Constitucional, o que justifica, nesta parte, o indeferimento da reclamação. Diferentemente do que consta do enunciado da norma indicada no requerimento de interposição de recurso, a decisão recorrida não admitiu o recurso interposto, com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, porque entendeu que a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de natureza interlocutória, não constituía uma decisão proferida em primeira instância, mas antes decisão inteiramente integrada no âmbito do conhecimento do recurso.
2. Na decisão reclamada decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Se, por um lado, a norma cuja apreciação foi requerida não foi aplicada pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, por outro, «o Acórdão n.º 686/04, invocado pelo recorrente, não julgou inconstitucional a norma enunciada pelo recorrente, pois não julgou inconstitucional a norma do artigo 401.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que 'é irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que não conheça do objeto do processo e se pronuncie, pela primeira vez, sobre questão suscetível de contender com as garantias de defesa do arguido'».
Segundo aquela alínea g), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, requisito este que não se pode dar por verificado, uma vez que o Acórdão invocado pelo recorrente julgou inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a. Além de que a norma indicada no requerimento de interposição de recurso não foi aplicada, como razão de decidir, pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. supra ponto 1.)
Com efeito, um dos requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é que haja identidade entre a norma efetivamente aplicada na decisão recorrida – seja a norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação – e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não basta que «possa ser sustentado que as mesmas razões que levaram a julgar inconstitucional determinada norma justificariam que juízo de igual sentido fosse formulado a propósito da norma aplicada na decisão recorrida» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 568/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). É por isso totalmente improcedente a argumentação do reclamante, o que justifica, também nesta parte, a confirmação da decisão reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 25 de setembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Rui Manuel Moura Ramos.