Imprimir acórdão
Processo nº 147/99
3 ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Faro de 2 de Fevereiro de 1995, de fls. 93, foi julgada improcedente a oposição deduzida por I... e mulher à execução fiscal contra eles movida pelo FUNDO DE TURISMO. Para o efeito, e para o que interessa ao presente recurso, foi desatendida pelo Tribunal a excepção de incompetência em razão da matéria dos tribunais tributários para procederem à cobrança coerciva dos créditos do exequente, invocada pelos executados, que sustentaram que tal competência só poderia resultar de uma interpretação inconstitucional do artigo 2º do Decreto-Lei nº
203/89, de 22 de Junho, que declara aplicáveis à cobrança dos créditos do 'Fundo de Turismo a legislação respeitante às execuções por dívidas à Caixa Geral de Depósitos'. Considerando abrangida nesta remissão a atribuição de competência aos tribunais tributários, a norma seria, nessa medida, organicamente inconstitucional, por versar matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República e não ter sido emitida ao abrigo de qualquer autorização legislativa (al. q) do nº 1 do artigo 168º da versão então vigente da Constituição, que é a que, neste caso, releva). O Tribunal de 1ª Instância, todavia, julgou improcedente a excepção, por considerar que a competência dos tribunais tributários decorria da conjugação entre o nº 1 do artigo 62º do ETAF (Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, diplomada aprovado ao abrigo da Lei de autorização nº 29/83, de 8 de Setembro), na redacção vigente na altura, segundo o qual cabe a estes tribunais conhecer
'c) Da cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público, nos casos previstos na lei...', a al. b) do nº 2 do artigo 233º do Código de Processo Tributário, que estabelece que 'Serão igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal: b) Outras dívidas equiparadas por lei aos créditos do Estado', a natureza do Fundo de Turismo, que 'é, sem sombra de dúvidas, uma pessoa de direito público...' e o artigo 2º do Decreto-Lei nº 203/89 citado, que 'não modifica por qualquer forma a repartição de competências entre tribunais existentes, limitando-se a integrar e concretizar normas atributivas de competências já em vigor (no caso o art. 62º, nº 1 do E.T.A.F. e o art. 233º, nº
2-b), do C.P.T.); nada alterando, não infringe, assim, o limite da competência legislativa do Governo. Inconformados, recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo, que se declarou incompetente em razão da hierarquia para conhecer do recurso e o remeteu para o Tribunal Tributário de 2ª Instância, que confirmou a sentença. Os executados recorreram, então, de novo, para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão da Secção de Contencioso Tributário, julgou procedente a excepção de incompetência e, consequentemente, revogou a decisão recorrida. Para o efeito, e apoiando-se em jurisprudência deste Tribunal, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que a competência dos Tribunais Tributários só poderia resultar do artigo 2º do Decreto-Lei nº 203/89, diploma 'da autoria do Governo (...) elaborado e publicado ao abrigo da sua competência legislativa própria (...). Sendo assim, como é, esse diploma é inconstitucional, pois que legisla sobre matéria da competência reservada da Assembleia da República sem que para tal dispusesse da necessária autorização. E, como tal, é inaplicável – art. 207 da C R P .'
2. Recorreu então o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por ter ocorrido recusa 'de aplicação, por inconstitucionalidade orgânica, do D.L. nº 203/89, de 22 de Junho, por violação do artº 168º nº 1 al. q) da Constituição'. O recurso foi admitido. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações. O Ministério Público, chamando a atenção para a necessidade de restrição do objecto do recurso ao artigo 2º do Decreto-Lei nº 203/89, 'pois é aí que se determina que é aplicável à cobrança coerciva de todas as dívidas de que seja credor o Fundo de Turismo a legislação respeitante às execuções por dívidas à Caixa Geral de Depósitos', manifestou a sua concordância com a decisão recorrida, concluindo as alegações dizendo 'A norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 203/89, de 22 de Julho, é inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição'. Os recorridos fizeram 'suas as doutas alegações e conclusões deduzidas' pelo Ministério Público.
3. Há, na verdade, que começar por delimitar o objecto do recurso, uma vez que apenas pode consistir na norma cuja aplicação foi efectivamente recusada com fundamento em inconstitucionalidade. Assim, reduz-se o objecto do presente recurso à norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 203/89 na parte em que atribui competência aos tribunais tributários para conhecerem das execuções por dívidas ao Fundo de Turismo.
4. Não restam hoje dúvidas de que a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, constante da al. q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na versão relevante, ou seja, a que resultou da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro
('Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados'), abrange toda a matéria da competência dos tribunais. Neste sentido julgou o Tribunal Constitucional por diversas vezes, nomeadamente nos seus acórdãos nºs 25/88, 3/89, 356/89 e 172/96, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 11º, pag. 541 e segs., 13º, II, pág. 619 e segs.,
13º, I, pág. 443 e segs. e 33º, pág. 361 e segs., respectivamente). Há, pois, que analisar se o artigo 2º do Decreto-Lei nº 203/89 veio introduzir alguma alteração no que toca à determinação dos tribunais competentes para a execução das dívidas ao Fundo de Turismo, uma vez que só incorrerá no vício da inconstitucionalidade apontada se revestir carácter inovatório (cfr. Acórdão nº
502/97, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, cuja doutrina foi adoptada, entre outros, pelo Acórdão nº 468/98, aprovado em plenário, não publicado).
Foi o Decreto-Lei nº 223/71, de 27 de Maio, que alterou um dos diplomas fundamentais relativos à organização do Fundo de Turismo, o Decreto-Lei nº 49.266, de 26 de Setembro de 1969, que veio determinar a aplicabilidade 'à cobrança de todas as dívidas de que seja credor o Fundo de Turismo a legislação respeitante às execuções por dívidas à Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência'. O Decreto-Lei nº 223/71 foi expressamente revogado pelo Decreto-Lei nº 203/89, de 22 de Junho, diploma que, além de, tal como os Decretos-Leis nºs 223/71 e
631/74, de 18 de Novembro, ter alterado o Decreto-Lei nº 49.266, incluiu no seu artigo 2º o seguinte texto:
'É aplicável à cobrança coerciva de todas as dívidas de que seja credor o Fundo de Turismo a legislação respeitante às execuções por dívidas à Caixa Geral de Depósitos'.
O Decreto-Lei nº 203/89, por sua vez, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 247/95, de 20 de Setembro. Este último diploma aditou ao Decreto-Lei nº
49.266 um artigo 5º-B que atribuiu força executiva às 'certidões negativas de dívidas de pagamento emitidas pela comissão administrativa do Fundo (...), nos termos previstos na alínea d) do artigo 46º do Código de Processo Civil'. Este novo preceito, porém, não se aplica aos processos pendentes, que continuam 'a reger-se pelo disposto no Código de Processo Tributário', de acordo com o artigo
4º do Decreto-Lei nº 247/95.
Recentemente, foi revogado o Decreto-Lei nº 49.266, de 26 de Setembro de 1969, bem como demais legislação relativa ao Fundo de Turismo, pelo Decreto-Lei nº 308/99, de 10 de Agosto, que modificou a designação para Instituto de Financiamento e Apoio ao Turismo.
Continua, todavia, a ter interesse o julgamento do presente recurso, não só por também não ser aplicável o novo regime às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor (artigo 7º do Decreto-Lei nº 308/99) mas, sobretudo, por ter sido efectivamente afastada pelo Supremo Tribunal Administrativo, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma objecto deste recurso. Ora quando entrou em vigor o Decreto-Lei nº 223/71, vigorava o nº 1 do artigo
61º do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril, que incluía 'a cobrança coerciva de todas as dívidas de que seja credora a Caixa e suas instituições anexas' na competência dos (então) 'tribunais de primeira instância das contribuições e impostos'. Este preceito veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, diploma que transformou a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima, denominada Caixa Geral de Depósitos, S.A.
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 242/93, de 8 de Julho, restringiu o
âmbito do processo de execução fiscal 'exclusivamente à cobrança coerciva das dívidas ao Estado e a outras pessoas de direito público'.
Finalmente, há que ter em conta, por um lado, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, em particular os seus artigos 4º, cuja alínea f) exclui do âmbito da jurisdição respectiva 'questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público' e 62º, nº 1, c), segundo o qual 'compete aos tribunais tributários de 1ª instância conhecer: c) Da cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público, nos casos previstos na lei (...)'
(redacção que releva para este caso).
Quanto a estes últimos preceitos, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de julgar inconstitucional a interpretação da 'norma constante da alínea b) do nº 2 do artigo 233º do Código de Processo Tributário (...) com o sentido de que ela alterou a competência dos tribunais tributários definida no artigo 61º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 48.953 (...), e no artigo 62º, nº
1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (...), por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição' (Acórdão nº 172/96, atrás citado).
5. À data da instauração do processo de execução fiscal que deu origem ao presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, 15 de Dezembro de 1993, estava em vigor o Decreto-Lei nº 203/89 e, portanto, a norma cuja aplicação foi recusada pelo Supremo Tribunal Administrativo, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
O Supremo Tribunal Administrativo fundamentou essa inconstitucionalidade na circunstância de, por um lado, os artigos 62º, nº 1, a) do ETAF e 233º, nº 2, b) do Código de Processo Tributário exigirem que uma lei determine 'quando é que uma dívida de uma pessoa de direito público será executada nos Tribunais Tributários', lei essa que só pode ser, ou lei da Assembleia da República, ou decreto-lei autorizado (alínea q) do nº 2 do artigo
168º da Constituição, no texto então em vigor) e, por outro, o Decreto-Lei nº
203/89 ter sido aprovado pelo Governo sem autorização legislativa.
A verdade, porém, como se demonstrou através da evolução legislativa atrás referida, é que o referido Decreto-Lei nº 203/89 – ou melhor, o seu artigo
2º – nada veio inovar no que toca à competência dos tribunais administrativos e fiscais para conhecerem das execuções por dívidas ao Fundo de Turismo. Limitou-se a reproduzir, apenas alterando a designação (entretanto modificada) da Caixa Geral de Depósitos, o regime vigente desde o Decreto-Lei nº 223/71, de
27 de Maio.
No acórdão nº 502/97 deste Tribunal, atrás citado, para o caso então em julgamento, julgou-se que 'a existência de legislação pré-constitucional que já havia integrado na competência dos tribunais tributários a cobrança coerciva de receitas dos antigos organismos de coordenação económica (...) elimina o carácter inovador à norma do art. 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho'. O mesmo se deve concluir, agora, para a norma que constitui o objecto do presente recurso, que também se limita a reproduzir legislação pré-constitucional, sem introduzir qualquer inovação.
Contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, e sustentado pelas partes neste recurso, não se verifica a inconstitucionalidade orgânica da norma em apreciação.
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Custas pelos recorridos, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 20 de Outubro de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida