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Proc. nº 334/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. H... e J... (ora recorrentes) impugnaram, no decurso da audiência final a que se procedeu no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, a decisão interlocutória aí proferida, que, considerando inexistir qualquer nulidade ou irregularidade na realização de tal diligência, admitiu a depor como testemunha um seu co-arguido, já condenado por decisão definitiva, (fls. 218-v).
2. O Supremo Tribunal de Justiça considerou, porém, verificada a alegada nulidade, pelo que anulou a decisão que ordenara a inquirição do referido co-arguido como testemunha, bem como a do correspondente julgamento, já que considerou que tal depoimento havia relevado para a fundamentação da decisão condenatória proferida. Em consequência, ordenou o reenvio dos autos à 1ª Instância para a realização de um novo julgamento (fls. 428 e ss. dos autos).
3. Solicitaram então os recorrentes a aclaração daquela decisão, pedindo que fosse esclarecido qual o preceito legal onde se baseou a decisão aclaranda para ordenar o reenvio dos autos e qual a interpretação subjacente para que, ordenando o reenvio dos autos para a primeira instância, tenha sido ordenado novo julgamento, mas a ser efectuado pelo mesmo Tribunal e pelos mesmos Juizes, se possível.
4. Decidindo o pedido de aclaração, disse o STJ (fls. 486 e ss.):
'Anulou-se o julgamento, para ser repetido, não por constatação de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, mas por verificação da nulidade prevista no art. 118º, nº 3 do mesmo Código, situação englobável na previsão do aludido art. 410º. O que implica a realização da audiência de julgamento pelo mesmo tribunal (cfr. o que decorre do art. 426º e 436º do CPP), posição idêntica
à já assumida por este Supremo Tribunal (cfr. acórdão de 26/5/94, Processo nº
46.594, sendo Relator o Exmº Conselheiro Sá Nogueira). Neste aresto doutrina-se que o reenvio do processo só pode ter lugar quando se verifiquem os vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP e não os previstos no seu nº
3 (como é aqui o caso), em face do disposto no artigo 426º do mesmo diploma legal. O que realmente sucedeu, e de que nos penitenciamos, é que onde no acórdão em questão se fala em reenvio - posição devida a incorrecção, a falha, a lapso – o que se queria dizer, e não se disse, é que os autos devem ser «enviados ou remetidos», e em vez de «reenvio» se tinha em mente expressar «envio» dos autos. Nesta perspectiva, que foi a que presidiu na elaboração do acórdão e na parte em contestação, por lapso não devidamente expressa, constata-se que se cumprem as disposições legais, sem haver atropelo aos princípios substanciais invocados pelos reclamantes (...).'
5. Ainda inconformados os recorrentes arguiram depois a nulidade do acórdão aclarando, tendo concluído do seguinte modo:
'Certo é que o douto acórdão de fls. 428 e ss., por força das disposições ou fundamentos que atrás se indicam, padece de nulidade insanável, mesmo após as referidas aclaração e reformulação, que se requer seja declarada com todos os efeitos legais, pois que, por errada interpretação e aplicação, violou o disposto nos artigos 18º, nºs 2 e 3, 426º e 436º do CPP e o princípio constitucional da legalidade consagrado no art. 32º, nºs 1 e 2 da CRP'.
6. A pretensão dos requerentes foi, porém, rejeitada pelo acórdão de fls. 506 e
507, de 4 de Março de 1999, que considerou não se verificarem as nulidades invocadas.
7. Vieram os recorrentes de novo aos autos, desta vez para, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interporem recurso para este Tribunal, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas que, na interpretação da decisão recorrida, se extraem dos artigos 118º, nº 3, 410º, nºs 2 e 3, 426º e 436º do Código de Processo Penal.
8. Já neste Tribunal foram os recorrentes convidados a alegar, o que fizeram, tendo concluído da seguinte forma:
'1 – Certo é que o douto acórdão de fls. 428 e ss., por força das razões ou fundamentos que atrás se indicam, padece de inconstitucionalidade material, que se requer seja declarada com todos os efeitos legais, por, na interpretação que faz dos artigos 118º, nº 3, 410º, nºs 2 e 3, 426º e 436º do CPP, violar o princípio constitucional da legalidade consagrado no art. 32º, nºs 1 e 2 da CRP.
2 – Na verdade, constitui garantia constitucional do arguido que, quando obtém provimento o seu recurso por via do qual é anulado o julgamento e mandado repetir, este seja efectuado por Tribunal diferente (art. 426º, nº 1 do CPP e
32º, nºs 1 e 2 da CRP)'.
9. Notificado para responder, querendo, às alegações apresentadas pelos recorrentes, disse o Ministério Público, a concluir:
'1º - Não tendo os recorrentes suscitado, no âmbito do recurso que interpuseram perante o Supremo Tribunal de Justiça, podendo perfeitamente tê-lo feito, a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas constante dos artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal – sendo patente que, face à natureza do vício invocado, não haveria lugar ao reenvio para novo julgamento, mas tão somente à anulação dos termos processuais subsequentes à nulidade cometida – falta um essencial pressuposto do recurso interposto com base na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
2º - São situações perfeitamente diferenciadas, na lei adjectiva penal, o reenvio do processo para novo julgamento, em consequência de a própria decisão proferida sobre a matéria de facto padecer das insuficiências, contradições ou incongruências intrínsecas tipificadas no nº 2 do art. 410º do CPP, e a simples anulação do julgamento como mero reflexo do cometimento de uma nulidade de processo, susceptível de se repercutir na tramitação ulterior da causa.
3º - Só na primeira daquelas situações – de particular gravidade, por traduzir a existência de vícios lógicos e intrínsecos da decisão tomada sobre a matéria de facto – prevê a lei de processo penal o impedimento dos juizes que intervieram na prolação da decisão anulada, determinando o consequente desaforamento do processo para o tribunal colectivo mais próximo (artºs 426º e 436º do Código de Processo Penal).
4º - Porém, carece de fundamento bastante tal suspeição quanto à objectividade e imparcialidade do julgador a quem é cometida a repetição do julgamento quando o tribunal ad quem se haja limitado a anular o processado subsequente ao cometimento de certa nulidade de processo, a qual implica reflexamente a anulação dos termos ulteriores da causa.
5º - Não violando, deste modo, o princípio das garantias de defesa a circunstância de – não estando em causa as nulidades de sentença resultantes dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal – não ficarem impedidos de funcionar os juizes que intervieram no primeiro julgamento, reflexamente anulado.
6º - termos em que – a não proceder a questão prévia suscitada – deverá ser julgado improcedente o presente recurso'.
10. Responderam depois os recorrentes à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, para sustentarem a sua improcedência, por, em síntese, entenderem que não tiveram oportunidade processual de, antes da decisão recorrida, ter suscitado a questão de constitucionalidade que agora pretendem ver apreciada. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação
8. Questão prévia: admissibilidade do recurso.
8.1. Importa, antes de mais, decidir a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, uma vez que se for de concluir, como sustenta o Exmº Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, que os recorrentes não suscitaram durante o processo, podendo perfeitamente tê-lo feito, a questão de constitucionalidade que agora pretendem ver apreciada, falta efectivamente um essencial pressuposto do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. De facto, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica – ou de uma sua interpretação normativa – e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso. Ora, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal (veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o Tribunal recorrido a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita (ou seja: em regra, antes da prolação da sentença). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada que, em princípio, o requerimento de arguição de nulidades da decisão não constitui meio ou momento processualmente adequado para suscitar a questão de inconstitucionalidade, uma vez que a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material da decisão, não sendo, portanto, causa de nulidade da mesma (v., por todos, o Acórdão nº 450/87, in Acórdãos do T.C., 10º vol., pp. 573). Somente tem este Tribunal admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica – ou de uma sua interpretação normativa – seja suscitada depois de proferida a decisão recorrida em hipóteses, excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo é precisamente a daqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão.
É precisamente esta a hipótese que os ora recorrentes entendem verificar-se nos autos, e que, no seu entender, justifica que se considere tempestiva a suscitação da questão da constitucionalidade já depois de proferida a decisão recorrida. Vejamos se é assim.
8.2. No caso dos autos os recorrentes impugnaram perante o Supremo Tribunal de Justiça a decisão interlocutória que admitiu a depor como testemunha um seu co-arguido, considerando traduzir essa admissibilidade uma nulidade processual, e requereram, em consequência, a anulação do despacho que admitiu essa depoimento, bem como de todo o processado subsequente. O Supremo Tribunal de Justiça deu razão aos recorrentes e, em consequência, ordenou o reenvio dos autos à 1ª Instância, 'a fim de se proceder aí a um novo julgamento a efectuar pelo mesmo Tribunal e, se possível, pelos mesmos Magistrados'. Esclareceu depois o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de um pedido de aclaração daquela decisão, que, não sendo o vício que motivava a repetição do julgamento um dos referidos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal
(mas no nº 3), considerava não ser aplicável ao caso sub judice o disposto nos artigos 426º e 436º daquele diploma, pelo que não haveria lugar ao reenvio do processo, nos termos aí previstos, com a consequência da competência para o novo julgamento passar a caber a um tribunal diferente do que proferiu a decisão impugnada.
É esta interpretação normativa dos artigos 426º e 436º do CPP - segundo a qual só há lugar ao reenvio do processo, nos termos aí previstos, nas hipóteses em que se verifica um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP - que os recorrentes consideram dever qualificar-se como uma 'decisão-surpresa', em termos de permitir a suscitação da inconstitucionalidade da interpretação normativa que está na sua base já depois de essa mesma decisão ter sido proferida.
É, porém, evidente que não lhes assiste razão. Não estando manifestamente em causa um dos vícios a que se refere o nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal era efectivamente previsível que o Supremo Tribunal de Justiça - caso viesse, como veio, a considerar procedente a invocada nulidade – não viesse a aplicar o regime previsto nos artigos 426º e
436º daquele diploma. De facto – como, bem, refere o Ministério Público na sua alegação – 'quer da própria literalidade dos artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal, quer da própria jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., v.g., o Acórdão de 26/5/94, in CJ 2/94, pág. 236) resulta claramente que – a proceder o recurso, com base no reconhecimento de que fora cometida a nulidade de processo arguida pelos recorrentes - o Supremo Tribunal de Justiça se limitaria a proferir decisão estritamente anulatória, conferindo consequentemente ao próprio tribunal a quo – e não a outro órgão jurisdicional diferente – a realização dos actos processuais (incluindo o julgamento) anulados em consequência da procedência do recurso'. A interpretação normativa que o Supremo Tribunal de Justiça fez dos artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal - não subsumindo ao regime aí previsto a situação sub judice, por não estar em causa nenhum dos vícios do artigo 410º, nº
2 - não pode, pois, qualificar-se como imprevisível ou inesperada, em termos de não ser exigível aos recorrentes que a antecipassem, de modo a impor-se-lhes o
ónus de suscitar a questão da sua constitucionalidade antes da prolação dessa decisão. Pelo contrário, estando em perfeita consonância quer com o teor literal dos preceitos quer como com a anterior jurisprudência daquele Tribunal era perfeitamente exigível aos ora recorrentes que tivessem feito um juízo de prognose relativo à sua utilização, suscitando logo, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a questão da sua inconstitucionalidade. Não o tendo feito, podendo fazê-lo, não se verificam as razões que justificam o afastamento da regra no sentido de que a questão de inconstitucionalidade só é suscitada durante o processo se o for antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja, antes da prolação da sentença. Não tendo, pois, sido suscitada durante o processo a questão da constitucionalidade que os recorrentes agora pretendem ver apreciada, conforme exige a al. b) do nº 1 do art. 70º da lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual é interposto o recurso, não se pode, efectivamente, conhecer do seu objecto III Decisão Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 U.C. por cada um deles. Lisboa, 21 de Dezembro de 1999 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Luís Nunes de Almeida