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Proc. nº 497/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – Pela decisão sumária proferida a fls. 160 e segs foi decidido não se tomar conhecimento do recurso interposto por JL e mulher ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da LTC, do acórdão da Relação de Lisboa.
Escreveu-se na referida decisão:
'1 - JL e mulher, com os sinais dos autos, interpõem recurso para este Tribunal do acórdão da Relação de Lisboa de fls. 148 e sgs., ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82.
No requerimento de interposição de recurso dizem os recorrentes que
'consideram violado o disposto no nº 5 do art. 20º e art. 202º da Constituição da República Portuguesa tendo suscitado a questão de inconstitucionalidade do art.º 712º do C. P. Civil nas alegações e conclusões do recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra na parte que limita o conhecimento da matéria de facto pela 2ª instância'.
Nos termos do artigo 72º nº 2 da Lei nº 28/82, 'os recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer.'
2 - Entende-se, desde já, que os recorrentes não suscitaram a questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido de modo processualmente adequado.
Nas alegações para o Tribunal que proferiu o acórdão agora impugnado, disseram os recorrentes, depois de terem censurado a decisão da 1ª instância em matéria de facto, quanto aos factos provados e não provados, designadamente pelo relevo dado a determinados depoimentos em detrimento de outros:
'7 - Estamos perante um caso emblemático em que se verifica a necessidade de o Venerando Tribunal da Relação conhecer sem reservas ou limitações da matéria de facto dado o erro do Tribunal da 1ª Instância na apreciação da dita matéria de facto.
8 – Esta impossibilidade total de novo julgamento e nova apreciação de prova pelo Tribunal de Recurso consignada no artº 712º do C. P. Civil traduz-se numa inconstitucionalide desta disposição legal por falta de garantias de defesa o que se invoca para todos os efeitos legais.'
Sobre esta mesma matéria levaram às conclusões das alegações o seguinte:
'X – As limitações previstas no artº 712º do C. P. Civil ao conhecimento pela Relação (2ª instância) da matéria de facto ofende as garantias de defesa dos direitos dos cidadãos, o que fere essa parte do artigo de inconstitucionalidade que se invoca'.
A propósito desta alegação, escreveu-se no acórdão recorrido:
'Pese embora o facto de os recorrentes não explicitarem, como lhes competia, a norma constitucional violada com o sentido atribuído àquela disposição processual, não se alcança em que termos a inconstitucionalidade se pode manifestar com a limitação, é certo, dos fundamentos de reapreciação da matéria de facto pela Relação.
Dispensamo-nos, pois, de mais ampla justificação.'
O trecho acabado de transcrever é revelador do não preenchimento do pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade acima referido
– a suscitação da questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado.
Na verdade e desde logo, composto o artigo 712º do CPC de 6 números, não individualizam os recorrentes aquele ou aqueles que contêm a norma arguida de inconstitucionalidade, o que se agrava pela circunstância de os recorrentes aludirem à 'impossibilidade total de novo julgamento e de nova apreciação da prova' o que não se ajusta ao que aquele preceito legal contem.
Por outro lado, omitiram os recorrentes por completo qualquer menção
à norma ou normas constitucionais infringidas, quedando-se por uma vaga alusão
às 'garantias de defesa dos direitos dos cidadãos', sendo certo que, exigindo o citado artigo 72º nº 2 da Lei nº 28/82 que a suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado seja feita 'perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida', a omissão não é suprida com a indicação, agora feita no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, daquelas normas constitucionais.
Não há, ainda, a menor substanciação na arguição de constitucionalidade que o referido pressuposto do recurso impõe.
Não se deixará, contudo, de dizer que sempre se justificaria a prolação de decisão sumária nos termos do artigo 78º-A nº 1 da Lei nº 28/82 por a questão a decidir ser simples, enquanto manifestamente infundada.
3 - Estaria, como se viu, em causa, a limitação, em processo civil, dos poderes de cognição da 2ª instância – como instância de recurso – em matéria de facto.
Trata-se, pois, não de uma inadmissibilidade de recurso, ou de 2º grau de jurisdição, mas de limites que o legislador impôs, no recurso em processo civil, ao conhecimento da matéria de facto fixada em 1ª instância, limites – diga-se, desde já – que a nova redacção dada ao artigo 712º do CPC ampliou consideravelmente, com especial relevo para a faculdade da Relação determinar a renovação da prova quando absolutamente indispensável à reapreciação da decisão de facto proferida em 1ª instância (nº 3).
Ora, há muito que se sedimentou no Tribunal Constitucional uma jurisprudência firme no sentido de que a Constituição não garante, ao menos como direito absoluto, o acesso a um 2º grau de jurisdição em matéria não penal.
Entende-se, com efeito, que podendo o direito de acesso à justiça compreender o direito ao controle (jurisdicional) dos actos judiciais – o que igualmente se depreenderia do facto de a CRP reconhecer a existência de uma linha hierárquica na ordem dos tribunais judiciais – esse direito não é, de modo nenhum irrestrito.
Escreveu-se, a propósito, no Acórdão nº 501/96, de 20 de Março de 1996, in Acórdãos do Tribunal Constitucional 33º vol. págs. 711 e segs.:
'O Tribunal Constitucional tem entendido que a garantia judiciária (artigo 20º nº 1 da Constituição) engloba o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais (Acórdão nº 287/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional 17º vol. pp. 159 e segs.; identicamente Gomes Canotilho e Vital Moreira ob. cit, p. 162). E este direito só pode ser exercido mediante o recurso para (outros) tribunais, Por outro lado, a expressa previsão de tribunais de 1ª instância e de recurso também fornece um argumento a favor da dignidade constitucional do direito de recurso (Acórdão nº 287/90, citado e Ribeiro Mendes Direito Processual Civil, Recursos, 2º ed., 1992, p. 100). Todavia, não se pode concluir que haja, na ordem jurídica portuguesa um ilimitado direito de recurso, o que implicaria, por exemplo, a inconstitucionalidade do instituto das alçadas judiciais. O Tribunal Constitucional tem entendido – tal como já sustentara a Comissão Constitucional
– que o direito de recurso não é absoluto ou irrestringível (Acórdãos nºs 31/87 e 65/88, Diário da república, II Série, de 1 de Abril de 1987 e 20 de Agosto de
1988 e Parecer nº 9/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., 1984, pp29 e segs.). Ressalvada está a matéria penal, em que se considera que o direito de recurso constitui garantia de defesa, ante o disposto no artigo 32º nº 1 da Constituição (Acórdãos nº 202/86 e 8/87, Diário da República, II Série, de 26 de Agosto de 1986 e I Série, de 9 de Fevereiro de 1987, respectivamente). Consequentemente, apenas está consagrado – em matérias não penais – um genérico de direito de recurso, ou, noutra linguagem, a um duplo grau de jurisdição. O seu conteúdo pode ser delimitado pelo legislador, que pode racionalizar este instituto processual, reservando o exercício do direito aos casos com maior dignidade (crfr. Ribeiro Mendes, ibid.) ou afectá-lo substancialmente (cfr. Acórdão nº 287/90, cotado e Fernão Thomaz e Colaço Canário, 'O Objecto do Recurso em Processo Civil', Revista da Ordem dos Advogados, nº 42 (1982), pp.
366 e segs.), entendendo-se como 'substancial' uma redução intolerável ou arbitrária, incompatível com o princípio do Estado de direito democrático
(artigo 2º da Constituição)'.
Aqui se sintetiza, em termos gerais, o que tem sido a jurisprudência deste Tribunal sobre o direito ao recurso e, como se vê, ele próprio - e não já a concreta conformação que o legislador dá a um determinado recurso - pode, sem ofensa constitucional, estar ou não previsto.
Note-se, aliás, que, mesmo em matéria penal, o Acórdão nº 573/98, in Diário da República, II Série, de 13/11/98, julgou não inconstitucional o disposto no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, relativo a limites dos poderes de cognição do tribunal de recurso em matéria de facto, sendo inegável a maior amplitude desses poderes no âmbito do artigo 712º do CPC.
Em suma, considerando a jurisprudência deste Tribunal sobre o direito de recurso, transponível por clara maioria de razão para o caso dos autos, seria manifesta a falta de fundamento do presente recurso.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão não se toma conhecimento do presente recurso.
Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.'
Desta decisão sumária vêm agora os recorrentes reclamar para a conferência, nos seguintes termos:
'JL e mulher, recorrentes no processo à margem indicado, tendo sido notificados do, aliás douto e bem elaborado, despacho que não admitiu o recurso interposto do acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, vem reclamar para a conferência, o que se faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1º - Diz o douto Conselheiro, no nº. 2 do despacho de que se reclama, o seguinte:
'2 – Entende-se, desde já, que os recorrentes não suscitaram a questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido de modo processualmente adequado.'
A signatária entra apenas nesta fase processual, mas, analisando o processo com sentido crítico e pragmático, pedimos a devida vénia para discordar.
As decisões judiciais hão-de, na sua essência, culminar com a resolução de casos da vida real e comum, mas por questões formais, não atingem tal desiderato ou objectivo final.
Sem ofensa, não se deve decidir se o fato assenta bem no manequim de pau quando o corpo a quem esse fato se destina vai servir a quem tem um braço mais comprido que o outro
2º - No caso dos autos a inconstitucionalidade da questão suscitada é a impossibilidade de o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra não ter feito uso da faculdade concedida pelo artigo 712º do C.P. Civil por lhe não terem sido facultado elementos de prova constantes de providência cautelar de onde constavam tais elementos de prova. Assim, o Venerando Tribunal não fez a aplicação de tal norma pela violação havida de que ao Tribunal Superior têm de ser remetidos todos os elementos que serviram de prova para ser proferida a decisão de 1ª instância. Não podem os Ilustres Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra criticar superiormente a decisão que lhes é submetida se lhe forem sonegados os instrumentos essenciais para fundamentar a crítica. Um só exemplo de tais elementos é o da prova contida na providência cautelar de embargo de obra nova que inviabilizaria o depoimento da testemunha SB, anterior proprietária da casa vendida aos RR. que devia ser considerada testemunha não isenta, mas interessada. Na verdade, o valor de venda de uma velha casa para reconstruir é mais elevado de acordo com a hipótese de poder construir dois andares e não um só. Porém, só foi considerado não isento o testemunho da irmã da Autora mulher. O relatório técnico existente na providência cautelar de embargo de obra nova dissiparia e contrariava matéria dada como provada nos quesitos 28 a 35. Ora, se, ao Venerando Tribunal da Relação fosse facultado o processado no embargo de obra nova que decretou a suspensão da construção da casa dos Réus acima do primeiro andar, certamente a prolação do douto acórdão teria outra conclusão;
3º - Acresce que as instâncias interpretaram erradamente a disposição legal contida no artigo 1362º do C. Civil. Os AA., ora recorrentes compraram a casa em 1973 e na cozinha e casa de banho existiam três janelas com as dimensões seguintes: o Uma com 63 cm de largura e 48,5 cm de altura, a 1,55 m do soalho; o Outra com iguais dimensões a 1,52 m do soalho; o Outra com 71,5 cm de altura e 48,5 cm de largura, a 1,45 m soalho. E nessas janelas nunca houve sinais de grades ou redes como bem se veria da providência cautelar.
4º - No processo, alega-se a violação do artigo 334º do C. Civil por a actuação do RR ser, no essencial, subsumida como Abuso de Direito, e a impossibilidade de o Tribunal da Relação de Coimbra não poder usar a faculdade prevista no artigo
712º do C.P. Civil, faculdade para alterar as respostas dadas aos quesitos em face da matéria provada por documentos na providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova que o Tribunal Judicial da Guarda não remeteu como requerido fora. Como consequência, verificou-se a violação das normas constitucionais, artigo
20º nº. 5 de forma a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos de liberdade e garantia pessoais, bem como o direito à habitação de dimensões adequadas, em condições de higiene e conforto previsto no artigo 65º da mesma CRP. Pergunta-se, pois: Ao serem fechadas e entaipadas as janelas da cozinha e, casa de banho da casa dos AA, que ficaram sem qualquer respiração, extracção de fumos e cheiros, a casa tem condições de higiene e conforto que o diploma primordial da República prevê? Achamos que não. Em conclusão Os AA, ora recorrentes, utilizaram a forma adequada, embora não suficientemente definida, para arguir a inconstitucionalidade por interpretação deficiente de norma jurídica e não aplicação do artigo 712º do C.P. Civil por o Tribunal da 1ª instância não fornecer todos os elementos de prova ao Tribunal Superior – O Tribunal da Relação de Coimbra.' Cumpre decidir.
2 – A reclamação para a conferência de uma decisão sumária é o meio processual através do qual o reclamante manifesta a sua discordância relativamente ao decidido e expõe os fundamentos dessa discordância. Ora, no caso, não se vislumbra a mínima censura dirigida à decisão em causa limitando--se os reclamantes a discordar do julgado no acórdão recorrido e indicando agora a norma constitucional que teria sido violada Ora, como ficou bem explícito na decisão transcrita, não é este o momento oportuno, como já não o era, também. o da interposição do recurso de constitucionalidade, para serem indicados os preceitos constitucionais violados. Esta indicação deveria ter sido feita aquando da suscitação de inconstitucionalidade durante o processo, como se entendeu na mesma decisão e onde se escreveu:
'(...) exigindo o citado artigo 72º nº. 2 da Lei nº. 28/82 que a suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado seja feita
'perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida', a omissão não é suprida com a indicação, agora feita no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, daquelas normas constitucionais.'. Por um lado, e mais uma vez, não individualizam os recorrentes o número ou números do artigo 712º do CPC que, no seu entender, contêm a norma supostamente inconstitucional. Cabe, aliás, referir que os recorrentes mal encobrem a sua concordância com o decidido, no que concerne ao modo (não processualmente adequado) como suscitaram a questão de constitucionalidade ao alegarem que '... utilizaram a forma adequada, embora não suficientemente definida, para arguir a inconstitucionalidade (...)' Acrescenta-se e relativamente à invocação da norma do artigo 712º do CPC como violadora da Constituição, que os ora reclamantes deixam agora a claro que a imputação de inconstitucionalidade acaba por se não reportar àquela norma mas ao que consideram ser uma ilegalidade cometida pela 1ª instância por não ter sido junto aos autos o procedimento de embargo de obra nova onde constavam elementos de prova que determinariam respostas diversas ao questionário. Torna-se, assim, evidente que tal questão nada tem a ver com uma questão de inconstitucionalidade normativa que legitimaria o recurso de constitucionalidade. De todo o modo, e decisivamente, como se deixou bem explícito na decisão sumária reclamada, sem que agora se tornem necessárias outras considerações, o recurso é manifestamente infundado
3 – Decisão Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2000 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa