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Processo nº 629/2000
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 299, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1. Por sentença de 30 de Junho de 1999, de fls. 206, do Tribunal Judicial de Abrantes, foi julgada improcedente a acção que JS e mulher, AT, propuseram contra AF e mulher, MT, destinada a obter a denúncia do contrato de arrendamento do prédio devidamente identificado nos autos, por necessidade da casa para habitação própria. Esta sentença veio, todavia, a ser revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30 de Março de 2000, de fls. 258, no recurso interposto pelos autores, sendo decretado o despejo. Pelo requerimento de fls. 273, de 7 de Abril seguinte, os réus vieram pedir a reforma deste acórdão, ao abrigo do disposto na al. a) do nº 2 do artigo 669º e no nº 1 do artigo 716º do Código de Processo Civil. Para o efeito, e apenas para o que agora interessa, invocaram que, pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº
97/2000, publicado no Diário da República, I-A, de 17 de Março de 2000, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da al. b) do nº 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro; assim, teria de ser aplicado ao caso 'o artigo 2º, nº 1, al. b), da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, deste modo repristinado, que introduziu como limitação ao direito de denúncia o facto de ‘manter-se o inquilino na unidade predial há vinte anos, ou mais nessa qualidade’'. Ora esta condição verificava-se desde 1 de Fevereiro de 1992; o acórdão recorrido teria, portanto, aplicado norma inconstitucional, razão pela qual deveria ser reformado, de forma a ser negado provimento à apelação. O Tribunal da Relação de Évora, porém, por acórdão de 8 de Junho de 2000, de fls. 282, negou o pedido de reforma, com fundamento, também apenas no que aqui releva, em que não havia sido invocada pelos réus a excepção peremptória correspondente. 'Ora, não sendo invocada a limitação decorrente do facto de o R. ser arrendatário do 1º andar há mais de 20 anos – não obstante a questão da inconstitucionalidade (orgânica e até material) da inovação da alínea b) do nº 1 do artº 107º [que passou o prazo de 20 para 30 anos] estar desde há muito na ordem do dia – não podia o tribunal conhecer da referida excepção. E não conhecendo, não se pode dizer que o tribunal aplicou a norma inconstitucional e, muito menos, que o sentido da decisão se deveu a lapso manifesto'. Inconformados, os réus vêm recorrer para o Tribunal Constitucional, pelo requerimento de fls. 286. O recurso foi admitido, embora com dúvidas (cfr. despacho de fls. 291), em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
2. Convidados, pelo despacho de fls. 292, a completarem aquele requerimento, vieram os recorrentes esclarecer o seguinte:
'I) A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal declare (...)
é a constante do art. 107º, nº 1, al. b) do Regime do Arrendamento Urbano (...); e, além dessa, a do artigo 498º [admite-se que se queiram referir ao artigo
489º], nº 1, do Código de Processo Civil, no sentido de que esse preceito exclua a dedução posteriormente à contestação de meios de defesa cujo conhecimento não fosse razoavelmente exigível, à data da entrega do articulado. II) A alínea do artigo 70º, nº 1, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o recurso é interposto é a alínea g), visto que, nestes autos, foi aplicada, pelo douto acórdão recorrido, em 30 de Março de 2000, a norma do citado art. 107º, nº 1, al. b) (...), que fora já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, no acórdão nº 97/2000, de 16 de Fevereiro de 2000, publicado no 'Diário da República', Série I-A, de 17 de Março de 2000 (...); além da alínea g), abona-se o presente recurso, igulamente, na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, com o pequeno senão de que não chegou a ser explicitamente proferida decisão, como o deveria ter sido, sobre a suscitada inconstitucionalidade do irrazoável entendimento com que, também sem expressamente o nomear, se aplicou o artigo do Código de Processo Civil que manda, como regra, deduzir toda a defesa na contestação, o art. 498º
[489º], nº 1 desse diploma.' Esclarecem ainda os recorrentes que consideram 'com referência à al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional' que a norma constitucional violada foi 'a do artigo 168º, nº 1, alínea h) da Constituição
(...) e o princípio da proporcionalidade ou da proibição do arbítrio, que dele decorre', e que invocaram a inconstitucionalidade no requerimento em que pediram a reforma do acórdão recorrido, no que toca à al. b) do nº 1 do citado artigo
107º do Regime do Arrendamento Urbano; relativamente ao nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, 'na reclamação da nulidade do acórdão proferido sobre o pedido de reforma'. A verdade é que não foi arguida a nulidade do acórdão que negou o pedido de reforma, devendo considerar-se que o recorrente se está a referir ao requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional; é o que parece depreender-se da leitura da resposta de fls. 293.
3. Não pode, porém, o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso, nem quanto à norma que o recorrente refere à al. b) do nº 1 do artigo
107º do Regime do Arrendamento Urbano, nem quanto à que refere ao nº 1 do artigo
489º do Código de Processo Civil. No que toca à primeira, a verdade é que não foi aplicada pelo acórdão recorrido; não vale a pena, portanto, analisar se teria cabimento invocar a alínea b) ou alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, porque, em qualquer caso, sempre seria indispensável que a norma tivesse sido aplicada efectivamente (cfr. as alíneas b) e g) citadas e, por exemplo, os acórdãos nºs 187/95 e 586/98, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 22 de Junho de
1995 e de 1 de Março de 1999).
4. Quanto à segunda, é manifesto, desde logo, que o acórdão recorrido não a aplicou com o sentido que o recorrente acusa de ser inconstitucional – 'no sentido de que esse preceito exclua a dedução posteriormente à contestação de meios de defesa cujo conhecimento não fosse razoavelmente exigível, à data da entrega do articulado' (resposta de fls. 293). Na verdade, o que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora decidiu foi, justamente, que 'a questão da inconstitucionalidade (orgânica e até material) da inovação da alínea b) do nº 1 do artigo 107º esta[va] desde há muito na ordem do dia', o que significa que não considerou que não fosse exigível ao recorrente a alegação da excepção peremptória em causa. Para além disso, não foi respeitado o ónus de invocar a inconstitucionalidade
'durante o processo', previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º citado, ou seja,
'a questão da inconstitucionalidade (...)' não foi colocada perante o tribunal recorrido 'de modo processualmente adequado (...), em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (nº 2 do artigo 72º da mesma Lei nº 28/82), uma vez que só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional o recorrente a suscitou. Ora o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 destina-se, como é sabido, à apreciação da constitucionalidade de normas, ou de interpretações normativas, que foram aplicadas na decisão de que se recorre, não obstante ter sido invocada a respectiva inconstitucionalidade durante o processo
(cfr., em particular, os artigos 70º, nº 1, b) e 79º-C da Lei nº 28/82). Como a lei também exige e este Tribunal tem reiteradamente julgado, o requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente – nomeadamente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Não ocorre, aqui, qualquer razão que justifique a dispensa do ónus correspondente, nos termos atrás explicitados. O sentido que o Tribunal da Relação de Évora atribuiu ao nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, implicitamente, foi o de que não era possível o julgamento de uma excepção peremptória de conhecimento não oficioso sem que ela tivesse sido alegada na contestação; é este o sentido, correspondente aliás à respectiva letra, com que aquele preceito é correntemente aplicado. Diga-se, aliás, que não se compreende como pode o recorrente pretender ter sido surpreendido com uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral em termos tais que tornasse inconstitucional tal interpretação da norma do nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil. Não se tratando de nenhum caso de inconstitucionalidade superveniente, sempre poderia o recorrente – como sucedeu nos casos julgados nos acórdãos que cita e que deram origem a essa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral – ter invocado a excepção na contestação e, simultaneamente, a inconstitucionalidade da norma constante da al. b) do nº 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano.
5. Encontram-se, assim reunidas as condições para que se possa proceder à emissão da decisão sumária prevista no artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Nestes termos, e pelos motivos indicados, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs. (artigos 84º, nºs
1, 3 e 5 da Lei nº 28/82 e 6º, nº 2 do Decreto-Lei nº 303/98, de 7 de Outubro).'
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, concluindo a sua reclamação da seguinte forma:
'1º) Como cabalmente acima se demonstrou, ao contrário do que pretende o douto acórdão recorrido, proferido sobre o pedido de reforma do não menos douto acórdão que decidiu a apelação, o tempo de arrendamento previsto na lei como causa impeditiva do direito de denúncia do senhorio, para sua habitação própria, configurando-se, efectivamente, como excepção peremptória, em termos jurídico-processuais, é de conhecimento oficioso, no sentido de que o Tribunal não pode ignorar o facto que conduza à procedência da dita excepção, desde que tenha sido articulado por qualquer uma das partes;
2º) Com efeito, o tempo de arrendamento, como causa impeditiva do direito de denúncia, não se estrutura como facti species de um direito potestativo, e, muito menos, de um direito subjectivo, em sentido estrito, não sendo, por conseguinte, susceptível de se constituir como suporte de um autónomo direito de acção, pois que poderia nem se ter sequer constituído o direito de denúncia do senhorio, pelo que careceria de razão de ser o ‘direito’ à ‘não denúncia’, do mesmo modo que, no âmbito da mesma relação locatícia, e operada a transmissão para outrem a posição do arrendatário, nada obstaria a que, verificados os requisitos que se lhe referem, surgisse ou ressurgisse depois o direito de denúncia do senhorio;
3º) Por conseguinte o tribunal a quo não só não estava impedido, como estava, acima de tudo, obrigado, a levar em consideração o facto assente de o arrendamento dos autos ter tido início em 1 de Fevereiro de 1972, pelo que se haviam completado já 20 anos de duração, à data de 18 de Janeiro de 1993, em que a acção foi instaurada;
4º) Desse modo, levando em consideração a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 107º, nº 2, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, o Tribunal a quo deveria ter julgado a acção improcedente, por aplicação do repristinado artigo 2º, nº 1, alínea b), da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro;
5º) Ao julgá-la, pelo contrário, procedente, e ao recusar o pedido de reforma, fundado na inconstitucionalidade do artigo 107º, nº 2, alínea b), que, irrecusavelmente, aplicou, torna-se patente a admissibilidade do recurso, nos termos da alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro;
6º) De nada vale o argumento de que tal aplicação não se teria verificado, porquanto supostamente, a procedência da excepção peremptória do tempo de arrendamento dependeria de expressa arguição da parte interessada – porque não depende, sendo de conhecimento oficioso;
7º) Logo, o douto acórdão recorrido, para todos os efeitos, aplicou norma já antes julgada inconstitucional, pelo Tribunal Constitucional;
8º) Para além disso, suscitada que foi a questão da inconstitucionalidade material do insustentável entendimento perfilhado pelo douto acórdão recorrido
(segundo o qual o Recorrente deveria ter deduzido na contestação, em 1993, um facto cuja relevância jurídica só em 17 de Março de 2000 se tornou inquestionável, com base numa questão de inconstitucionalidade orgânica que surgiu no ano de 1996, em que primeiro foi declarada, pelo acórdão da Relação do Porto, de 11 de Junho desse ano), – suscitada que foi, perante a Relação, a questão da inconstitucionalidade material de tal insólita interpretação, salvo o devido respeito, e, desse modo, arguida a nulidade do referido acórdão, proferido sobre o pedido de reforma, cumpriria que tal questão fosse decidia, também por acórdão, conforme preceitua o artigo 207º, nº 2, do Cod. Proc. Civil, na anterior redacção, aqui aplicável;
9º) Como não foi proferida, sobre a questão suscitada (envolvendo a prática de um acto que a lei, a Constituição, não admite) qualquer espécie de decisão, tempos configurado nos autos o vício de inexistência jurídica;
10º) Pelo que, em bom rigor, se deverá ordenar a baixa do processo ao Tribunal recorrido, a fim de que profira a decisão que omitiu;
11º) Sem prejuízo do que se sustenta, e se mantém, como demonstrado ficou, ser imediatamente admissível o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Termos em que, a menos que se ordene a baixa do processo, para que no Tribunal recorrido seja proferida a decisão omitida, sobre a questão de inconstitucionalidade material, deve ser admitido o recurso interposto, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea g), do Decreto-Lei [sic] nº 28/82, de 15 de Novembro.'
Notificados para o efeito, os recorridos não responderam.
3. Cabe começar por verificar que os reclamantes apenas impugnam o não conhecimento do recurso na medida em que é interposto ao abrigo do disposto na al. g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro; assim, está assente a sua não admissibilidade enquanto fundado na al. b) do mesmo nº 1.
4. E a verdade é que também não pode ser conhecido o recurso interposto nos termos da al. g) citada, como se julgou na decisão reclamada, pelas razões nela apontadas. Sustentam os reclamantes, em síntese, que, sendo de conhecimento oficioso o que qualificam como excepção peremptória do 'tempo do arrendamento (...) quer se queria, quer não, o douto acórdão recorrido fez efectiva aplicação daquele dispositivo legal' (da al. b) do nº 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano). Há, todavia, que recordar que o recurso que foi interposto para o Tribunal Constitucional se restringe, como se sabe, ao julgamento de questões de constitucionalidade normativa, estando fora do seu âmbito apreciar a forma como a decisão recorrida aplicou o direito ordinário para julgar a causa. Está portanto manifestamente fora dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre o problema de saber se é ou não de conhecimento oficioso o facto de que o arrendamento em discussão durou mais de vinte anos, seja qual for a sua qualificação processual no contexto desta acção de denúncia. Assim, apenas há que confirmar que o acórdão recorrido não aplicou a norma do Regime do Arrendamento Urbano que foi objecto da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral invocada pelos reclamantes.
5. Finalmente, cumpre analisar o pedido de envio do processo ao Tribunal da Relação de Évora que parece (pois que a conclusão não é clara quanto a este ponto) resultar da reclamação, 'para que no Tribunal recorrido seja proferida a decisão omitida, sobre a questão de inconstitucionalidade material'. Sustentam os reclamantes que o Tribunal da Relação de Évora não conheceu da nulidade cuja arguição cumularam com o requerimento de interposição de recurso
(reclamação, fls. 369).
É manifesto que essa questão também não pode ser colocada no âmbito do recurso de constitucionalidade que agora se julga. Ainda que se pudesse interpretar o requerimento de fls. 286 como contendo, simultaneamente, a arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de
Évora que negou o pedido de reforma e o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a verdade é que os reclamantes não invocaram oportunamente a alegada omissão: não o fizeram quando o recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido pelo Tribunal da Relação de Évora, nem quando foram convidados a completar o requerimento de interposição de recurso pelo despacho de fls. 292. O prazo para arguir a nulidade terminou, em rigor, dez dias depois da notificação do despacho de admissão do recurso de constitucionalidade
(artigos 153º, nº 1, do Código de Processo Civil e 69º da Lei nº 28/82). Assim, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida