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Processo n.º 444/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A... e sua mulher, M...., por si e como representantes legais de seu filho menor, MF..., viram ser julgada improcedente a acção de despejo que propuseram, em 22 de Abril de 1993, contra AF... e a mulher deste, MM..., com o objectivo de, com fundamento na necessidade da casa para nela instalarem a sua habitação, denunciarem o contrato da arrendamento que, tendo por objecto o 3º andar do prédio urbano sito na Rua Casimiro Freire, nºs 13-A e 13-B, em Lisboa, fora celebrado entre o réu marido e uma anterior proprietária do imóvel: a COMPANHIA DE SEGUROS M.... Apelaram, então, da sentença para a Relação, outro tanto fazendo os réus, embora estes tenham recorrido subordinadamente.
A Relação, por acórdão de 16 de Março de 1999, julgou procedente a apelação
(subordinada) dos réus e prejudicado o conhecimento da apelação dos autores. Para assim concluir, a Relação julgou inconstitucional a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), da Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), a um duplo título: organicamente, em virtude de, na Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, ao abrigo da qual tal norma foi editada, não descortinar a existência de autorização legislativa para a sua edição; materialmente, porque, residindo os réus no arrendado há mais de 20 anos
(o arrendamento foi celebrado em 1 de Junho de 1964), tal norma foi, no caso, interpretada - e aplicada - no sentido de abranger casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio.
É deste acórdão da Relação de Lisboa (de 16 de Março de 1999) que os autores interpõem o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do mencionado artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro).
Neste Tribunal, alegaram os recorrentes, que depois de dizerem julgarem 'não haver inconstitucionalidade porque apenas se corrigiu o regime objectivo da lei sem lesão de qualquer direito que a lei anterior concedesse ao arrendatário', concluíram que se deve revogar o acórdão recorrido.
Os recorridos concluíram que o recurso não deve proceder.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio. Em apreciação nestes autos está a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de
15 de Outubro), que dispõe como segue: Artigo 107º (Limitações)
1. O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do n.º 1 do artigo 69º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: b). Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade.
A norma acabada de transcrever aumentou de 20 para 30 anos o tempo de permanência do arrendatário no local arrendado, que a alínea b) do artigo 2º da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro, considerava bastante para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio.
Como se viu, a norma em causa está aqui sub iudicio, por uma dupla razão: por ter procedido ao aumento do tempo de permanência de 20 para 30 anos, sem que o Governo estivesse autorizado a fazê-lo pela Assembleia da República; e por ter sido interpretada no sentido de abranger casos como o dos autos em que o prazo de 20 anos já tinha decorrido integralmente, no domínio da lei antiga.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. A inconstitucionalidade orgânica. Este Tribunal, no seu acórdão n.º 70/99 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Abril de 1999), julgou inconstitucional a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), com fundamento em que ela viola o disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea h), da Constituição, 'na medida em que consagra uma solução não abrangida pelo artigo 2º, alínea c), da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto (lei de autorização legislativa)'. E repetiu esse julgamento de inconstitucionalidade, nos acórdãos nºs 269/99 e 273/99 (o primeiro, por publicar, e o segundo publicado no Diário da República, II( série, de 21 de Outubro de 1999): aqui, com a discordância do ora relator, que, remetendo-se para o essencial dos votos de vencido dos Conselheiros Vítor Nunes de Almeida e Paulo Mota Pinto naquele acórdão n.º 70/99, se pronunciou no sentido de que a Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, autorizava o Governo a editar a norma em causa.
Pelas razões expostas in extenso em tais arestos - para as quais aqui se remete
- e por violação do disposto no mencionado preceito constitucional, o Tribunal também agora conclui pela inconstitucionalidade da norma em causa, continuando, porém, o relator vencido nesse julgamento.
4.2. A inconstitucionalidade material. O Tribunal também já julgou inconstitucional a norma constante do referido artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio. Fê-lo, primeiro, no acórdão n.º
259/98 (publicado no Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 1998) e, posteriormente, no acórdão n.º 270/99 (publicado no Diário da República, II série, de 13 de Julho de 1999). Sublinhou-se nesses arestos que, não podendo já o senhorio, no momento da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano, exercer o direito de denúncia do arrendamento, achava-se criada uma situação que, para o arrendatário, representava 'uma mais-valia de protecção da sua permanência no local arrendado': o direito de aí permanecer tinha passado a ancorar-se 'no postulado da segurança jurídica que deriva do princípio do Estado de Direito'. Por isso, não se descobrindo fundamento capaz de justificar a eliminação desse direito, é o mesmo violado, de forma intolerável, pela referida norma, quando interpretada nos termos indicados. Ou seja: tal norma viola o direito que, com o decurso do tempo, os arrendatários tinham adquirido a permanecer no arrendado sem o risco de denúncia do contrato - e, com isso, viola aquele mínimo de certeza e de segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito: impõe-se, de facto - como se pôs em evidência no acórdão n.º 330/90
(publicado no Diário da República, II série, de 19 de Março de 1991) - que este organize 'a protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida'.
Também agora, pelas razões apontadas - e por violação do princípio do Estado de Direito -, se impõe concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), quando interpretada no sentido indicado.
5. Conclusão. Há, pois, que negar provimento ao recurso e confirmar o julgamento de inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional - por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea h), da Constituição - a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro);
(b). julgar inconstitucional - por violação do disposto no artigo 2º da Constituição - a mesma norma [ ou seja: a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro)] , interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio;
(c). em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar o julgamento de inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido.
(d). condenar os recorrentes nas custas, fixando em 15 unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 21 de Dezembro de 1999 Messias Bento (vencido quanto à alínea, conforme supra 4.1). Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida