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Proc. nº 48/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
(Cons.ª Maria dos Prazeres Beleza)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. Inconformados com a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães que lhes indeferiu o recurso interposto da rejeição de diligências instrutórias requeridas pelos arguidos D... e outros (ora recorrentes), reclamaram estes para o Exmº Presidente do Tribunal da Relação do Porto, que indeferiu essa reclamação com base na seguinte fundamentação:
'O regime consagrado no nº 1 do art. 291º do CPP não viola as garantias de defesa – art. 32º, nº 1 da Constituição e, especificamente, o direito ao recurso ou a um duplo grau de jurisdição. Aliás, compreende-se que o legislador para evitar expedientes que inexplicavelmente arrastassem a fase instrutória entendeu, e bem, decidir expressamente a irrecorribilidade do despacho que indefere os actos requeridos que não interessem à instrução. Recorda-se que na instrução «o juiz só deve ordenar as diligências de prova que interessar realizar...». Em suma, compreende-se ser admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros actos judiciais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa – o que é o caso (ver. Ac. do Tribunal Constitucional nº 31/87 e 177/88, vol. 9º, pág. 467-469 e vol. 12, pág. 596 e ss.) respectivamente para cujo fundamento se remete e que respondem, em parte, à argumentação deduzida pelos recorrentes. Nesta conformidade, a nosso ver o disposto no art. 291º, nº 1 do CPP não é inconstitucional. Assim sendo, indefiro a presente reclamação'.
2. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade, que tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 291º, nº 1 do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, na parte em que determina a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere o requerimento de realização de diligências instrutórias.
3. Já neste Tribunal foram os Recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo sustentado que a norma objecto de recurso é inconstitucional 'por violação do disposto nos art.s 20º e 32º e «a contrario» dos artigos 209º, nº 1, al. a) e 210º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'.
4. Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação.
5. Nos seus acórdãos nº 216/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Agosto de 1999) e 387/99 (este ainda inédito) o Tribunal Constitucional considerou já inteiramente conforme à Constituição a norma constante do artigo
310º do Código de Processo Penal - em conjunção com os artigos 308º, nºs 1 e 3,
399º e 400º, nº 1, alínea e), do mesmo Código -, (na redacção anterior à da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto) quando interpretada 'no sentido de estender a irrecorribilidade da decisão instrutória à decisão nela constante sobre questões prévias que hajam sido suscitadas no requerimento de instrução'. Com interesse para os presentes autos, ponderou, então, o Tribunal Constitucional:
'Não existe, ao nível dos tribunais comuns, uma jurisprudência firme quanto à interpretação das normas em causa e quanto à admissibilidade ou não de recurso da parte do despacho instrutório que decida questões incidentais (cfr., aliás, a este respeito, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 147/97, Diário da República, II, nº 88, de 15 de Abril de 1997, p. 4482 ss, e 585/98, ainda inédito). Importa averiguar se constitucionalmente se impõe uma interpretação dessas normas de que resulte a admissibilidade de recurso da parte do despacho instrutório (que não alargue o objecto do processo para além dos factos constantes da acusação do Ministério Público) que decida questões incidentais, em atenção a valores tais como o acesso à justiça, na vertente do direito a um duplo grau de jurisdição, e a plenitude das garantias de defesa em processo penal. A procedência da pretensão do recorrente – e do presente recurso – depende da resposta a dar a esta interrogação (...)'.
Especificamente acerca do confronto entre a norma então objecto de recurso com o artigo 20º, nº 1, da Constituição, bem como com o direito ao recurso e a um duplo grau de jurisdição, remeteu-se então para a doutrina do Acórdão nº 265/94
(Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994), na parte se referira:
'A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
É certo que a Constituição garante a todos o «acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa»
(artigo 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal. A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p. 235), a verdade é que como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo tribunal, «se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido».
Sobre a questionada regra da irrecorribilidade, quando confrontada com o
«princípio da plenitude das garantias de defesa», recordou-se o afirmado no Acórdão nº 610/96 (Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 1996), em que se escrevera:
'[...] o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que
é consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a esta questão indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores
últimos do processo penal – a descoberta da verdade e a justa decisão da causa
–, próprios de um Estado democrático de direito.
[...] Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público. Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido [...].
Acrescentou-se, ainda: A lei assegura, como lhe compete para dar cumprimento aos objectivos constitucionais, que o arguido tenha possibilidade de recorrer de uma decisão condenatória. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional: o da celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, entre assegurar sempre o duplo grau de jurisdição, arrastando interminavelmente o processo, e permitir apenas o recurso das decisões condenatórias, permitindo uma melhor fluência do processo, o legislador optou decididamente pela segunda via. Esta opção foi aliás confirmada pela revisão constitucional de 1997, que aditou ao nº 1 do artigo 32º o segmento 'incluindo o recurso'. Como se escreveu no acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do legislador constituinte não foi 'significar que haveria de ser consagrada, sob pena de inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões jurisdicionais proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das garantias de defesa que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade de impugnação das decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que já era entendido pela jurisprudência deste órgão de fiscalização' (veja-se também, no mesmo sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre, pois, recorrer da decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar todos os vícios que derivem de uma má apreciação de qualquer questão interlocutória.
E, assim, concluiu-se que «a irrecorribilidade da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais não é contrária à Constituição da República Portuguesa».
6. Pois bem: os argumentos então aduzidos, que mantêm inteira validade, são inteiramente transponíveis para a questão de constitucionalidade que agora nos ocupa, conduzindo igualmente a um juízo de não inconstitucionalidade da norma ora objecto de recurso.
III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se: a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 291º, nº 1 do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, na parte em que determina a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere o requerimento de realização de diligências instrutórias; b) em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) U.C. para cada um deles. Lisboa, 12 de Julho de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta). Declaração de voto
Votei vencido, por entender que a norma em apreço viola o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa,
Continuo a subscrever a tese vertida no Acórdão nº 31/87 - de que, aliás fui relator -, segundo a qual se há-de admitir que a faculdade de recorrer pode ser «restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., págs. 463 e segs.). E foi na sequência dessa tese que o Tribunal Constitucional veio a considerar, no Acórdão nº 474/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
28º vol., págs. 393 e segs.), que não era inconstitucional a norma do artigo
407º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada como estabelecendo o regime de subida diferida para os recursos dos despachos que indefiram a realização de diligências probatórias na fase da instrução.
Todavia, neste último aresto logo se salientou que «no caso em apreço, o direito ao recurso» estava «garantido, na medida em que o recurso» fora admitido; e, no Acórdão nº 964/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., págs. 413 e segs.), que subscrevi, e onde se chegou a idêntica conclusão, também se não deixou de assinalar que o que ali era «trazido à controvérsia constitucional» não era «o direito de recorrer de despacho interlocutório do juiz que em processo penal denega diligências instrutórias», o qual se encontrava garantido, mas antes a subida diferida desse recurso.
Ora, no caso vertente, o que se encontra sob censura constitucional
é a nova norma do Código de Processo Penal que veio estabelecer a irrecorribilidade dos despachos que indeferem a realização de actos instrutórios requeridos pelo arguido. E, a esse propósito, escreveu-se inequivocamente no Acórdão nº 610/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 841 e segs.), então tirado por unanimidade:
[...] a irrecorribilidade do despacho de pronúncia nas situações previstas no nº
1 do artigo 310º do Código de Processo Penal não ofende as garantias de defesa, se englobada no regime em que estejam salvaguardadas as garantias de defesa nas fases de inquérito e de instrução, nomeadamente através da possibilidade de requerer diligências probatórias e de recorrer de um eventual indeferimento.
Não posso, pois, partilhar um raciocínio argumentativo que concluía pela não inconstitucionalidade do despacho de pronúncia, porque sempre se podia recorrer dos despachos que indeferissem a realização de diligências instrutórias; e que, agora, conclui pela irrecorribilidade destes despachos, porque também - ou até - o despacho de pronúncia é irrecorrível.
Pelo contrário: é a irrecorribilidade do despacho de pronúncia que, sob pena de um inadmissível encurtamento das garantias de defesa, supõe a recorribilidade dos despachos que indeferem a realização de diligências probatórias durante a instrução, como se afirmou no referido Acórdão nº 610/96 Luís Nunes de Almeida Voto de vencida
1. O presente recurso, interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tem como objecto a apreciação da alegada inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo
291º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº
59/98, de 25 de Agosto, na parte que determina a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere o requerimento de realização de diligências instrutórias. Os recorrentes consideram existir inconstitucionalidade 'por violação do disposto nos arts 20º e 32º e 'a contrario' dos artºs 209, nº 1, al. a) e 210º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa'.
2. Em declaração de voto de vencida aposta ao acórdão nº 387/99, escrevi: 'Não podendo conceber-se a decisão de pronúncia como um inócuo despacho interlocutório, atentos os relevantíssimos efeitos jurídicos e práticos que lhe cabem, e não existindo fundamentos bastantes para, nos termos do nº 2 do artigo
18º, restringir ou afastar nesta sede o direito ao recurso, a norma do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, enquanto prescreve a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, deve ter-se por inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição'. Recorde-se que o Tribunal Constitucional se pronunciou recentemente (através do acórdão nº 68/00), e na sequência de jurisprudência anterior (designadamente, dos acórdãos nº 474/94, 964/96, 1205/96, 244/97 e 104/98) no sentido da não inconstitucionalidade do regime fixado na redacção originária do Código de Processo Penal de 1987, que estabelecia – na interpretação adoptada pelas decisões recorridas – a recorribilidade, com subida diferida, dos despachos de indeferimento das diligências instrutórias requeridas pelo arguido na instrução. Tendo em conta o sistema processual penal vigente – no qual não se contempla um direito ao recurso das decisões que pronunciam o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público – entendi, contra o sentido de tal jurisprudência, que 'a subida não imediata dos recursos de decisões que indeferem diligências probatórias na fase de instrução afecta necessariamente o princípio da presunção de inocência do arguido e não permite o exercício do direito à não submissão a julgamento sem a verificação de indícios suficientes'.
3. O texto do Código de Processo Penal que hoje vigora (resultante da referida Lei nº 59/98) mantém a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação pública (nº 1 do artigo 310º), mas passa a determinar do mesmo passo a irrecorribilidade dos despachos que indeferem diligências probatórias na fase de instrução (nº 1 do artigo 291º). Acentua-se, pois, a lesão do princípio da presunção de inocência e o direito, dele decorrente, a não se ser submetido a julgamento sem se apurar a suficiência de indícios. Com efeito, está afastada a reacção contra uma errada decisão judicial, quer pela via do recurso do despacho de pronúncia quer, ao menos, pela via do recurso de despachos de indeferimento de diligências probatórias requeridas. Pelas razões expostas, entendi ser de julgar inconstitucional o nº 1 do artigo
291º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº
59/98, na parte em que determina a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere o requerimento de realização de diligências instrutórias.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza