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Proc. nº 162/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Espinho foi o ora recorrente, F..., condenado, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 28 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de 2 anos, com a condição de, em 6 meses, o arguido pagar ao queixoso a indemnização devida.
2. Inconformado o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto. Nas alegações que apresentou nesse Tribunal suscitou o recorrente desde logo as seguintes questões de constitucionalidade:
'É inconstitucional a al. a) do nº 1 do artigo 51º do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15/3, por violar o conteúdo dos artigos 27º e 28º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que esses normativos proíbem a chamada prisão por dívidas, na medida em que se aceite subordinar a suspensão da pena ao pagamento da importância tutelada pelo cheque. E é também inconstitucional o art. 11º do DL 454/91, de 28/12, na parte em que tipifica como crime a falta de pagamento de um cheque e faz a distrinça quanto ao valor do cheque. Ou seja: se o cheque for de valor inferior a 5.000$00, apesar de não ter cobertura, não é crime. E de valor superior já o é! Então qual o valor protegido por esta norma ? Por que razão tipificou uma acção como crime, consoante o valor, se o que pretende proteger é a credibilidade comercial do título de crédito chamado
'cheque' ? Esta actuação do legislador viola o disposto no art. 29º da CRP, na parte em que aí se explana um princípio de legalidade axiológico-normativa, até porque a Constituição recebeu «in totum» ou em pleno os princípios fundamentais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, por força do disposto no art. 8º. Ou seja, o legislador não pode tipificar uma acção como criminosa, em desrespeito dos valores fundamentais da pessoa humana, entre os quais está o de não ser preso por dívidas'.
3. O recurso veio, porém, a ser julgado improcedente, por decisão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Novembro de 1996. Sobre as questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente ponderou aquele Tribunal:
'e) Quanto às inconstitucionalidades. Elas inexistem claramente. Sustenta o recorrente que é inconstitucional a al. a) do nº 1 do art. 51º do CP revisto por violar o princípio de que não há prisão por dívidas. Mas, como observa o Exmº Magistrado do Ministério Público nesta Instância, uma coisa é a prisão por dívidas outra é a prisão por um crime que se cometeu, mas em que se decretou a suspensão da sua execução, subordinadamente à condição de pagamento de determinada quantia correspondente ao dano provocado pelo crime.
«nunca...se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida: a causa primeira da prisão é a prática do facto punível ... o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente» (Ac. do TC, de 4/11/87, in BMJ
371, pág. 184).
É, pois, questão «absolutamente infundada» e «só uma completa incompreensão do que seja uma pena de substituição pode conduzir a um tal equívoco» (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime,
1993, pág. 353). E quanto ao facto de a lei não considerar como crime a emissão de cheque sem provisão em valor não inferior a 5.000$00 (invocado art. 11º do DL 454/91, de
28.12, com referência ao art. 8º do mesmo Decreto-Lei), é como diz o Ministério Público na sua reposta: trata-se de uma «decisão de política criminal» que se afigura «insindicável». Também nesta parte não assiste, portanto, razão ao recorrente'.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição, a constitucionalidade das normas que se extraem do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro (na redacção anterior à do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro) e do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, por violação, respectivamente, dos artigos 29º e 27 º e 28º da Constituição.
5. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1 – Por douto acórdão proferido a fls..., o Tribunal «ad quem» julgou não existir inconstitucionalidade da al. a) do nº 1 do art. 51º do CP revisto pelo DL 48/95, de 15/3 e do art. 11º do DL 454/91, de 28/12, na parte em que tipifica como crime a falta de pagamento de um cheque e faz a destrinça quanto ao valor do cheque.
2 – A al. a) do nº 1 do art. 51º do Código Penal faculta o condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento da dívida ao ofendido que constitui mais do que a reedição dos há muito preteridos meios de coacção física ao pagamento.
3 – Porém, a proibição da chamada «prisão por dívidas» é, hoje, um princípio constitucionalmente consignado, nomeadamente nos artigos 27º e 28º da CRP.
4 – Tal condicionamento positivo da suspensão da execução constitui, ainda, uma violação do art. 11º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos de 16/12/66 e do art. 1º do Protocolo nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, face aos quais ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de que não está em situação de executar uma obrigação contratual.
5 – O direito internacional pactício vigora na ordem jurídica interna do Estado Português automática e plenamente, com valor infra-constitucional e supra-legal.
6 – Assim sendo, padece de vício de inconstitucionalidade material a norma constante de acto normativo interno desconforme com norma de convenção que vincule internacionalmente o Estado Português.
7 – O nosso legislador não pode, pois, tipificar uma acção ou omissão como criminosa em desrespeito dos valores fundamentais da pessoa humana e nomeadamente o de não ser preso por dívidas.
8 – Padece ainda do vício de inconstitucionalidade o art. 11º do DL 454/91, de
28/12, na parte em que tipifica como crime de falta de pagamento de um cheque e faz a destrinça quanto ao valor do cheque.
9 – Tal preceito legal tipifica uma acção como crime em função do valor – dado que um cheque de valor inferior a 5.000$00 sem provisão não é crime e sendo superior já o é – ignorando por completo o princípio fundamental que a lei visa proteger que é a credibilidade comercial do título de crédito chamado «cheque».
10 – Esta actuação do legislador viola o disposto no art. 29º da CRP na parte em que aí se explana um princípio de legalidade axiológico-normativa, até porque, como referimos supra, a nossa Constituição recebeu «in totum» ou em pleno os princípios fundamentais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, por força do disposto no art. 8º.
11 – Assim sendo, ao manter a aplicação do disposto na al. a) do nº 1 do art.
51º do CP e o art. 11º do DL 454/91 de 28/12 em violação do disposto nos artigos
27º, 28º e 29º da CRP e do art. 11º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos de 16/12/66 e do art. 1º do Protocolo nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; estes últimos que vinculam internacionalmente o Estado Português, incorrendo a decisão recorrida em inconstitucionalidade material, violando o art. 207º da CRP'.
6. Igualmente notificado para alegar o Representante do Ministério Público em exercício neste Tribunal disse, a concluir, que:
'1º - Não padece de inconstitucionalidade a norma actualmente constante da alínea a) do nº 1 do artigo 51º do Código Penal, enquanto permite ao Juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido com a actividade delituosa do arguido.
2º - Não viola o princípio da igualdade nem qualquer outro princípio ou preceito constitucional a descriminalização da emissão de cheques sem provisão de valor insignificante, já que é ao próprio legislador penal que cumpre definir os bens jurídicos tutelados com a incriminação. Termos em que deverá julgar-se manifestamente improcedente o recurso interposto'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
7. A Alegada inconstitucionalidade do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro (na redacção anterior à do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro).
7.1 Dispõe a alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, que 'será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral da punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial, emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º (5000$00) que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme relativa ao Cheque'. Sustenta o recorrente que a norma que se extrai do preceito supra referido é inconstitucional, não apenas na parte em que qualifica como crime a emissão de cheque sem provisão, mas fundamentalmente na parte em que faz depender essa qualificação da circunstância de o valor cheque ser inferior ou superior a
5.000$00. Não lhe assiste, porém, como vai ver-se, qualquer razão. Desde logo não procede a alegação que sustenta a alegada inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, na circunstância de se tratar de uma situação de «prisão por dívidas», proibida pela Constituição. Trata-se, aliás, de questão que não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que teve já oportunidade de afirmar no seu Acórdão nº 663/98
(Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999), tirado em Plenário,
'que as normas penais em questão sobre os vários tipos de crime de emissão de cheque sem cobertura não violam o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e à segurança (artigo 27º, nº 1 da Constituição)'.
É, pois, esta jurisprudência, para a qual aqui se remete, que agora mais uma vez há que reiterar.
7.2 Sustenta ainda o Recorrente que a inconstitucionalidade da norma que se extrai do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, resulta igualmente da circunstância de aí se fazer depender a criminalização da emissão de cheque sem provisão do valor do cheque ser inferior ou superior a 5.000$00. Mais uma vez, porém, sem razão. A opção legislativa por apenas criminalizar a emissão de um cheque sem provisão quando esteja em causa um valor superior a 5.000$00 manifestamente não viola o princípio da legalidade consagrado no artigo 29º da Constituição (nem se percebe exactamente qual a dimensão do princípio da legalidade que o recorrente entende ser posta em causa com essa distinção) nem qualquer outro princípio ou norma constitucional. Como se afirmou no Acórdão nº 663/98 (já citado) o crime de emissão de cheque sem provisão previsto no Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro é, 'sem prejuízo do relevo que tem no seu regime a protecção da confiança na circulação do cheque, fundamentalmente um crime de dano doloso contra o património', pelo que o grau de ilicitude do facto depende (também) da dimensão do prejuízo patrimonial causado ao lesado. Está, por isso, perfeitamente legitimado o legislador para – considerando que nas hipóteses em que o valor do cheque é inferior a 5.000$00 o prejuízo patrimonial, a existir, é sempre diminuto – estabelecer distinções ao nível das sanções e, designadamente, para considerar desnecessária a intervenção do direito penal. Acresce, no mesmo sentido, que nessas hipóteses - em que o valor do cheque é inferior a 5.000$00 - a lei prevê um outro mecanismo de protecção do ofendido, traduzido na responsabilidade do banco pelo pagamento da quantia tutelada pelo cheque. Trata-se, pois, de uma distinção que tem um suporte material bastante, pelo que não procede a alegação de que é violadora do princípio da igualdade, designadamente na dimensão da proibição do arbítrio. Em suma: não é, pois, inconstitucional, designadamente por violação do princípio da igualdade ou de qualquer outro princípio ou regra constitucional, a distinção feita pela alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, no sentido de apenas criminalizar a emissão de cheque sem provisão quando o valor do cheque emitido seja superior a 5.000$00.
8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. Dispõe o artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal que 'a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea'. Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição. Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em seu próprio prejuízo, 'na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da execução da pena - que só se justifica pela «condição» estabelecida naquele preceito - restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão recorrida, em primeira linha, lhe impôs...'.
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se extrai do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27º, nº 1 da Constituição). Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela - suspensão da execução - se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida. Não é, por isso, inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27º, nº
1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido.
III – Decisão.
Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 2 de Novembro de 1999 José de Sousa e Brito Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Luís Nunes de Almeida