Imprimir acórdão
Processo nº 459/95 Plenário Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1. O Procurador-Geral da República , 'no uso da competência que o artigo 218º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea e) da Constituição lhe confere', veio 'requerer que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto--Lei nº 248/94, de 7 de Outubro, no segmento em que introduz alteração ao artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-M/79, de 28 de Dezembro'. Invoca, como fundamento do pedido, a violação do artigo 56º, nº 2, a), da Constituição, na versão anterior à quarta revisão constitucional (1997), porque, estando em causa 'legislação do trabalho', não foi dado ao S.T.A.L. - Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local, a possibilidade de se pronunciar sobre a norma questionada no segmento indicado, durante o processo da sua elaboração.
É esta a essência da argumentação do requerente:
'(...)O Decreto-Lei nº 248/94, de 7 de Outubro, vem, segundo a sua nota preambular, clarificar conceitos no domínio do abono de ajudas de custo dos funcionários ou agentes da Administração Local, nomeadamente pela substituição das expressões 'residência oficial' e 'domicílio necessário', constantes do Decreto-Lei nº 519-M/79, de 28 de Dezembro, que vinham sendo fonte de dúvidas de interpretação, através do recurso apenas ao conceito de domicílio profissional. Constitui, assim, tal diploma 'legislação do trabalho', pelo que deveria ter sido facultado às associações sindicais representativas dos trabalhadores interessados a possibilidade de participarem na sua elaboração, o que, segundo o preâmbulo do diploma, se verificou.
(...)A verdade, porém, é que o S.T.A.L. - SINDICATO NACIONAL DOS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL - apenas foi chamado a pronunciar-se no que respeita a uma nova redacção do artigo 2º, não tendo sido ouvido quanto à redacção atribuída ao artigo 6º'.
2. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
3. Feito por este Plenário o debate preliminar a que se refere o artigo 63º, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e fixada que foi a orientação do Tribunal, seguiu-se a distribuição ao relator, cumprindo agora formatar a decisão.
4. O artigo 1º do Decreto-Lei nº 248/94, de 7 de Outubro, deu nova redacção ao artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-M/79, de 28 de Dezembro, em matéria de abono de ajudas de custo dos funcionários ou agentes da Administração Pública, que passou a ser esta:
'Artigo 6º Direito ao abono
1- Só haverá direito ao abono de ajudas de custo nas deslocações diárias que se realizem para além de 5 Km do domicílio profissional e nas deslocações por dias sucessivos que se realizem para além de 20 Km daquele domicílio.
2- Não há lugar ao abono de ajudas de custo quando as deslocações que o funcionário ou agente efectue sejam inerentes ao exercício das respectivas funções, desde que as mesmas se realizem dentro da área do município onde aqueles têm o seu domicílio profissional.
3- Nos casos em que as deslocações inerentes ao exercício das respectivas funções abranjam mais de um município, há lugar ao abono de ajudas de custo sempre que a deslocação se realize para fora da área do município onde se localize o serviço do qual o funcionário ou agente dependa funcionalmente, sem prejuízo do disposto no nº 1'. Aquele Decreto-Lei nº 248/94, na pendência deste processo, foi expressamente revogado - tal como os Decretos-Leis nºs. 616/74, de 14 de Novembro, e 519-M/79, de 28 de Dezembro - pelo artigo 40º do Decreto-Lei nº 106/98, de 24 de Abril. [ Este diploma procedeu a uma remodelação global do regime jurídico de abono de ajudas de custo e transporte ao pessoal da Administração Pública, quer no respeitante às deslocações em território nacional (Capítulo II), quer no respeitante às deslocações ao estrangeiro e no estrangeiro (Capítulo III), quer ainda no respeitante ao transporte em território nacional e nas deslocações ao estrangeiro (Capítulo IV)] . Ora, de acordo com o princípio do pedido, consagrado no artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, e na sequência de jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, não pode operar-se uma convolação do objecto do pedido formulado nestes autos, pelo que, radicando ele na norma do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 248/94, no segmento em que introduz nova redacção no artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-M/79, mas encontrando-se já tais diplomas legais expressamente revogados, coloca-se a questão da utilidade do conhecimento do pedido (e, inexistindo essa utilidade, não se deve tomar conhecimento do pedido).
5. De harmonia com a jurisprudência constantemente afirmada pelo Tribunal Constitucional, e como se sabe, a circunstância de a norma sub judice se encontrar revogada não é suficiente, por si só, para se deixar de conhecer do pedido de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade - e nomeadamente para concluir pela inutilidade desse conhecimento (cf., desde logo, o Acórdão nº 17/83, Ac. TC, 1º vol., pp. 93ss.). No entanto – e como também é jurisprudência conhecida do Tribunal – não basta que a norma já revogada haja produzido um qualquer efeito, para que tenha de entrar-se na apreciação do pedido da sua declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (neste sentido, cf., entre outros, o Acórdão nº 116/97, Diário da Repúblico, II Série, de 21-3-1997). Para tanto, é necessário que tal apreciação se revista de um interesse jurídico relevante . Como se escreveu, a este propósito, no Acórdão nº 238/88 (Diário da República, II Série, de 21-12-1988): 'há-de (...) tratar-se de um interesse com ‘conteúdo prático apreciável’, pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, ‘seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade’ (...) para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo'. 'Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade' - afirmou-se ainda nesse Acórdão (no mesmo sentido, cf., por exemplo, o Acórdão nº
465/91, Diário da República, II Série, 2-4-1992). Por outro lado, e de todo o modo, é ainda jurisprudência conhecida do Tribunal que não existe um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável
- no conhecimento do pedido quando a situação for tal que, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, os seus efeitos sempre viriam a ser limitados, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição
(vejam-se por exemplo, os Acórdãos nºs 238/88, 319/89, 415/89, 73/90, 135/90,
465/91, 308/93, 398/93, 804/93, 186/94, 57/95, 121/95, 497/97 e 625/97 - Diário da República, II Série, de 21-12-1988, 28-6-1989, 15-9-1989, 19-7-1990,
7-9-1990, 2-4-1992, 22-7-1993, 20-12-1993, 31-3-1994, 14-5-1994, 12-4-1995,
13-4-1995, e 10-10-1997, respectivamente). Ora, à luz desta orientação jurisprudencial, bem firmada, afigura-se claro que não deve conhecer-se do pedido formulado no presente processo, em razão da sua inutilidade superveniente. E isso justamente porque uma eventual declaração de inconstitucionalidade, que nele viesse a ser proferida, seria desprovida de quaisquer efeitos. Vejamos porquê, num duplice aspecto. a) Na verdade, em primeiro lugar, e no caso, assim provavelmente resultaria, desde logo, da regra geral do artigo 282º, nº 3, da Constituição, segundo a qual os efeitos ex tunc de uma declaração de inconstitucionalidade terão como limite, em princípio, o 'caso julgado' - uma vez entendido tal limite como abrangendo igualmente situações equiparáveis, e entre estas, desde logo, a do 'caso resolvido' administrativo. (cfr. o Acórdão nº 786/96, publicado no Diário da República, II Série, de 22-11-99, reportando-se a uma situação de 'consolidação, mesmo não constituindo caso julgado em sentido estrito, por não proceder de decisão judicial', que 'há-de, no entanto, a ele ser equiparada para efeito do disposto no artigo 282º, nº 3 da Constituição (no sentido dessa equiparação, cf. Acórdão nº 804/93, D.R., II Série, de 31-1-94)'. De facto, é de crer que, se não integralmente, de qualquer modo na sua quase totalidade, as situações em que tenha deixado de operar-se o abono de ajudas de custo por força da norma questionada se hajam consolidado naqueles termos - no curto período da sua vigência de 1994 a 1998 - por falta de oportuna impugnação contenciosa. Mas, ainda que, por comodidade de raciocínio, se admitam, em teoria, hipóteses em que possa ainda haver impugnação, ou até hipóteses em que esteja pendente um ou outro caso de impugnação contenciosa, 'sempre se haveria de reconhecer que essas situações se não apresentariam desprovidas do meio de tutela consistente na submissão à análise por parte deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, precisamente porque sempre os interessados poderiam lançar mão do recurso a que aludem os artigos 280º da Constituição e
70º da Lei nº 28/82 para, assim, impedirem a aplicação de uma norma que contrariaria a lei fundamental'(linguagem do Acórdão nº 592/99, Diário da República, II Série, de 21-11-1999). b) Em segundo lugar, noutra óptica, sempre se poderá dizer que se está perante um daqueles casos em que se imporá uma limitação dos efeitos da constitucionalidade. Impô-lo-iam, desde logo, razões de 'interesse público de excepcional relevo', que bem justificariam a utilização, por parte deste Tribunal, dessa faculdade consagrada no artigo 282º, nº 4 da Constituição.
É que, doutro modo, os efeitos ex tunc de uma eventual declaração de inconstitucionalidade proporcionariam a reabertura de milhares (porventura, dezenas de milhar) de processos administrativos, com vista a reanalisar e reavaliar as situações em que se teriam deixado (indevidamente) de abonar ajudas de custo, designadamente por aplicação do nº 2 do artigo 6º, e com a consequente
(mas inesperada) liquidação e pagamento destas, envolvendo um acréscimo de encargos financeiros. Ora, é indiscutível que isso, para além desse acréscimo, afectaria sensivelmente a eficácia da Administração e o bom funcionamento de dezenas (ou talvez centenas) de serviços públicos, o que significaria uma perturbação administrativa nestes serviços. Significa tudo isto que, deparando-se in casu uma pura e simples revogação da norma sobre a qual foi formulado o pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, estamos perante uma daquelas hipóteses que tem levado o Tribunal Constitucional a decidir pela falta de interesse prático relevante quanto ao conhecimento do pedido (cfr., por todos e por mais recente, o citado Acórdão 592/99).
6. Termos em que, DECIDINDO, o Tribunal Constitucional não toma conhecimento do pedido formulado. Lisboa, 15 de Dezembro de 1999 Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa