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Proc. nº 152/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório.
1. Por decisão do 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, de 15 de Julho de 1999, foram os ora recorrentes MC (1º recurso) e MEC e MMC (2º recurso) pronunciados, juntamente com outros, pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 2º e 36º, nº 1, als. a) e b), nº 2, nº 5, al. a), nº 8, als. a) e b) do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro.
2. Inconformados com o assim decidido apresentaram os recorrentes, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, os presentes recursos de constitucionalidade. O recorrente MC (1º recurso) pretende ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição do recurso, 'a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 120º, nº 1, al. a) do Código Penal (CP), na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março (CP82), e do art. 2º, nº 4 CP, na interpretação e aplicação que delas foi feita pela decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 18º, nºs 2 e 3 e 29º, nº 4, in fine da Constituição da República (CRP), em especial do princípio constitucional do tratamento mais favorável na aplicação da lei penal, aflorado na última das citadas normas'. As recorrentes MEC e MMC (2º recurso) pretendem ver apreciada 'a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a) do Código Penal, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março (CP/1982), na interpretação e aplicação que desta norma foi efectuada no despacho de pronúncia ora recorrido, por violação ao disposto nos arts. 29º, nrs. 1 e 3, e
165º, nº 1 al. c), ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP)'
3. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído nos seguintes termos: A. O recorrente MC:
'1ª - O Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, ao apreciar a questão da prescrição do procedimento criminal na sequência de alegação produzida, entre outros, pelo ora recorrente, acolheu uma interpretação (inconfessadamente) actualista da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a) do CP82 fixando-lhe os seguintes sentido e limites: «(...) a notificação para interrogatório do arguido interrompe a prescrição do procedimento criminal quando produzido perante o JIC (...)'.
2ª - A decisão recorrida veio aplicar tal norma, com o assinalado sentido normativo, a factos – os interrogatórios dos arguidos em instrução – ocorridos já após o termo de vigência desta, negando a aplicação do regime constante do CP95, a essa data vigente, por entender não ser este, em concreto, mais favorável ao agente e, por isso, insusceptível de aplicação.
3ª - Concluindo, deste modo, pela não prescrição do procedimento criminal.
4ª - A questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso assume duas vertentes: a norma do art. 120º, nº 1, al. a) do CP(', na interpretação que dela é feita pela decisão em crise, na sua conformidade com o artigo 29º, nºs 1 e 3 CRP; e, em segundo lugar, a conjugação da aludida norma com o art. 2º, nº 4, in fine, CP, com o sentido interpretativo que lhe é fixado, na sua conformidade com o artigo 29º, nº 4, in fine, CRP.
5ª - Em ambas as vertentes, estamos diante de verdadeira e própria questão de constitucionalidade normativa, submetida ao controlo do Tribunal Constitucional.
6ª - A questão de constitucionalidade aqui colocada é substancialmente idêntica
àquela que se apreciou e decidiu nos acórdãos desse Tribunal nrs. 205/99, de
07/04/99, 285/99, de 11/05/99 e 122/2000, de 23/02/2000.
7ª - Importa saber se a interpretação defendida e aplicada na decisão recorrida se acolhe ainda, ou não, no teor literal da norma em causa, encarado na máxima extensão das suas possibilidades interpretativas ou se, diversamente, constitui já uma «dimensão normativa que pressupõe uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas, pelo intérprete, com implicação na configuração das consequências jurídicas do crime» (cfr. Acórdão nº 205/99, p. 14), violando, nessa medida, o art. 29º, nºs 1 e 3.
8ª - A actual fase processual da instrução não é equiparável à da instrução preparatória do pregresso sistema processual penal, a qual encontra, antes, correspondência de natureza e finalidades no hodierno inquérito.
9ª - Sendo sempre uma fase processual facultativa, a instrução assume, quando requerida pelo arguido, uma dimensão garantística, nos termos constitucional e legalmente consagrados.
10ª - Por tal razão, não é possível atribuir, num raciocínio consequente, a actos nesta sede praticados eficácia interruptiva da prescrição do procedimento criminal. Entendimento diverso importaria uma subversão valorativa, revertendo contra o arguido o exercício de um direito de defesa que, enquanto tal, a Constituição e a lei lhe reconhecem.
11ª - A interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a) CP82 acolhida na decisão sob recurso ultrapassa o sentido possível das palavras incorrendo, ademais, na referida incompatibilidade axiológica, razão pela qual deve ser considerada inconstitucional por violação do art. 29º, nºs 1 e 3 da CRP.
12ª - A decisão recorrida, interpretando conjuntamente o artigo 2º, nº 4, in fine CP e o art. 120º, nº 1, al. a) CP82, aplicou esta última norma a factos
(interrogatórios dos arguidos) verificados após o termo da sua vigência.
13ª - Tal critério levou à consideração de factos interruptivos da prescrição que, no momento em que se verificaram, não tinham já essa potencialidade.
14ª - Este efeito sempre será de considerar inconstitucional por desrespeito dos artigos 18º, nºs 2 e 3 e, especialmente, 29º, nº 4, in fine, CRP, onde se consagra, em matéria de sucessão de leis penais, o princípio do tratamento mais favorável do arguido'.
B) As recorrentes MEC e MMC:
1ª - A decisão recorrida fez aplicação da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a) do CP/1982, com o sentido interpretativo segundo o qual a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução.
2ª - Do mesmo passo, veio aplicar tal norma, com o assinalado sentido interpretativo, a factos ocorridos já após a cessação de vigência desta (a notificação para interrogatório dos arguidos em instrução), negando a aplicação do regime constante do CP/1995, a essa data vigente, por entender não ser este concretamente desfavorável e insusceptível de aplicação retroactiva.
3ª - Concluindo, assim, pela não prescrição do procedimento criminal.
4ª - A questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal reveste-se de duas vertentes: a norma do art. 120º, nº 1, al. a) do CP/1982, na interpretação que dela é feita na pronuncia recorrida, na sua conformidade com o artigo 29º, nºs 1 e 3 CRP; por outro lado, a conjugação entre aquela norma (com aquele sentido interpretativo) e o art. 2º, nº 4 (parte final) do CP, na sua conformidade com o artigo 29º, nº 4 (parte final) da CRP.
5ª - A questão suscitada, em ambas as vertentes, configura-se como verdadeira e própria questão de constitucionalidade normativa, submetida ao controlo do Tribunal Constitucional.
6ª - O sentido interpretativo da norma constante do art. 120º, nº 1, al. a) do CP/1982, ora em apreciação, foi já declarado inconstitucional, por violação do art. 29º, nrs. 1 e 3 da CRP, pelo acórdão nº 122/2000 do Tribunal Constitucional, sendo que os fundamentos em que esta decisão assenta são substancialmente idênticos aos dos acórdãos nrs. 205/99 e 222/98 do mesmo Tribunal.
7ª - O problema traduzir-se-á em saber se a interpretação propugnada na decisão recorrida se circunscreve, ou não, ao teor literal da norma em causa, encarado na máxima extensão das suas possibilidades interpretativas;
8ª - Ou se, pelo contrário, tal interpretação não constituirá já uma «dimensão normativa que pressupõe uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas, pelo intérprete, com implicação na configuração das consequências jurídicas do crime»
(cfr. Acórdão nº 205/99, p. 14), violando, nesses termos, o art. 29º, nºs 1 e 3.
9ª - Não é possível equiparar a actual fase processual da instrução à da instrução preparatória consagrada no pretérito processo criminal. Esta fase corresponderia, na sua natureza e finalidades, ao actual inquérito.
10ª - Sendo sempre uma fase processual facultativa, a instrução, quando requerida pelo arguido, assume dimensão garantística, integrando-se nos direitos de defesa legal e constitucionalmente consagrados.
11ª - Por essa razão, sempre constituirá uma incongruência valorativa pretender atribuir a actos que ocorram nesta fase processual eficácia interruptiva da prescrição.
12ª - A interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a) CP/1982 propugnada pela decisão recorrida exorbita o máximo sentido admitido pelo teor literal daquela norma, incorrendo, ademais, na referida incongruência valorativa, pelo que, deve ser considerada inconstitucional, por violação do art. 29º, nºs 1 e 3 da CRP.
13ª - A decisão recorrida, interpretando o artigo 2º, nº 4, (2ª parte) do CP, em conjugação com o art. 120º, nº 1, al. a) do CP/1982, aplicou esta última norma a factos ocorridos após o termo da sua vigência (as notificações para interrogatório dos arguidos em instrução).
14ª - Um tal critério decisório teve como consequência a consideração de factos interruptivos da prescrição que, no momento em que se verificaram, não eram já como tal qualificados pela lei vigente.
15ª - Este resultado sempre será de considerar inconstitucional por violação do Art. 29º, nº 4, da CRP, que consagra, em matéria de sucessão de leis penais, o princípio do tratamento mais favorável do arguido'.
4. Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público (ora recorrido) a concluir:
'1º - O arguido MC não suscitou, durante o processo, podendo perfeitamente tê-lo feito, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse suportar o recurso que interpôs, fundado na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº
28/82, pelo que do mesmo não deverá tomar-se conhecimento.
2º - A decisão recorrida não realizou interpretação e aplicação da norma constante do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, violadora do princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido, já que, bem pelo contrário, procedeu a uma concreta comparação dos regimes penais que vigoravam sucessivamente sobre a matéria da interrupção da prescrição
– aplicando precisamente o que considerou mais favorável ao arguido – o que constitui outro fundamento para o não conhecimento do recurso interposto por aquele arguido.
3º - Os arguidos, ora recorrentes, não esgotaram os recursos ordinários possíveis, relativamente à decisão instrutória, proferida pelo juiz de instrução, sobre a questão prévia da prescrição – estando definido em acórdão uniformizador de jurisprudência, proferido pelo Supremo (e que obviamente deve ser tido como interpretativo do direito vigente) de que tal segmento da decisão instrutória sempre cabia recurso para a Relação, como aliás parte da jurisprudência já o vinha admitindo.
4º - Ora, não tendo nenhum dos arguidos utilizado efectivamente tal meio impugnatório, nem tendo ocorrido a prévia preclusão do mesmo, nos termos do art.
70º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, antes da interposição dos presentes recursos de fiscalização concreta, não deve dos mesmos tomar-se conhecimento, por falta de um essencial pressuposto de admissibilidade.
5º - A interpretação feita na decisão recorrida - e que se traduziu em abandonar ou ‘deixar cair’ - considerando-o precludido em consequência da tramitação do processo penal - o qualificativo de ‘preparatória’, que o Código Penal de 1982 utilizava para referenciar a instrução que precedia a acusação, não traduz interpretação inovatóriamente actualizante da lei, baseada em raciocínios analógicos, susceptíveis de implicarem opções constitutivas reservadas ao legislador.
6º - Na verdade, não existe entre a antiga ‘instrução preparatória’ e a actual
‘instrução’ - apesar das diferentes funções procedimentais cometidas a uma e outra - qualquer essencial e estrutural diversidade ou heterogeneidade, que impeça o intérprete de proceder a uma determinação do sentido actual de tal conceito, sem que tal implique conversão de conceitos por natureza irredutíveis.
7º - Como se infere do disposto no artigo 32º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, existe uma essencial e estrutural diferenciação entre toda e qualquer instrução (seja qual for a modalidade e função procedimental por ela desempenhada) e as restantes fases ‘preliminares’ do processo penal (‘maxime’ o inquérito), assentando o núcleo essencial do conceito de instrução na entidade competente para a dirigir e realizar, por estar a mesma imperativamente submetida à direcção de um órgão jurisdicional (o que, desde logo, lhe confere, em todos os casos, uma evidente dimensão garantística).
8º - Se o interrogatório, realizado pelo juiz no âmbito da instrução preparatória, se configurava como idóneo para interromper o prazo prescricional em curso, é evidente que, por maioria de razão, deve tal interrogatório - do arguido/acusado - levado a cabo no decurso da actual fase de instrução, ter - pela sua relevância acrescida, face aos valores e interesses subjacentes ao instituto da prescrição do procedimento criminal - idoneidade para produzir efeito interruptivo, por tal acto ocorrer numa fase mais avançada do processo, em que estão já concretizadas as suspeitas do cometimento da infracção e exercida a acção penal pelo órgão competente.
9º - Termos em que – a não procederem as questões prévias suscitadas - deverão improceder os presentes recursos'.
5. Notificados para se pronunciarem sobre as questões prévias suscitadas pelo Ministério Publico, vieram os recorrentes aos autos para sustentar a sua improcedência. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
6. Questões prévias. Admissibilidade e delimitação do objecto dos recursos. Pretendem os recorrentes, nos termos dos respectivos requerimentos de interposição dos recursos, ver apreciada por este Tribunal a constitucionalidade: a) da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a) do Código Penal, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, na interpretação traduzida em considerar interrompida a prescrição do procedimento criminal com a notificação dos arguidos para interrogatório na fase de instrução, por alegada violação do disposto nos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 165º, nº 1 al. c), ambos da Constituição; b) da norma constante do mesmo artigo 120º, nº 1, al. a), agora conjugado com o disposto no art. 2º, nº 4, também do Código Penal, na interpretação traduzida em considerar que aquela norma é aplicável a factos – a notificação dos arguidos para interrogatório na instrução – ocorridos já após o termo da sua vigência, por alegada violação do disposto nos artigos 18º, nºs 2 e 3 e 29º, nº 4, in fine da Constituição, em especial do princípio constitucional do tratamento mais favorável na aplicação da lei penal. O representante do Ministério Público neste Tribunal sustentou, porém, que não podia conhecer-se do objecto dos recursos, por falta dos seus pressupostos específicos de admissibilidade. Vejamos se é assim.
6.1. O esgotamento dos recursos ordinários possíveis. Nos termos do artigo 70º, nº 2, da LTC, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do mesmo artigo – o interposto pelos ora recorrentes – apenas cabe de 'decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei não o prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam (...)'. Importa, por isso, começar por decidir se da decisão recorrida (a decisão instrutória), ao menos na parte relativa à questão prévia da prescrição do procedimento criminal, cabia ou não recurso para o Tribunal da Relação, uma vez que dessa questão depende a verificação do pressuposto de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional referido supra. Sobre a questão da recorribilidade do despacho de pronúncia o art. 310º, nº 1, do CPP, na redacção em vigor à data em que foi proferida a decisão recorrida, que se mantém, dispunha que 'a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível (...)'. A verdade, porém, é que a interpretação do preceituado naquele artigo não era pacífica, existindo mesmo, no momento em que foram apresentados os requerimentos de interposição dos recursos para o Tribunal Constitucional (Setembro de 1999), uma forte controvérsia jurisprudencial em torno da determinação do seu sentido decisivo. Assim, uma primeira linha jurisprudencial vinha entendendo que a decisão sobre questões prévias ou incidentais, constituindo parte integrante da própria decisão instrutória, que era incindível para efeitos de recurso, era irrecorrível (nesse sentido, cfr., Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Novembro de 1994, Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, Tomo V, 1994, p. 168; Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Julho de 1998, Colectânea de Jurisprudência, ano XXIII, Tomo I, 1998, p. 138; Acórdão da Relação de Lisboa de
10 de fevereiro de 1999, Colectânea de Jurisprudência, ano XXIV, Tomo I, 1999, p. 143). Por sua vez, uma segunda tese vinha sustentando que a decisão instrutória é composta por duas partes autónomas para efeitos de recurso: a decisão de fundo
(pronúncia sobre os factos) e a de forma (decisão sobre as questões prévias ou incidentais), interpretando o artigo 310º, nº 1, do CPP, no sentido de que este respeitaria unicamente à decisão instrutória de fundo, não contemplando a decisão de forma (cfr., designadamente, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Abril de 1994, Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, Tomo II, 1994, p.
187; Acórdão da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 1995, Colectânea de jurisprudência, ano XX, Tomo I, 1995, p. 163). A esta controvérsia jurisprudencial só foi posto cobro com o Assento nº 6/2000, de 19 de Janeiro de 2000 (Diário da República, I Série-A, de 7 de Março de 2000)
- tirado, note-se, já depois de apresentados os requerimentos de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que deram origem ao presente processo - que, aderindo à segunda das teses antes exposta, veio fixar a seguinte jurisprudência: 'a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitantes
às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais'. Isto dito, temos que a questão processual que agora importa decidir pode, assim, formular-se da seguinte forma: havendo uma acentuada divergência doutrinal e jurisprudencial sobre a admissibilidade de recurso ordinário de determinada decisão (no caso a decisão instrutória, na parte relativa às questões prévias e incidentais suscitadas durante a instrução) têm os recorrentes o ónus de, antes de recorrerem para o Tribunal Constitucional, interporem esse recurso de admissibilidade duvidosa ? O Tribunal Constitucional tem sempre entendido, em situações semelhantes às dos autos, que não (cfr., nesse sentido, os acórdãos nºs 21/87, 388/87, 462/89, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p.
445; 10º vol., p. 599; 14º vol., p. 251, e o acórdão nº 585/98, este ainda inédito). Como se ponderou nos citados acórdãos nºs 339/87 e 462/89, 'não parece curial não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional quando, face ao teor literal do preceito legal directamente aplicável, à ausência de doutrina expressa em sentido contrário e à divergência jurisprudencial existente, se deve concluir ser razoavelmente defensável a posição de que a decisão em causa já não era recorrível (...)'. Ora, esta jurisprudência - que, por manter inteira validade, aqui se reitera - conduz a que também na situação que agora é objecto dos autos tenha de considerar-se preenchido o pressuposto da prévia exaustão dos recursos ordinários, para efeitos de admissibilidade dos recursos para este Tribunal.
6.2. A não suscitação durante o processo, por parte do arguido MC, das questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas. Sustenta ainda o Ministério Público que o arguido MC não suscitou, durante o processo, podendo perfeitamente tê-lo feito, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que não deverá tomar-se conhecimento do objecto do recurso por si interposto - o previsto na alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC - por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade. Vejamos. O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica – ou de uma sua dimensão normativa – e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado como ratio decidendi. Quanto ao sentido a dar ao pressuposto de admissibilidade do recurso que se traduz na necessidade de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, a poder e dever decidir. Tal exigência implica, em suma, que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja: em regra, antes da prolação da decisão recorrida (veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos nºs 62/85,
90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 497 e 663 e
10º vol., pp. 573, respectivamente). Somente tem este Tribunal admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica seja suscitada depois de proferida a decisão recorrida em hipóteses, excepcionais, em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida, ou em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes.
É esta última hipótese factual que o recorrente MC entende que se encontra retratada nos autos. Porém, como vai ver-se, sem razão. Ao contrário do que alega, teve efectivamente o ora recorrente oportunidade processual de, antes de proferida a decisão instrutória, ter suscitado as questões de constitucionalidade que agora pretende ver apreciadas. Concretamente, poderia e deveria tê-lo feito – como o fizeram, aliás, outros co-arguidos – no decurso do debate instrutório. É que, não só era previsível que a decisão recorrida se viesse a pronunciar sobre a matéria da prescrição do procedimento criminal (designadamente porque essa questão havia sido expressamente levantada por vários outros arguidos), como ainda era previsível que, pronunciando-se sobre a questão da prescrição do procedimento criminal, viesse a utilizar a interpretação normativa do artigo 120º, nº 1, al. a), do Código Penal de 1982, cuja constitucionalidade o recorrente agora pretende ver apreciada. Ora, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a seguidas e utilizadas na decisão e utilizarem as necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o acórdão nºs 479/89, acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., p. 149). Assim, sendo previsível – e, como vimos, era-o efectivamente - que a decisão recorrida pudesse dar à norma objecto do recurso a dimensão normativa que o ora recorrente reputa de inconstitucional, era-lhe efectivamente exigível que tivesse, antes de proferida a decisão, suscitado a sua inconstitucionalidade. Não o tendo feito, não pode agora, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do objecto do recurso por si interposto, por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade.
É certo, como alega o recorrente, que, nos termos do disposto 74º, nº 3 da LTC
(que remete, neste caso, para o disposto no artigo 402º, nº 2, al. a) do CPP), o recurso interposto pelos demais arguidos aproveita, caso venha a conhecer-se do seu objecto, ao ora recorrente. Esta é, contudo, uma questão que se coloca num plano diferente, não podendo extrair-se da constatação de que o recurso interposto por um co-arguido aproveita aos arguidos não recorrentes, a conclusão de que se verificam também em relação a estes os pressupostos de que a lei faz depender a admissibilidade de um recurso.
6.3. Delimitação do objecto do recurso interposto pelas recorrentes MEC e MMC. As recorrentes MEC e MMC pretendem ver apreciada por este Tribunal a constitucionalidade da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a) do Código Penal de 1982, na interpretação traduzida em considerar interrompida a prescrição do procedimento criminal com a notificação dos arguidos para interrogatório na fase de instrução, bem como a constitucionalidade dessa norma, agora conjugada com o disposto no art. 2º, nº 4, também do Código Penal, por alegada violação do princípio constitucional do tratamento mais favorável na aplicação da lei penal. A verdade, porém, é que esta segunda questão (ou 'vertente', como lhe chamam as recorrentes) não têm, no contexto do presente recurso, autonomia em relação à primeira. Como, bem, nota o Ministério Público, a decisão recorrida, depois de proceder a uma concreta comparação dos regimes que sucessivamente vigoraram em matéria de interrupção da prescrição, aplicou aquele regime que, no seu entender, considerou ser concretamente mais favorável às arguidas. Com efeito, considerou aplicável o art. 120º, nº 1, al. a) do Código de 1982, na interpretação segundo a qual a prescrição se interrompe com a notificação do arguido para interrogatório na fase de instrução, que no caso ocorreu em 3.12.1998. E considerou ser tal conclusão mais favorável às arguidas do que a resultante da aplicação do art. 121º, nº 1, al. b) do Código Penal, na redacção da revisão de
1995, segundo a qual a interrupção da prescrição já se teria verificado em
10.12.1996, data da notificação da acusação, pelo que invocou o nº 4 do art. 2º do Código Penal para justificar a ultractividade da norma do Código de 1982. Pois bem: o que as recorrentes pretendem é a aplicação do Código de 1982 noutra interpretação, em consequência da qual não teria chegado a haver interrupção da prescrição. Mas então é claro que não existe uma questão de sucessão de leis no tempo - uma vez que tanto a decisão recorrida como os recorrentes entendem ser aplicável o Código de 1982 - mas apenas a questão de saber qual a interpretação correcta da mesma norma do Código de 1982. O objecto do presente recurso deve, por isso, restringir-se à primeira questão colocada pelas recorrentes.
7. A inconstitucionalidade da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a) do Código Penal de 1982, na sua versão originária, na interpretação de que a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para comparência para as primeiras declarações ou interrogatório do agente, como arguido, na fase da instrução. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração deste Tribunal - reportada à norma constante do art. 120º, nº 1, alínea a), Código Penal de 1982, na sua versão originária, interpretado no sentido de que a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para comparência para as primeiras declarações ou interrogatório do agente, como arguido, na fase da instrução - não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Na realidade, o Tribunal decidiu já, nos acórdãos nºs 205/99, 285/99, 122/2000
(publicados no Diário da República, II série, de 5 de Novembro e de 21 de Outubro de 1999, respectivamente, e de 6 de Junho de 2000) e 317/2000 (ainda inédito) que a norma constante da mencionada alínea a) do nº 1 do artigo 120º do Código Penal, quando interpretada no sentido de que a interrupção do prazo prescricional se verifica a partir da notificação para as primeiras declarações do arguido na fase de instrução, era inconstitucional por violação do disposto nos artigos 29º, nºs 1 e 3 da Constituição.
É esta jurisprudência – e pelos fundamentos dos acórdãos supra citados, para os quais se remete – que, por manter inteira validade, mais uma vez há agora que reiterar. III – Decisão. Em face do exposto, decide-se: i) não conhecer do objecto do recurso interposto pelo recorrente MC. ii) não conhecer do objecto do recurso interposto pelas recorrentes MEC e MMC, na parte em que pretendem ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 120º, nº 1, al. a), quando conjugada com o disposto no art. 2º, nº 4, ambos da versão originária Código Penal, por violação do princípio do tratamento mais favorável ao arguido; iii) julgar inconstitucional, por violação dos nºs 1 e 3 do art. 29º da Constituição, a norma constante da alínea a) do nº 1 do art. 120º da versão originária do Código Penal, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução; iv) consequentemente, conceder, nesta parte, provimento ao recurso interposto pelas recorrentes MEC e MMC e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade; v) condenar o recorrente MC em 15 Ucs. Lisboa, 13 de Dezembro de 2000- José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida
(sem prejuízo de continuar a entender que não se deve tomar conhecimento do recurso , por não se estar perante uma questão de inconstitucionalidade normativa)