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Proc. nº 154/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos Presentes autos, vindos do Tribunal Superior de Justiça de Macau, em que figuram como recorrente a Associação B... e como recorrido o Ministério Público foi proferido, ao abrigo do disposto no artigo 78º-B da Lei do Tribunal Constitucional, despacho com o seguinte teor:
'Nos termos do que se dispõe no artigo 34º da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto
(Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau), a competência do Tribunal Constitucional relativamente a processos de fiscalização concreta de constitucionalidade vindos do Território de Macau, passa a caber ao Tribunal Superior de Justiça de Macau a partir do momento em que, nos termos do art. 75º
(hoje, artigo 72º) do Estatuto Orgânico de Macau, os tribunais do Território forem investidos na plenitude e exclusividade da jurisdição. Por força do preceituado no Decreto do Presidente da República nº 118-A/99, de
29 de Março, foram os tribunais de Macau investidos na plenitude e exclusividade da jurisdição a partir de 1 de Junho de 1999, sem prejuízo do disposto nos artigos 11º, nº 1, alínea e), 20º, nº 3, 30º, nº 1, alínea a) e 40º, nº 3 do Estatuto Orgânico de Macau. Assim, a partir de 1 de Junho de 1999, o Tribunal Constitucional deixou de ter jurisdição quanto ao presente processo de recurso de constitucionalidade vindo do Tribunal Superior de Macau, de acordo com a norma atrás referida. Pelo exposto, e de acordo com o que se estabelece no artigo 78º-B, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), julgo extinta a instância nos presentes autos de recurso, por perda de jurisdição'.
2. Inconformada com esta decisão a recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 700º, nº 3 do Código de Processo Civil, a reclamação que agora se aprecia, que fundamentou nos termos seguintes:
'I – Do erro na fundamentação processual do despacho recorrido:
1. Na parte decisória do Douto Despacho acima melhor identificado, afirma o Excelentíssimo Juiz Conselheiro como de imediato se cita para facilidade de referência por Vossas Excelências: Pelo exposto, e de acordo com o que se estabelece no artigo 78º-B, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), julgo extinta a instância nos presentes autos de recurso, por perda de jurisdição. Ocorre que, salvo o devido respeito, que é muito e incondicionado, em nada o disposto no artigo 78º-B da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional pode sustentar a avocação de poderes, cumprida pelo Excelentíssimo Juiz, para a produção do Despacho que ora constitui objecto de Reclamação. Efectivamente, aquilo que naquele normativo legal se contem é a sustentação processual dos despachos que tenham por objecto ou finalidade já o juízo sobre a deserção do recurso (1), já sobre a suspensão da instância quando imposta por lei (2), já a admissão da desistência de parte (3), já a promoção da baixa dos Autos para conhecimento de questão pressuposta do qual possa estar dependente a produção de juízo sobre a inutilidade superveniente do recurso de constitucionalidade (4), já quaisquer outros poderes que, residualmente, possam encontrar consagração legal expressa ou determinação regimental específica para o Tribunal Constitucional.
2. Ora, o Excelentíssimo Juiz Conselheiro decidiu, em cumprimento de interpretação sua de um Decreto Normativo do Presidente da República – como adiante se terá oportunidade de referir com maior detalhe – declarar extinta a instância, por alegada perda de jurisdição, em cumprimento, por isso, de um poder que a lei, manifestamente, não lhe reconhece. E, com a necessária humildade e muito respeito, a consideração imediatamente antes expendida bastaria para justificar que, sobre aquela mesma questão sobre que, putativamente, exerceu juízo o Excelentíssimo Relator, deve recair acórdão, a proferir por Vossas Excelências. II – Da inconstitucionalidade da norma única do Decreto do presidente da República nº 118-A/99, de 20 de Março, na interpretação que à mesma é dada pelo Despacho do Excelentíssimo Juiz Relator:
3. Nos termos do disposto no nº 9 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa «nenhuma causa pode ser subtraída a tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior'. Tal norma, sem prejuízo da respectiva integração sistemática externa no âmbito da disciplina constitucional das garantias de processo criminal, cumpre consagração expressa do princípio do juiz legal (ou natural) o qual integra o património constitucional dos direitos, liberdades e garantias enquanto princípio de garantia geral do processo judicial (neste sentido, cfr., por todos, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 5ª edição, Coimbra, 1992, p.
389).
4. Ora, o resultyado interpretativo que sustenta a decisão tomada pelo Excelentíssimo Conselheiro, Relator nos presentes autos, ao promover o desaforamento de uns autos já admitidos e visados pelo Tribunal Constitucional, e nos quais – nunca será demais lembrá-lo – o Recorrente havia já apresentado as respectivas alegações – viola, justamente, o princípio do juiz legal. Ocorre, entretanto, que a interpretação sustentada pelo Excelentíssimo Conselheiro Relator nada tem de necessário e que, muito antes pelo contrário, a norma única que integra o Decreto Presidencial e susceptível de uma outra interpretação, essa outra rigorosamente compatível com a normatividade constitucional.
5. Se é certo que a dita norma do Decreto Presidencial se funda na previsão expressamente contida na Lei nº 112/91, de 29 de Agosto; se é certo que a própria Constituição da República Portuguesa confia ao Presidente da República o poder determinar o momento a partir do qual a organização judiciária do Território de Macau se deverá estabelecer, plenamente, com propriedade e autonomia, não é menos certo de que, em cumprimento do princípio universal de direito, as disposições normativas devem valer para o futuro. Ou seja, muito concretamente, da determinação normativa de que a partir de 1 de Junho de 1999 o Tribunal Constitucional deixe de ter competência para o exercício da jurisdição sobre recursos interpostos para o exercício do juízo de fiscalização concreta da constitucionalidade ou da ilegalidade de quaisquer normas, não tem de resultar, necessariamente, uma qualquer modificação da competência firmada por lei anterior relativamente aos processos pendentes naquele juízo. E, sobretudo, não deverá ser essa a interpretação sustentada, lá onde a mesma se manifesta em inequívoca violação da Constituição da República Portuguesa'.
3. Notificado o Ministério Público para responder, querendo, às alegações da recorrente, pelo mesmo foi dito:
'1º - A presente reclamação parece-nos claramente improcedente.
2º - Desde logo – e relativamente ao pedido de fiscalização da constitucionalidade do Decreto do Presidente da República nº 118º-A/99, de 20 de Março – consideramos que o mesmo não contém uma «norma», susceptível de integrar o objecto dos recursos de fiscalização concreta – traduzindo antes a prática de um acto político, fundado na própria Constituição e no Estatuto do Território de Macau, insusceptível, como tal, de ser sindicado no âmbito do presente recurso.
3º - Não tem, por outro lado, a Reclamante na devida conta a causa de extinção do presente recurso, que radica na especialidade estatutária, constitucionalmente consagrada, do Território de Macau (art. 292º da Constituição da República Portuguesa) e na natureza do facto que a determinará: extinção da jurisdição dos tribunais portugueses – e não em mera alteração superveniente da competência, em relação à qual seja pertinente invocar o princípio do juiz natural e da estabilidade da competência que lhe subjaz.
4º - Na verdade, a perda de jurisdição (realidade bem diversa da alteração legal da competência), ora decretada, surge como simples e inevitável corolário da própria situação constitucional do Território de Macau.
5º - Finalmente, a solução que o Tribunal Constitucional vem adoptando nos recursos pendentes, provenientes de tribunais sediados em Macau, mais não traduz do que a actuação do princípio da aplicação imediata da alteração da lei reguladora do âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses às causas pendentes, repercutindo tal perda de jurisdição na tramitação do processo, valendo consequentemente tal alteração «para o futuro» (embora imediatamente aplicada aos processos em curso).
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação
4. Da competência do Relator para o despacho reclamado. Começa a reclamante por questionar que o Relator tivesse poderes para o despacho reclamado. Alega, nesse sentido, que em nada o disposto no artigo 78º-B da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pode sustentar a avocação de poderes, cumprida pelo Relator, para a produção do despacho que ora constitui objecto de reclamação.
É, porém, manifesto que não lhe assiste razão. Cremos, aliás, que a suscitação pela reclamante desta questão resulta apenas da circunstância de a mesma não ter tomado em consideração as alterações à Lei do Tribunal Constitucional, designadamente à norma relativa aos poderes do relator, introduzidas pela Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro. De facto, ao contrário do que refere a reclamante, o artigo 78º-B da Lei do Tribunal Constitucional atribui hoje expressamente ao Relator competência para, como aconteceu na situação que constitui objecto dos autos, '...julgar extinta a instância por causa diversa do julgamento...'. Improcede, por isso, nesta parte, a reclamação apresentada.
5. Da alegada inconstitucionalidade da norma única do Decreto do Presidente da República nº 118-A/99, de 20 de Março, na interpretação que à mesma foi dada pelo despacho reclamado. Sustenta a Reclamante, por outro lado, que a norma única do Decreto do Presidente da República nº 118-A/99, de 20 de Março, na interpretação que à mesma foi dada pelo Relator - ao promover o desaforamento de uns autos já admitidos e visados pelo Tribunal Constitucional e nos quais a Recorrente já havia apresentado alegações - viola o princípio do juiz legal, consagrado no artigo 32º, nº 9 da Constituição.
5.1. Importa, porém, começar por analisar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, consistente em saber se o Decreto do Presidente da República nº 118-A/99, de 20 de Março, incorpora um verdadeiro «acto normativo», no sentido referido pelos artigos 207º e 277º a 283º da Constituição e 70º da Lei do Tribunal Constitucional, ou se, pelo contrário, traduz antes um «acto político», enquanto tal insusceptível de fiscalização de constitucionalidade.
5.2 Sobre o conceito de «norma» (ou «acto normativo») como objecto do processo constitucional constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que esse conceito, para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, não abrange apenas os preceitos de natureza geral e abstracta, mas inclui 'todo e qualquer acto do poder público que contiver uma regra de conduta para os particulares ou para a Administração, um critério de decisão para esta última ou para o juiz ou, em geral, um padrão de valoração de comportamento (cfr., designadamente, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 26/85, 63/91, 146/92 e 255/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5, p.18, 18, p. 168, 21, p. 617,
22, p. 131; cfr. a declaração de voto do presente relator no acórdão nº 172/93, Acórdãos cit., 24, p. 458 ss.). Nele cabe 'todo e qualquer preceito contido num diploma legal, ainda que se trate de um preceito de carácter individual e concreto e ainda que, neste caso, ele se revista de eficácia consumptiva, isto é, ainda que incorpore materialmente um acto administrativo, mas nele já não se incluem os actos administrativos propriamente ditos (não incorporados em diplomas legais), as decisões judiciais e os actos políticos ou de Governo' (assim, designadamente, o Acórdão nº 195/94, Acórdãos cit., 27, p. 420). Importa esclarecer este último ponto. No que se refere ao conceito de «acto político», afirmou já este Tribunal, dando eco às palavras de A. Rodrigues Queiró (cfr. 'A Função Administrativa' - Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIV, Nºs 1, 2 e 3, p.
41-48, e Lições de Direito Administrativo, vol.I, Coimbra, 1976, p. 72 ss.), que eles traduzem 'volições primárias - e, por isso, situadas ao mesmo nível dos actos legislativos -, provenientes de um órgão de soberania ou de um «órgão supremo do Estado», de natureza individual e concreta - sendo, ao nível do seu conteúdo, semelhantes aos actos administrativos -, as quais representam «o exercício de faculdades directamente conferidas pela Constituição, sem sujeição
à lei ordinária, fora, portanto, de qualquer propósito de traduzir, no que respeita ao seu conteúdo, uma actuação concreta, uma volição prévia do legislador ordinário». Tais actos representam, ainda nas palavras do mesmo autor, 'o exercício de faculdades directamente conferidas pela Constituição'
(«Actos de Governo e Contencioso de Anulação» Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLV, 1969, p. 14), ou seja, 'são praticados sem sujeição à lei ordinária, fora, portanto, de qualquer propósito de traduzir, mediata ou imediatamente (isto é, com ou sem a mediação de uma norma regulamentar), numa actuação individual e concreta, uma volição prévia do legislador ordinário' (nesse sentido, os Acórdãos nºs 254/92 e 195/94, Acórdãos cit., 22, p. 99-100 e 27, pp. 420-421).
5.3 Aqui chegados importa começar por decidir se o Decreto do Presidente da República nº 118-A/99 tem ou não a natureza de um «acto político» no sentido antes expresso. É o seguinte o seu teor:
'Considerando que o território de Macau, nos termos da Constituição e do Estatuto Orgânico de Macau, dispõe de organização judiciária própria, dotada de autonomia e adaptada às suas especificidades, nos termos da lei; Considerando que o Estatuto Orgânico de Macau reserva a fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade ao Tribunal Constitucional e estabelece foro especial para o Governador e os secretários-adjuntos; Considerando que a Lei nº 112/91, de 29 de Agosto, definiu o regime de autonomia judiciária constitucional e estatutariamente atribuído ao território de Macau, dispondo, no seu artigo 34º, sobre a transição das competências que se mantinham no Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal de Contas quando os tribunais do território forem investidos na plenitude e exclusividade da jurisdição; Considerando que o artigo 72º do Estatuto Orgânico de Macau atribui ao Presidente da República a competência para, ouvido o Conselho de Estado e o Governo da República, determinar o momento a partir do qual os tribunais de Macau serão investidos na plenitude e exclusividade da jurisdição; Considerando que a experiência de seis anos de autonomia judiciária limitada permite, com toda a segurança, dotar os tribunais do território da plenitude e exclusividade da jurisdição; Ouvido o Conselho de Estado e o Governo da República: O presidente da República decreta, nos termos dos artigos 292º, nº 1, in fine, da Constituição e 72º do Estatuto Orgânico de Macau, o seguinte: Sem prejuízo do disposto nos artigos 11º, nº 1, alínea e), 20º, nº 3, 30º, nº 1, alínea a), e 40º, nº 3 todos do Estatuto Orgânico de Macau, os tribunais de Macau são investidos na plenitude e exclusividade de jurisdição a partir de 1 de Junho de 1999'. Vejamos então. Como refere Gomes Canotilho, 'muitos actos políticos do Presidente da República revestem a forma de decreto, podendo mesmo dizer-se que, na falta de especificação, revestem a forma de decreto todos os actos do Presidente da República'. A título exemplificativo enumera este autor alguns dos «actos políticos» do Presidente da República que revestem a forma de decreto: 'a nomeação e exoneração do Primeiro Ministro e restantes membros do Governo (art.
187º); dissolução da AR (art. 133º/e); nomeação e exoneração do Ministro da República para as regiões autónomas (133º/l e 232º); nomeação e exoneração do Presidente do Tribunal de Contas e do Procurador-Geral da República (art.
133/m); marcação do dia de eleição para deputados (133º/b); convocação extraordinária da AR (133º/c); dissolução dos órgãos das regiões autónomas
(133º/f e 234º/1); indulto e comutação de penas (134º/f)' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 1997, p.
746). Pois bem, também o Decreto do Presidente da República nº 118º-A/99, cuja apreciação de constitucionalidade é requerida pelo reclamante, é, de acordo com a doutrina antes expressa, claramente um «acto político», na medida em que traduz efectivamente o exercício de uma faculdade directamente conferida pela Constituição ao Presidente da República (artigo 292º, nº 1, in fine), que pretende que este a exerça sem possibilidade de limitação ou demarcação dessa faculdade pela lei ordinária. Nessa medida, e enquanto «acto político», ele não está efectivamente, porque a Constituição o não pretende, sujeito ao controle jurisdicional de constitucionalidade.
5.4 Importa, porém, considerar outro ponto. É que existem Decretos do Presidente da República que assumem igualmente, para além da natureza de «acto político», uma dimensão normativa e, nessa medida, devem estar sujeitos ao controle jurisdicional de constitucionalidade. É o que por exemplo acontece, na opinião de Gomes Canotilho, com o decreto de declaração de estado de sítio ou de emergência, cujo conteúdo pode incluir medidas de carácter normativo
'modificando, suspendendo ou revogando outros actos normativos, restringindo ou suspendendo outros direitos fundamentais' (ob. cit., loc cit.). Ora este Tribunal já disse, no caso paralelo das resoluções da Assembleia da República, que quando sejam de natureza normativa podem submeter-se a juízos de inconstitucionalidade (assim os Acórdãos nº 42/85, Acórdãos cit., 5, p. 186;
184/89, Acórdãos cit., 13-I, p.180; e 195/94, Acórdãos cit., 27, p. 421). Importa, por isso, perguntar se o Decreto do Presidente da República nº
118º-A/99, de 20 de Março, para além de se tratar de um «acto político», não tem igualmente conteúdo normativo e, nessa medida - e esta será, em bom rigor, uma segunda questão - se não deve estar sujeito ao controle jurisdicional de constitucionalidade. No que se refere à primeira questão, cremos que a resposta é negativa. O Decreto do Presidente da República nº 118º-A/99, de 20 de Março, praticado ao abrigo do disposto no artigo 292º, nº 1, in fine, da Constituição e 72º do Estatuto Orgânico de Macau, assume efectivamente a natureza de um «acto político» sem carácter normativo, cujo conteúdo se circunscreve à escolha do momento (do dia) a partir do qual os tribunais de Macau são investidos na plenitude e exclusividade de jurisdição. Não se discute que o Decreto do Presidente da República nº 118º-A/99, de 20 de Março, ao eleger o dia 1 de Junho de 1999 para a investidura dos tribunais de Macau na plenitude e exclusividade de jurisdição fez indirectamente despoletar
(para utilizarmos a terminologia do Acórdão nº 195/94, já citado) efeitos do tipo normativo, desencadeando a aplicação de preceitos relativos à competência dos tribunais, designadamente o artigo 34º da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto, que dispõe sobre a transição das competências que se mantinham no Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal administrativo e no Tribunal de Contas para os tribunais do território de Macau.
Só que, como bem se demonstra no Acórdão 195/94 - em que estava em causa uma resolução da Assembleia da República que criou uma comissão parlamentar de inquérito e fixou a sua composição, objecto e duração do seu mandato - , em bom rigor o conteúdo normativo encontra-se não no Decreto do Presidente da República mas nos preceitos cuja aplicação é desencadeada por aquele Decreto. Em suma: os efeitos normativos cuja constitucionalidade o reclamante questiona não se encontram no Decreto do Presidente da República mas eventualmente nos preceitos da lei ordinária reguladores da competência dos tribunais, designadamente no artigo 34º da lei nº 112/91, de 29 de Agosto. Não tendo o Decreto do Presidente da República conteúdo normativo não é, efectivamente, susceptível de ser objecto de fiscalização de constitucionalidade.
5.5 Mas ainda que se entendesse que o Decreto do Presidente da República tinha conteúdo normativo haveria que colocar outra questão, consistente em saber a Constituição pretendeu sujeitar à fiscalização do Tribunal Constitucional essa eventual dimensão normativa do Decreto. Ora, parece-nos manifesto que não.
É que não só nesse caso as consequências normativas seriam inseparáveis do conteúdo político do acto, que, indiscutivelmente, a Constituição não quis submeter ao controle de qualquer outro órgão de soberania, como ainda a possibilidade de questionar neste Tribunal a constitucionalidade da norma que atribui competência plena e exclusiva aos tribunais do território de Macau a partir de 1 de Junho de 1999 inviabilizaria irremediavelmente, na prática, esse conteúdo normativo.
III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar a reclamante em custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 14 de Dezembro de 1999- José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida