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Proc.º n.º 70/99 PLENÁRIO Cons.º Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – O PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA REGIONAL DA MADEIRA veio requerer, ao abrigo do preceituado no artigo 281º, n.º2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes do Decreto-Lei n.º 417/98, de 31 de Dezembro.
Segundo o requerente, no processo de elaboração daquele diploma legal foi violado o disposto nos artigos 227º, n.º1, alínea v), e 229º, n.º2, da Constituição, e a Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto.
Os fundamentos invocados para estruturar o pedido são os seguintes:
- em 27 de Outubro de 1998, o Governo da República, através de ofício do Gabinete de Sua Excelência o Ministro da República, solicitou à Assembleia Legislativa Regional da Madeira que se pronunciasse, no prazo de quinze dias, sobre o projecto de decreto-lei que alterava algumas das disposições do Regulamento das Condições Higiénicas e Técnicas a Observar na Distribuição e Venda de Carnes e Seus Produtos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
158/87, de 24 de Junho;
- em 6 de Novembro de 1998, a Assembleia Legislativa Regional, quando, em sessão expressamente convocada para o efeito, se preparava para apreciar o referido projecto de decreto-lei, foi confrontada com o facto de o mesmo ter sido aprovado dois dias antes em reunião de Conselho de Ministros;
- segundo o requerente, a aprovação daquele diploma em Conselho de Ministros é certificada pelo comunicado do mesmo Conselho, de 4 de Novembro de 1998 (data indicada certamente por lapso, pois a reunião do Conselho de Ministros teve lugar no dia 5 de Novembro de 1998) que, no seu ponto III, afirma: 'O Conselho de Ministros aprovou também dois diplomas no domínio da saúde pública e qualidade alimentar', sendo um desses diplomas justamente aquele sobre o qual a Assembleia Legislativa Regional da Madeira havia sido solicitada a pronunciar-se;
- assim, como a Assembleia Legislativa Regional fora solicitada a pronunciar-se pelo prazo de quinze dias (até ao dia 11 de Novembro de 1998, portanto), o Governo, ao aprovar o diploma em apreço no dia 4 de Novembro de 1998, não cumpriu o dever de audição dos órgãos regionais a que se referem as normas dos artigos 227º, n.º1, alínea v), e 229º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, e a Lei n.º40/96, de 31 de Agosto;
- nestes termos, todas as normas do Decreto-Lei n.º
417/98, de 31 de Dezembro, são inconstitucionais.
2. – Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro – Ministro apresentou uma extensa resposta, à qual juntou dois anexos:
Anexo A – cópias de comunicados do Conselho de Ministros de 5 de Novembro de 1998 e de 13 de Novembro de 1998. O Ponto III do Comunicado de 5 de Novembro, afirma o seguinte: 'III. O Conselho de Ministros aprovou (...) dois diplomas no domínio da saúde pública e qualidade alimentar: 1. Decreto-Lei que altera algumas disposições do Regulamento das condições higiénicas e técnicas a observar na distribuição e venda de carnes e seus produtos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/97, de 24 de Junho. Este diploma, aprovado na generalidade, prevê a possibilidade dos estabelecimentos de vendas de carnes e produtos derivados fabricarem também alguns produtos à base de carne e define as regras a que deve obedecer o fabrico em causa (...)' [fl. 37]. Por sua vez, o Ponto II do Comunicado de 13 de Novembro de 1998, afirma o seguinte: 'O Conselho de Ministros aprovou também os seguintes diplomas: 5. Decreto-Lei que altera algumas disposições do regulamento das condições higiénicas e técnicas a observar na distribuição e venda de carnes e seus produtos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/97, de 24 de Junho'.
- Anexo B – cópia de um ofício, datado de 24 de Novembro de 1998, dirigido pelo Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira ao Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira.
Na resposta ao pedido formulado, o Primeiro-Ministro diz, em síntese:
- ao contrário do que afirma o requerente, o diploma em apreço não foi aprovado na reunião do Conselho de Ministros que teve lugar no dia 5 de Novembro de 1998, mas sim na reunião do dia 13 de Novembro de 1998;
- na reunião do Conselho de Ministros do dia 5 de Novembro de 1998 – e como, aliás, resulta expressamente do respectivo Comunicado
-, o que ocorreu foi, isso sim, a aprovação na generalidade do diploma em apreço;
- no dia da reunião do Conselho de Ministros de 13 de Novembro de 1998 – ou seja, quando se submeteu o diploma em apreço à aprovação final -, já havia expirado o prazo de quinze dias que foi concedido para audição da Assembleia Legislativa Regional da Madeira;
- cabe legitimamente no âmbito da organização interna do Governo a submissão dos decretos-leis a uma aprovação na generalidade, seguida de uma aprovação final, dentro do pressuposto de que na decomposição do processo de aprovação nessas duas fase se não procede á violação dos direitos constitucionais das regiões à audição;
- o Governo da República cumpriu o disposto no n.º 2 do artigo 229º da CR ao solicitar parecer sobre o diploma impugnado aos órgãos próprios das Regiões Autónomas, consumando-se a referida audição independentemente do facto de os mesmos órgãos se terem abstido de qualquer pronúncia, o que aliás, justifica a referência no proémio do Decreto-Lei n.º
417/98 a tal audição;
- mesmo que, por hipótese, o Governo não houvesse cumprido o disposto no artigo 6º da Lei n.º 40/96, daí não resultaria a inconstitucionalidade ou a ilegalidade do Decreto-Lei n.º 417/98, nos termos do artigo 9º da mesma lei, já que a Constituição não erige este último acto legislativo, de carácter ordinário simples, a padrão de constitucionalidade ou de legalidade de outras leis.
Discutido o Memorando apresentado nos termos do artigo
63º, n.º1, da Lei do Tribunal Constitucional e fixada a orientação do Tribunal, foi o processo distribuído.
É essa orientação que, decidindo, cumpre explicitar.
3. – Nos presentes autos, vem questionada a constitucionalidade de todas as normas do Decreto-Lei n.º 417/98, por falta de audição (ou por audição em termos inadequados) da Região Autónoma da Madeira, em violação dos artigos 227º, n.º 1, alínea v), e 229º, n.º2 da Constituição.
O diploma em questão veio introduzir algumas alterações ao Regulamento das Condições Higiénicas e Técnicas a Observar na Distribuição e Venda de Carnes e Seus Produtos, que tinha sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º
158/97, de 24 de Junho. Tais alterações destinam-se a regulamentar as condições da preparação de produtos à base de carne, como sejam os enchidos, desde que destinados à venda directa ao consumidor, nos estabelecimentos de venda de carnes.
Como se referiu, do proémio do diploma em apreço consta a referência de que 'foram ouvidos os órgãos de governo próprios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira (...)'.
De acordo com o pedido formulado pela entidade requerente, apesar de no proémio do Decreto-Lei n.º 417/98, de 31 de Dezembro, se conter a menção de que foram ouvidos os órgãos próprios da Região Autónoma da Madeira, essa audição ou não ocorreu, de todo em todo, ou não ocorreu de forma constitucionalmente adequada, pois que foi feita em termos tais que violam a Constituição.
As normas da Lei Fundamental que a entidade requerente considera terem sido violadas são o n.º 2 do artigo 229º e a alínea v) do n.º1 do artigo 227º.
É certo que no pedido formulado se indica também como violada a Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto; porém, tal como se refere na resposta do Primeiro-Ministro, aquela Lei não pode considerar-se parâmetro de aferição de inconstitucionalidade dos actos legislativos dos órgãos de soberania.
De facto, a Lei n.º 40/96 veio regulamentar a audição dos órgãos de governo próprios das Regiões Autónomas, 'nos termos do artigo
231º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa' (hoje, artigo 229º, n.º2). Todavia, não só a própria norma constitucional não impõe a sua regulamentação por meio de lei, como também não parece que se possa atribuir a qualquer incumprimento pontual das suas normas a virtualidade de gerar (como que
'indirectamente' ) uma inconstitucionalidade, por violação do artigo 229º, n.º2, da Constituição. Com efeito, apenas a Constituição constitui norma de referência para a determinação de relações de inconstitucionalidade de normas legais
(artigo 3º, n.º3, da Constituição).
4. – O presente pedido vem formulado ao abrigo do preceituado no artigo 281º, n.º2, alínea g), da Constituição, tendo como pressuposto que a declaração de inconstitucionalidade se funde em violação dos direitos das regiões autónomas.
De acordo com o pedido, foi violado o direito de audição dos órgãos próprios das regiões autónomas, previsto no n.º2 do artigo 229º da Constituição.
É certo que, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º417/98, de
31 de Dezembro, se afirma expressamente que 'foram ouvidos os órgãos próprios dos Açores e da Madeira'. Mas, segundo o requerente, tal afirmação não comprova a existência de audição dos órgãos regionais. Por outro lado, para o Primeiro-Ministro, 'a circunstância de constar do Decreto-Lei n.º 417/98, publicado no Diário da República de 31 de Dezembro, a menção de que teriam sido ouvidos os órgãos de governo próprio das regiões autónomas, tão-pouco viola as normas constitucionais e legais relativas à audição, já que tal indicação é inserida sempre que se solicita às mesmas regiões, independentemente do facto de os respectivos órgãos se decidirem ou não pronunciar sobre os actos sujeitos ao mesmo parecer' (artigo 25º, da resposta).
Esta questão da valoração da referida menção constante do preâmbulo do diploma não terá de ser enfrentada e resolvida se o Tribunal vier a concluir que, no caso em apreço, não era necessário proceder à audição dos órgãos regionais, pelo que a final se tomará posição sobre tal questão.
5. - Vejamos, pois, os elementos factuais que resultam dos autos e que se mostram pertinentes para a decisão:
- no dia 27 de Outubro de 1998, o Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira solicitou que a Assembleia Legislativa Regional da Madeira se pronunciasse, pelo prazo de quinze dias, sobre o projecto de decreto-lei que alterava algumas disposições do Regulamento das Condições Higiénicas e Técnicas a Observar na Distribuição e Venda de Carnes e Seus Produtos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 158/97, de 24 de Junho;
- no dia 5 de Novembro de 1998, o Conselho de Ministros aprovou 'na generalidade' o projecto de decreto-lei referido [cf. o Ponto III do Comunicado de 5-11-1998, que integra o Anexo A da resposta do Primeiro-Ministro];
- no dia 11 de Novembro de 1998, expirou o prazo de quinze dias fixado para a emissão de parecer por parte da Assembleia Legislativa Regional da Madeira;
- no dia 13 de Novembro de 1998, o Conselho de Ministros aprovou o projecto de decreto-lei que alterou algumas disposições do Regulamento das Condições Higiénicas e Técnicas a Observar na Distribuição e Venda de Carnes e Seus Produtos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 158/97, de 24 de Junho [cf. o Ponto II, nº 5, do Comunicado de 13-11-1998, que integra o Anexo A da resposta do Primeiro-Ministro; cf., ainda, o Diário da República, I Série-A, nº 301, de
31-12-1998, p. 7357, onde se afirma, relativamente ao Decreto-Lei nº 417/98,
'Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 13 de Novembro de 1998'].
6. - Importa agora analisar em que consiste o dever de audição dos órgãos regionais e qual o objecto desse dever constitucional.
O artigo 229º, n.º1, da Constituição (antes da Revisão de 1997, era o artigo 231º, n.º2) determina que 'os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente a questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional'.
Pelo seu lado, o artigo 227º, n.º1, alínea v), da Constituição estabelece, no que respeita aos poderes das regiões autónomas a definir nos respectivos estatutos o seguinte: 'v) Pronunciar-se por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como, em matérias do seu interesse específico, na definição das posições do Estado Português no âmbito do processo de construção europeia'.
Destes textos decorre que o dever de audição se exerce sobre 'questões da competência dos órgãos de soberania que sejam respeitantes às regiões autónomas'.
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira apenas na sua última versão - aprovada pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto - se refere especificamente a esta matéria. Com efeito, o artigo 89º regula o dever de audição dos órgãos de governo próprio da Região, quando a Assembleia e o Governo da República 'exerçam o poder legislativo e regulamentar em matérias da respectiva competência que à Região diga respeito' (n.º1), alargando-se essa audição 'a outros actos do Governo da República sobre questões de natureza política e administrativa que sejam de relevante interesse para a Região'. O artigo 90º regula a forma de audição (será ouvido o órgão competente, que emitirá parecer fundamentado especificamente para o efeito), e o artigo 92º estabelece as consequências do não cumprimento do dever de audição
(inconstitucionalidade ou ilegalidade).
O Regimento da Assembleia da República contém também uma norma sobre esta matéria - o artigo 151º - na qual se determina que,
'tratando-se de iniciativa que verse sobre matéria respeitante às Regiões Autónomas, o Presidente da Assembleia promove a sua apreciação pelos órgãos de governo regional (...)'.
7. - A Constituição, ao estabelecer no n.º2 do artigo
229º (tal como no anterior preceito do artigo 231º, n.º2) um direito de audição dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, quis certamente reconhecer um direito de participação das regiões relativamente aos actos dos órgãos de soberania que lhes digam respeito.
Questões da competência dos órgãos de soberania respeitantes às regiões autónomas são, desde logo, 'aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esse território' (veja-se, por todos, o Parecer n.º 20/77, in 'Pareceres da Comissão Constitucional', 2º Vol., pág. 159 e segs.). Assim, também, as medidas designadamente legislativas que respeitem em exclusivo às regiões autónomas ou a uma delas, não podem deixar de ser objecto de audição.
Mas, o dever de audiência não existe naqueles casos em que as regiões autónomas são interessadas apenas na medida em que o é o restante território nacional (veja-se, neste sentido, o Parecer n.º 17/78, in Pareceres..., cit., 5º Vol., pág. 179 e ss.).
A doutrina do Parecer n.º 20/77 foi reiterada num outro parecer, mas com uma formulação que merece ser destacada pela sua abrangência e por ter sido seguida em outros pareceres. Escreveu-se no Parecer n.º 2/82 (in Pareceres..., cit,18º Vol., pág. 103 e ss) o seguinte: '(...) a obrigatoriedade da audiência das regiões autónomas - rectius, dos seus órgãos - não surge logo que uma questão da competência dos órgãos de soberania ‘também’ lhes interesse, ou seja, logo que tal questão tenha um relevo ou uma amplitude ‘nacional’, e não meramente ‘continental’: é antes necessário e imprescindível que tal questão se apresente pelo menos com alguma especificidade ou peculiaridade relevante no que concerne a essas regiões. E, de facto, não só as exigências da autonomia não pedem mais, como ir além disso envolveria, por assim dizer, o reconhecimento de um injustificável privilégio das regiões autónomas relativamente ao conjunto do País' (esta formulação foi retomada nos Pareceres n.ºs 4/82 e 24/82, in Pareceres...,cit., 18º Vol., pág. 162ss e 20º Vol., pág. 181ss, respectivamente.
8. - O Tribunal Constitucional desenvolveu também sobre esta matéria do dever de audição dos órgãos regionais uma abundante jurisprudência ( Acórdãos n.ºs 1/84 e 14/84, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 2º Vol., pág. 173 e 339, respectivamente; n.º 36/84, in Acórdãos..., cit., 3º V., pág. 65; n.ºs 42/85 e 57/85, in Acórdãos... cit., 5º V.,pág. 181 e 71, respectivamente; n.º 130/85, ibidem, 6ºV., pág. 7; n.º 82/86, ibidem, 7º V. I, pág. 127; n.º 264/86, ibidem, 8º V., pág. 169; n.º 125/87, ibidem, 9º Vol., pág. 287; n.º 404/87, ibidem, 10º V., pág. 391; n.º 275/89, ibidem, 13º V. I, pág. 281; n.º 403/89, ibidem, 13º V. I, pág. 465; n.º 280/90, ibidem, 17º V, pág. 29; n.º 212/92, ibidem, 22º V, pág. 7 e, mais recentemente, Acórdão n.º 583/96, in 'Diário da República', IIª Série, de 15 de Outubro de
1996).
Por todos, transcreve-se o acórdão n.º 403/89, atrás referido, em que o Tribunal seguiu de perto a doutrina expendida nos Pareceres n.ºs 20/77 e 2/82 da Comissão Constitucional afirmando que são ' respeitantes às regiões autónomas', para efeitos de audição dos órgãos regionais, as questões que respeitem a interesses predominantemente regionais, ou pelo menos mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios, não bastando que se trate de uma questão que tenha um relevo ou uma amplitude nacional, e não meramente continental. Depois, o Tribunal assinalou que existe um 'direito da região a que o órgão de soberania competente só possa pronunciar-se depois de ter conhecimento do parecer regional, desde que este lhe seja acessível em prazo razoável' [sobre este Acórdão, cf. ÁLVARO MONJARDINO, 'Um caso de inconstitucionalidade formal (a propósito do acórdão nº 403/89 do Tribunal Constitucional)', Atlântida – Ciências Sociais, 1991, pp. 3ss.].
O entendimento adoptado, primeiro, pela Comissão Constitucional, e depois pelo Tribunal Constitucional não deixa de ser corroborado por diversos contributos doutrinais.
Assim, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra, 1993, p.
868) entendem que a locução 'questões (...) respeitantes às regiões autónomas' deve ser entendida como abrangendo '(...) actos especificamente respeitantes às regiões autónomas (uma lei para uma delas, a criação ou extinção de um serviço estadual em uma delas, etc.) ou que pelo menos as afectem de forma especial, não bastando que as toquem de forma genérica, nos mesmos termos que outras regiões do país'.
Também, J. MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, tomo III – Estrutura constitucional do Estado, 4ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 1998, pp. 318ss.; idem, 'Participação das Regiões Autónomas', in A feitura das leis, vol. II, Oeiras, 1986, pp. 231ss.) considera, na esteira da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Constitucional, que são 'questões respeitantes às regiões autónomas' aquelas que 'respeitem a interesses predominantemente regionais ou que, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para elas' (Manual..., cit., p. 319). J. MIRANDA entende, todavia, que entre
'interesse específico' e 'questões respeitantes às regiões autónomas' existe apenas uma 'oscilação terminológica' (cf. Funções, órgãos e actos do Estado, Lisboa, 1990, p. 320, nota 3; no mesmo sentido, PEDRO MACHETE, 'Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e das regiões autónomas no quadro da Constituição vigente', Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXXIII, 1991, p. 186).
Em sentido diverso, J. PEREIRA DA SILVA ['O conceito de interesse específico e os poderes legislativos regionais', in J. MIRANDA e J. PEREIRA DA SILVA (orgs.), Estudos..., cit., pp. 304ss.; idem, 'Região Autónoma', in Estudos..., cit., p. 936] entende, no essencial, que os conceitos de
'interesse específico' e 'questões respeitantes às regiões autónomas' são distintos, contestando a tese de J. MIRANDA, para quem se trata apenas de uma
'oscilação terminológica' [sobre este problema, cf., ainda, C. BLANCO DE MORAIS, A autonomia legislativa regional, Lisboa, 1993, p. 418; M. LÚCIA AMARAL,
'Questões regionais e jurisprudência constitucional: para o estudo de uma actividade conformadora do Tribunal Constitucional', in Estudos em memória do Professor João de Castro Mendes, Lisboa, s/d., em esp. p. 538; MARGARIDA SALEMA,
'Autonomia Regional', in J. MIRANDA (org.), Nos dez anos da Constituição, Lisboa, 1987, p. 220].
Não pode deixar também de se referir a opinião de RUI MEDEIROS e J. PEREIRA DA SILVA (Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores – Anotado, Lisboa, 1997, pp. 187ss.), sustentando que o Tribunal Constitucional parece ter realizado uma inflexão na jurisprudência da Comissão Constitucional no que respeita à delimitação do conceito de 'questões respeitantes às regiões autónomas'. Mais precisamente, aqueles Autores consideram que o Tribunal, designadamente no Acórdão nº 42/85, pôs fim à
'dualidade interpretativa' que marcou a jurisprudência da Comissão sobre
'interesse específico', por um lado, e 'questões respeitantes às regiões autónomas'.
De todo o modo, não pode deixar de reiterar-se aqui o entendimento que o dever de audição pelos órgãos de soberania dos órgãos próprios de governo das regiões autónomas recai sobre matérias da competência dos primeiros que respeitem a interesses predominantemente regionais ou pelo menos mereçam, no plano nacional, um tratamento específico face a alguma peculiaridade relevante no que toca a essas regiões.
Assim sendo, a existência ou não do dever de audição apenas pode afirmar-se em face do caso concreto que tem de apreciar-se. Será da análise do caso que terá de partir-se para a solução.
Vejamos, pois, o caso em apreço.
9. - Na apreciação da presente questão de constitucionalidade, pode logo começar-se por indagar se, no caso sub judice, era realmente necessário proceder à audição dos órgãos regionais. E, na verdade, bem parece dever concluir-se que não.
Com efeito, a Constituição determina que os órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas devem ser ouvidos relativamente às questões da competência dos órgãos de soberania 'respeitantes às regiões autónomas' (artigo 229º, nº 2, CR). Como se viu, o Tribunal, na esteira de abundante jurisprudência da Comissão Constitucional, já teve ocasião de concretizar o sentido da locução 'questões respeitantes às regiões autónomas'. Assim, por exemplo, no Acórdão nº 403/89 (cit.), o Tribunal, seguindo de perto a doutrina firmada nos Pareceres nºs 20/77 e 2/82 (cits.) da Comissão Constitucional, sublinhou que são 'respeitantes às regiões autónomas', para efeitos de audição dos órgãos regionais, as questões que respeitem a interesses predominantemente regionais, ou pelo menos mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios, não bastando que se trate de uma questão que tenha um relevo ou uma amplitude nacional, e não meramente continental.
Ora, não se afigura ser isso que sucede com a matéria a que respeitam as normas do Decreto-Lei nº 417/98, de 31 de Dezembro. Este diploma veio alterar o Regulamento das Condições Higiénicas e Técnicas a Observar na Distribuição e Venda de Carnes e Seus Produtos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 158/97, de 24 de Junho. Em síntese, o Decreto-Lei nº 158/97 estabeleceu as condições higiénicas e técnicas a observar pelos estabelecimentos de venda de carnes e seus produtos, bem como para a preparação de carnes picadas e preparados de carne, e o Decreto-Lei nº 417/98 veio dispor sobre o fabrico de enchidos fumados e ou termizados que se destinem à venda directa ao consumidor, por parte daqueles estabelecimentos. Sucede, porém, que nenhuma das suas normas respeita a interesses predominantemente regionais ou sequer a problemas que mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas Regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios. Basta referir que em momento algum do Decreto-Lei se referem as Regiões Autónomas, nem dele consta qualquer norma que possua uma incidência específica nessas regiões – como o mero confronto do diploma evidenciará.
Conclui-se, assim, que não tratando o diploma em questão de matéria respeitante a interesses predominantemente regionais ou que apresente alguma especificidade ou peculiaridade relevante no que concerne a essas regiões, não era exigível, no caso concreto, o cumprimento do dever de audição, pelo que não pode concluir-se pela verificação de qualquer inconstitucionalidade e, muito menos, por violação do artigo 229º, n.º2, conjugado com o artigo 227º, n.º1, alínea v), ambos da Constituição da República Portuguesa.
Face a esta conclusão, é irrelevante o facto de no proémio do diploma, constar a menção de que 'foram ouvidos os órgãos de governo próprios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira'.
Também, uma vez adquirido que, no caso em apreço, não era constitucionalmente exigida a audição da Região, fica prejudicada a apreciação da questão - que fundamenta o pedido do requerente - do alegado incumprimento por parte do Governo da República, do dever de audição dos órgãos de governo próprios da Região Autónoma da Madeira.
10. - Por todo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 417/98, de 31 de Dezembro.
Lisboa,17 de Novembro de 1999 Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa