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Proc. nº 741/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. CF interpôs recurso do despacho proferido no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, que lhe indeferiu um requerimento através do qual pedia que os dois meses de prisão – remanescentes da pena única de catorze meses de prisão que, em cúmulo, lhe fora imposta por aquele tribunal pela autoria material de dois crimes de homicídio por negligência grosseira, previsto e punível pelo artigo 136º, nº 2, do Código Penal de 1982, e à qual já haviam sido oportunamente declarados perdoados doze meses de prisão, nos termos do artigo 8º, nº 1, alínea d), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio – lhe fossem perdoados, agora ao abrigo da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, ou, se assim se não entendesse, que fossem substituídos por adequada pena de multa.
O Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido (acórdão de 20 de Junho de 2000, a fls. 10 e seguintes dos presentes autos).
2. Notificado do acórdão que negou provimento a esse recurso, CF arguiu a nulidade do mesmo, invocando contradição entre os fundamentos e a decisão
(requerimento de fls. 20 e seguintes).
Nos termos da reclamação então apresentada:
'[...] o douto acórdão desta Relação, ao não aplicar o regime previsto nos artº 44º e 46º, ambos do Código Penal, padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade material constitucionalmente consagrado, uma vez que trata de forma diferente situações que merecem tratamento idêntico, pois são os próprios artigos supra referidos que não fazem qualquer tipo de distinção entre penas residuais e penas não residuais.
Termos em que deve o douto acórdão desta Relação ser declarado nulo, por haver contradição entre os seus fundamentos e a decisão, e também por fazer uma interpretação e aplicação do disposto nos artº 44º e 46º do Código Penal não conforme com a Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da igualdade material, consagrado no artº 13º da Constituição da República Portuguesa.'
O Tribunal da Relação de Évora indeferiu a arguição de nulidade, por não se verificar a alegada contradição, e entendeu não dever pronunciar-se sobre a invocada inconstitucionalidade, por o recorrente nada ter 'oportunamente referido' (acórdão de 3 de Outubro de 2000, a fls. 23 e seguintes).
3. CF veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento assim redigido (fls. 26 e seguinte):
'[...] o presente acórdão ao afirmar, como as anteriores decisões, que a conduta do recorrente se mostra excluída da amnistia (cfr. artº 2º nº 1 alínea c) da Lei n. 29/99, de 12 de Maio), trata diferentemente situações que merecem um tratamento idêntico, uma vez que o caso dos presentes autos se insere no nº 3 daquele artº 2º. Desta forma, estamos perante uma violação do princípio constitucional da igualdade material (cfr. artº 13º da C.R.P.). Por outro lado, o mesmo acórdão vem reafirmar, no que concerne aos dois meses de prisão enquanto pena residual, que ao arguido não é aplicável o previsto nos artº 44º e 46º, ambos do Código Penal. No entanto, são os próprios preceitos que não fazem qualquer distinção entre penas residuais e penas não residuais. Nestes termos, e ao considerar tais artigos não aplicáveis ao arguido, estamos novamente perante uma situação de tratamento diferente de situações que são iguais, as quais, por isso, merecem o mesmo tratamento. Assim, assistimos, mais uma vez, a uma violação do princípio constitucional da igualdade material (cfr. artº 13º da C.R.P.), o que não se concebe.
[...] A inconstitucionalidade das decisões foi oportunamente suscitada nos autos, quando o recorrente arguiu a nulidade do douto acórdão desta Relação de fls.
..., arguição de nulidade essa que foi indeferida. Termos em que se requer seja recebido o presente recurso, com efeito suspensivo, nos termos do artº 78º nº 4 da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, apreciando-se a violação do artº 13º da Constituição da República Portuguesa, no que respeita à interpretação feita do artº 2º nº 3 da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, bem como dos artº 44º e 46º, ambos do Código Penal [...].'
4. O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação de Évora, não admitiu o recurso (despacho de fls. 28 e seguinte), fundamentando assim a sua decisão:
'[...] tal arguição de inconstitucionalidade, porque não suscitada durante o processo, é intempestiva. A inconstitucionalidade ora invocada não pode ser tida como suscitada durante o processo e, assim, ao contrário do ora referido pelo arguido, não foi oportunamente suscitada. De facto e como resulta dos autos, apenas foi suscitada no incidente da nulidade relativa ao acórdão de fls. 542 a 551, nulidade essa que foi indeferida pelo acórdão de fls. 560 a 562 (de que ora pretende recorrer) e no qual logo se disse, no que tange à inconstitucionalidade, que «... nada tendo o recorrente oportunamente referido, designadamente nas conclusões da sua motivação de recurso, e, assim, só agora suscitada, entendemos também ser de nos pronunciar sobre tal questão». Não vemos agora motivos para alterar esta posição já então manifestada, a qual, aliás, se mostra reforçada pelo entendimento do próprio Tribunal Constitucional que tem firmado jurisprudência reiterada e uniforme no sentido de que não é licito suscitar a questão da constitucionalidade apenas no requerimento em que se argui uma nulidade da decisão recorrida, quando a invocação e interpretação da norma, a que o recurso se refere, nada teve de surpreendente, tendo o recorrente, como in casu teve, plena oportunidade processual para suscitar tempestivamente a questão durante o processo [...].'
CF reclamou para o Tribunal Constitucional do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82 (requerimento de fls. 2 e seguintes).
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
5. O Tribunal da Relação de Évora não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante, por considerar que a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada no caso dos autos – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que pretende que este Tribunal aprecie e que tais normas sejam aplicadas na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade.
Nos termos do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, o recurso previsto na mencionada alínea b) só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
6. Não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.
Na verdade, o recorrente não suscitou, de modo processualmente adequado, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa.
6.1. Em primeiro lugar, a referência, pelo recorrente, a um eventual problema de inconstitucionalidade não foi feita 'durante o processo', no sentido funcional que a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem atribuindo a esta exigência.
A invocação da questão de inconstitucionalidade 'durante o processo', que é exigida como pressuposto processual do tipo de recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, há-de reportar-se necessariamente à norma que fundamenta a decisão sobre o objecto do litígio.
Subjacente à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada 'durante o processo' está a ideia de que, antes de o Tribunal Constitucional se pronunciar em recurso (isto é, para reexame) de uma questão de inconstitucionalidade, é necessário que essa questão tenha sido apresentada ao tribunal a quo para este sobre ela previamente formular um juízo que este Tribunal possa sindicar. Deve, portanto, em princípio, a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a sentença e tendo em conta que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, a reclamação por nulidades de uma decisão judicial ou o pedido de aclaração de uma decisão judicial não constituem, já, em regra, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (cfr., neste sentido, entre tantos outros, o acórdão nº 155/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 140, de 20 de Junho de 1995, p. 6751 ss).
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar a questão de inconstitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119 ss).
Ora, no caso dos autos, o recorrente apenas se referiu a um eventual problema de inconstitucionalidade no requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 20 de Junho de 2000
(requerimento de fls. 20 e seguintes), sendo certo que a questão discutida no acórdão então reclamado se mantinha a mesma desde a 1ª instância. O recorrente teve portanto oportunidade de suscitar em momento anterior (designadamente nas suas alegações perante o Tribunal da Relação de Évora) a questão de inconstitucionalidade e não existe no presente processo qualquer razão para o considerar dispensado do ónus de suscitar tal questão.
6.2. Em segundo lugar, na peça processual em que se refere a eventuais questões de violação da Constituição – o requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20 de Junho de 2000 (requerimento de fls. 20 e seguintes) –, o recorrente imputou o vício de inconstitucionalidade
à decisão judicial, como resulta das passagens anteriormente transcritas (cfr. supra, nº 2).
A mesma conclusão decorre aliás dos termos utilizados no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, onde de modo expresso se afirma que:
'o presente acórdão, ao afirmar como as anteriores decisões, que a conduta do recorrente se mostra excluída da amnistia [...] trata diferentemente situações que merecem tratamento idêntico' e que
'a inconstitucionalidade das decisões foi oportunamente suscitada nos autos, quando o recorrente arguiu a nulidade do douto acórdão [...]'.
Nas circunstâncias do processo, o recorrente pretende afinal, através do recurso de constitucionalidade, obter um novo julgamento da matéria discutida no processo.
Como o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
7. A tudo isto acresce que as normas que, de acordo com o requerimento de interposição do recurso, o recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional (as normas do artigo 2º, nº 3, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, e dos artigos 44º e 46º do Código Penal) não foram aplicadas na decisão recorrida – o acórdão de 20 de Junho de 2000, através do qual o Tribunal da Relação de Évora indeferiu a nulidade imputada ao acórdão anterior pelo ora reclamante.
Com efeito, o mencionado acórdão limitou-se a aplicar as normas do Código de Processo Civil sobre as nulidades – no caso, a norma do artigo 668º, nº 1, alínea c) – invocada pelo ora reclamante para fundamentar a alegada nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora (nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão).
No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Évora concluiu que
'não existindo qualquer contradição, não se verifica a apontada nulidade'.
Assim sendo, o Tribunal da Relação de Évora fundamentou a decisão contida no acórdão recorrido na norma do artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
Dado que as normas questionadas pelo ora reclamante (as normas contidas no artigo 2º, nº 3, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, e nos artigos 44º e
46º do Código Penal) não constituíram o fundamento normativo da decisão recorrida, não pode também dar-se como verificado o outro pressuposto processual exigido pelo artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional – a aplicação, na decisão recorrida, das normas cuja inconstitucionalidade se invoca e se pretende submeter à apreciação deste Tribunal.
8. Conclui-se assim que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida