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Proc. nº 681/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - M. A. , com os sinais dos autos, recorre do acórdão do STJ que negou a providência, por ele requerida, de 'habeas corpus', por 'manifestamente infundada'.
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82 e no respectivo requerimento de interposição disse o recorrente pretender que o Tribunal Constitucional apreciasse a constitucionalidade das normas dos artigos 219º, 222º e 223º do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação que teria sido dada no acórdão recorrido, no sentido de que 'por previsto ou interposto recurso da decisão que decreta a prisão preventiva, ainda que não fundamentada, não pode ser admitida a providência do 'habeas corpus'.
As normas citadas com a referida interpretação violariam os artigos
20º nº 5, 31º, 17º, 18º, 27º, 28º, 32º nº 1 e 205º da CRP, bem como os artigos
5º nºs 1 c), 4 e 6 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 11º nº 1 e 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O artigo 229º do CPP, no mesmo contexto interpretativo e ao estabelecer o prazo de trinta dias, contados tão somente a partir do recebimento dos autos, para julgamento do recurso da decisão que decreta a prisão preventiva, seria também contrário às normas referidas no parágrafo anterior.
Nas suas alegações, o recorrente formula as seguintes conclusões:
'1. O recorrente viu decretada a sua prisão preventiva por douto despacho não fundamentado na forma da lei, razão porque procurou valer-se da providência extraordinária de habeas corpus, para restabelecer seu direito fundamental de liberdade.
2. O douto acórdão recorrido interpretou e aplicou os artigos 219º,
222º e 223º do CPP, no sentido de que, por previsto ou interposto recurso do douto despacho que decretou a prisão preventiva do recorrente, ainda que de forma não fundamentada, a ser julgado no prazo de 30 dias, contado do recebimento dos autos, não era de se admitir a providência de habeas corpus, razão porque a teve manifestamente infundada, inclusive condenando o recorrente no pagamento de 10 Ucs.
3. Contudo, salvo o devido respeito, tal interpretação e aplicação das referidas disposições, amparadas por fundamentos expendidos anteriormente à
última revisão constitucional de 1997, são geradoras de inconstitucionalidade material dos referidos artigos, desde logo por violação do artigo 31º da CRP, que estabelece, imperativamente no seu nº. 1, que '... Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ilegal, a requerer perante o tribunal competente...', e em momento algum exige que a prisão ilegal seja proveniente de despacho irrecorrível.
4. Mas também por violação do novo nº. 5, do artigo 20º, da CRP, recentemente introduzido pela revisão de 1997, o qual estabelece que '... para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos...', o que, certamente, não é compatível com o prazo de 30 dias, contados apenas do recebimento dos autos, previsto no interpretado e aplicado artigo 219º do CPP, que desde logo não poderia estabelecer prazo superior a oito dias, para exame da prisão preventiva ilegal, pois deveria guardar a necessária correspondência com o prazo limite previsto no artigo 31º, nº. 3, do mesmo texto constitucional, para o exame da prisão ilegal, via habeas corpus.
5. As citadas interpretação e aplicação também acarretam inconstitucionalidade dos referidos dispositivos, salvo sempre o devido respeito, porque seria equivalente a 'impor como único meio de impugnação' do despacho que, de forma não fundamentada, decreta a prisão preventiva, o mesmo recurso ordinário, destinado à impugnação das outras medidas de coacção que não a de prisão preventiva (termo de identidade e residência, caução, obrigação de apresentação periódica, suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos, proibição de permanência, de ausência e de contactos, bem como obrigação de permanência na habitação), procurando impor um inadequado tratamento uniforme à impugnação de medidas cautelares, que a própria Constituição da República expressamente distingue, uma vez que a prisão preventiva é tratada como medida excepcional, já que atinge direito fundamental de liberdade do cidadão.
6. Salvo uma vez mais o devido respeito, a inconstitucionalidade também se manifesta, pela desconsideração de que o dever de fundamentação das decisões dos tribunais veio significativamente reforçado na última revisão constitucional de 1997, pelo novo texto que inseriu no artigo 205º, nº. 1, da CRP, o qual representa pressuposto do próprio direito de recurso, cujo exercício de maneira imperfeita não poderia ser imposto, ainda mais quando uma decisão não fundamentada de prisão preventiva emana de processo submetido a segredo de justiça, onde está em causa o direito fundamental de liberdade.
7. Aliás e, sempre com a devida vénia, quanto à exigência Constitucional de que sejam fundamentadas todas as decisões dos tribunais, as razões constantes do douto acórdão nº. 680/98, de 02/12/98, publicado no DR de
05/03/99, p. 3315, podem perfeitamente ser aplicadas para a decisão que decreta a prisão preventiva, eis que não encerra despacho de mero expediente.
8. Assim, a decisão que decreta a prisão preventiva de forma não fundamentada, salvo o devido respeito constitui 'exemplo máximo' de abuso de poder por ilegalidade de prisão, que reclama justamente o cabimento da providência constitucional de habeas corpus, que não pode ser substituída pelo recurso ordinário, pois que este está vocacionado para as demais medidas de coacção, sob pena de esvaziarem-se, por completo, os efeitos do mais importante instituto de garantia do direito fundamental de liberdade dos cidadãos, impondo-se igual tratamento a situações que a própria CRP trata de forma diversa.
9. Sempre com respeito do disposto pelo Artigo 79º-C, da Lei nº.
28/82, de 15 de Novembro, o Recorrente manifesta seu entendimento no sentido de que as referidas interpretação e aplicação das citadas disposições, promovidas pelo douto acórdão recorrido, são também violadoras do disposto nos Artigos 17º,
18º, 20º, 27º, 28º, 32º, nº. 1, da Constituição da República Portuguesa, bem como do Artigo 5º, nº. 1, alínea 'c', nº. 4 e artigo 6º, ambos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como dos artigos 8º e 11º, nº. 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem ainda dos princípios da presunção de inocência, da prisão preventiva como ultima ratio das medidas cautelares de coacção, da indispensabilidade da fundamentação das decisões dos tribunais, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional e em tempo útil, da liberdade como direito fundamental a ser tutelado, da aplicação directa dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, do efectivo direito ao contraditório e ao devido processo legal, bem como da própria garantia de recurso das decisões que apliquem a medida de coacção extrema.
Nestes termos, devem ser julgados inconstitucionais os artigos 219,
222º e 223º, do CPP, quando interpretados e aplicados no sentido de que o despacho que decreta a prisão preventiva de forma não fundamentada, não pode ser objecto de habeas corpus, porque previsto ou interposto recurso ordinário a ser julgado no prazo de 30 dias, contados do recebimento dos autos, fazendo-se assim a sempre almejada justiça!!!'
Em contra-alegações, o Exmo Magistrado do Ministério Público concluiu nos seguintes termos:
'1º - É plenamente compatível com o disposto no artigo 31º da Constituição da República Portuguesa a norma constante do nº. 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal, na parte em que condiciona a admissibilidade da providência de 'habeas corpus' à verificação de alguma das situações aí taxativamente enumeradas, devendo a ilegalidade da prisão, invocada pelo requerente de tal providência, radicar necessariamente na incompetência da entidade que a haja determinado, na idamissibilidade legal da prisão pelo facto imputado ao arguido ou no excesso ou ultrapassagem do prazo máximo de duração da prisão.
2º - E permanecendo logicamente como meio procedimental idóneo para impugnar a decisão jurisdicional que determine a prisão preventiva do arguido, fora do circunstancialismo tipificado naquela norma, o normal recurso a interpor para o tribunal hierarquicamente competente, nos termos do artigo 219º do Código de Processo Penal.
3º - Na verdade, a providência de 'habeas corpus' não é – nem nunca foi tida – com uma normal forma de acesso ao direito e aos tribunais, situada no mesmo plano – e em termos alternativos ou cumulativos – com o vulgar 'direito ao recurso' contra decisões jurisdicionais pretensamente ilegais, mas como meio específico e excepcional de reagir contra privações de liberdade abusivas e – pelos seus motivos – particularmente gravosas para o arguido.
4º - A circunstância de a lei de processo atribuir urgência à tramitação do recurso previsto no artigo 219º do Código de Processo Penal, impondo o seu julgamento no prazo máximo de 30 dias, satisfaz plenamente a norma constante do nº. 5 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa – nada podendo legitimar a total equiparação do prazo previsto para julgamento deste recurso ao que se estabelece quanto à apreciação jurisdicional pelo Supremo da providência de 'habeas corpus'.
5º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Posteriormente, a fls. 270, foi proferido o seguinte despacho:
'De entre as soluções plausíveis do presente recurso, admite-se a de não conhecimento do seu objecto, pelas razões que a seguir se expõem:
O fundamento do pedido de 'habeas corpus', formulado pelo ora recorrente foi, exclusivamente, o de o despacho judicial que determinou a prisão preventiva carecer de fundamentação.
Numa clara intenção de enquadrar este fundamento num dos que estão previstos para o efeito no artigo 222º nº 2 do CPP e já que ele não podia integrar os estabelecidos nas alíneas a) e c), o requerente invocou o disposto na alínea b) do mesmo preceito, ou seja, o de a ilegalidade da prisão 'ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite'.
O acórdão recorrido começa por realçar a 'excepcionalidade' do
'habeas corpus', razão por que ele 'não pode, nem deve, funcionar como meio de reapreciar, questionar ou revogar decisões judiciais, devidamente proferidas, a não ser, como é óbvio, em hipóteses extremas de abuso de poder (crê-se que por lapso se escreveu 'de direito') ou de erro grosseiro na aplicação do direito'
(sublinhado nosso).
Salienta, logo depois, que 'a imprescindibilidade da verificação de tal patologia mais avulta quando o fundamento que se invoque para a providência seja, como é o caso, o da alínea b) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal, esse o da prisão 'ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite'.
E conclui este trecho nos seguintes termos:
'É manifesto que não ocorre aqui esse condicionalismo e, não ocorrendo, manifesto é, também, não se viabilizar intervenção intromissiva deste Supremo' (sublinhado nosso).
Qual, por outras palavras, a tese do acórdão recorrido ?
A de que, nos casos de prisão decretada por despacho judicial, a intervenção (ou intromissão) do STJ, através da medida do 'habeas corpus', só se justifica em caso de abuso de poder ou de erro grosseiro na aplicação do direito, impondo-se particular exigência quando o fundamento invocado é o da citada alínea b) do nº 2 do artigo 222º do CPP.
E porque no caso se não verificaria nem abuso de poder, nem erro grosseiro na aplicação do direito, não se viabilizava a intervenção do STJ.
Ora daqui há desde logo que concluir que, na razão de decidir o indeferimento da providência, se não integra qualquer pronúncia no sentido de a interposição de recurso (ou a mera possibilidade dessa interposição) da decisão que decrete a prisão preventiva precludir a faculdade de requerer a providência ou inviabilizar a sua concessão.
Na verdade, sem embargo de se considerar o recurso para a instância superior como meio normal de atacar as decisões judiciais que determinam a privação da liberdade, e na linha do Acórdão do STJ de 15/4/93 – que o aresto impugnado tem como paradigmático – não obsta à providência do 'habeas corpus' a recorribilidade ou a efectiva interposição de recurso daquela decisão, desde que se verifique abuso de poder ou erro grosseiro na aplicação do direito.
É certo que, mais adiante, o aresto recorrido faz afirmações que, desligadas do seu contexto, poderiam levar a concluir que a recorribilidade da decisão judicial obsta ao decretamento da providência.
Mas elas não traduzem – como se disse – a razão de decidir o pedido formulado pelo recorrente, devendo antes ser compreendidas na decorrência do entendimento de que a medida do 'habeas corpus' é 'excepcional' e o recurso meio normal de fazer cessar prisões ilegais ordenadas por despachos judiciais e, ainda, do facto de o recorrente ter duplicado os meios processuais de ataque à prisão, usando com os mesmos fundamentos o recurso e o pedido de 'habeas corpus'; por outro lado, visam, também, acentuar a coerência do sistema que não consentiria decisões contraditórias.
Em suma, pois, a interpretação das normas reguladoras do 'habeas corpus' que se faz no acórdão recorrido e que sustenta o indeferimento do pedido
é – repete-se - a de que a providência só pode ser decretada em casos de abuso de poder e de erro grosseiro da aplicação do direito, situação que no caso se não verificava.
Ora, a interpretação normativa que o recorrente põe em causa no confronto com a Constituição e que conduziria à inconstitucionalidade material das referidas normas é a de que, admitindo recurso a decisão judicial que decreta a prisão ou interposto esse recurso não pode ser deferido o pedido de
'habeas corpus'; teria sido a aplicação das mesmas normas com essa interpretação que fundamentara o indeferimento do seu pedido.
Falecerá, assim, um dos pressupostos do recurso interposto – a efectiva aplicação das normas questionadas (na interpretação que o recorrente atribui ao acórdão impugnado) como fundamento da decisão – o que determina o não conhecimento do objecto do recurso.
Notifique-se o recorrente, para se pronunciar, querendo, sobre esta questão (artigo 3º nº 3 do CPC).'
Na sua resposta, o recorrente sustentou que:
· não se verifica a diversidade interpretativa apontada no despacho supra transcrito, tratando-se apenas de uma diferente formulação da mesma tese mediante uma proposição afirmativa (a do despacho) e uma proposição negativa (a dele, recorrente);
· afirmar que 'a providência só pode ser decretada em casos de abuso de poder e de erro de aplicação do direito que não abrangem a falta de fundamentação do despacho' é exactamente o mesmo que afirmar que 'o despacho que decreta a prisão preventiva, de forma não fundamentada, não pode ser objecto de habeas corpus porque previsto ou interposto recurso da decisão, a ser julgado no prazo de 30 dias, contados do recebimento dos autos';
· a tese do acórdão recorrido não poderia ser exposta pela afirmativa, com a simples menção de que 'o habeas corpus só se justifica em casos de abuso de poder ou de erro grosseiro' sem que se diga que um ou outro não abrange a falta de fundamentação, pois dizer que é cabível apenas por 'abuso de poder ou erro grosseiro' é o mesmo que nada dizer, quando não se estabelece o alcance jurídico de tais expressões;
· como o acórdão recorrido não definiu, na sua interpretação, o que deveria ser entendido como abuso de poder ou erro grosseiro limitando-se a afirmar que tais conceitos não abrangem a falta de fundamentação, concluiu que a recorribilidade ou a efectiva interposição de recurso obsta à providência do
'habeas corpus', quando se trata da alegada falta de fundamentação, que deve ser controlada pela via do recurso ordinário.
Cumpre decidir, começando por conhecer da questão suscitada no despacho transcrito.
2 - Resulta dos autos a seguinte factualidade:
Em 20/9/99, por ordem do Ministério Público, o recorrente foi detido, por haver fortes indícios de ter cometido vários crimes de falsificação e burla p. e p. nos artigos 256º, 217º e 218º do Código Penal.
No mesmo dia, o recorrente foi presente ao juiz de instrução criminal para interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção.
Neste interrogatório, o recorrente negou a prática dos crimes por que vinha indiciado.
Promovida pelo Ministério Público a prisão preventiva do arguido, foi proferido o seguinte despacho judicial:
'A detenção do arguido foi legal porque efectuada na sequência de mandado legal .
Indicia-se a prática pelo arguido dos crimes referidos na douta promoção.
Os indícios são suficientemente fortes mas exigem melhor investigação que permita a final ajuizar de todos os crimes já cometidos.
O perigo de fuga é grande e o da continuação criminosa também, ambos a exigir a prisão preventiva do arguido.
Pelo exposto determino a prisão preventiva do arguido.
Passe mandados de condução à cadeia.
...........................................................................................................'
Deste despacho o arguido interpôs recurso para a Relação de Lisboa.
Requereu ainda o mesmo arguido, ora recorrente, ao STJ a providência do 'habeas corpus', fundado na ilegalidade do despacho que ordenou a prisão preventiva, por falta de fundamentação, pois deveria ele conter – e não conteria
– 'a necessária descrição factual, ainda que sucinta, de todos os factos e circunstâncias que permitem a aplicação duma medida que é a ultima et extrema ratio da panóplia das medidas de coacção a alguém que, por imperativo constitucional, se presume inocente'.
No mesmo requerimento, o peticionante suscitou desde logo a questão da admissibilidade da providência sendo – como era – recorrível a decisão judicial que determinara a prisão preventiva que, de resto, como se disse, foi impugnada para a Relação de Lisboa.
Sustentou, então, o recorrente que 'qualquer interpretação dos artigos 219º, 222º, 223º e 224º do CPP no sentido de que, por ser admissível recurso do despacho ilegal que decretou a prisão preventiva já o 'habeas corpus'
(...) não poderá ser usado porque incompatível (...) estará necessariamente ferida de inconstitucionalidade (...)'.
O acórdão ora recorrido indeferiu o providência com o fundamento já referido no despacho de fls. 270.
3 – Como se deixou relatado, o ataque que o recorrente move contra o despacho de fls. 270 e segs. assenta, essencialmente, na sustentação de que a interpretação normativa impugnada é exactamente a mesma que naquele despacho se diz ser a do acórdão recorrido; a diferença residiria apenas na formulação dessa tese que, no mesmo despacho, se faz através de uma proposição afirmativa enquanto o recorrente optaria por uma proposição negativa.
Não é, porém, assim.
Na verdade, conforme se interpretou o requerimento de interposição de recurso – e não há razões para contrariar essa interpretação – o recorrente atribui ao acórdão recorrido o entendimento de que a previsão ou efectiva interposição de recurso ordinário do despacho que decreta a prisão preventiva obsta ao pedido de
'habeas corpus'; por outras palavras, o habeas corpus só teria lugar quando não estivesse previsto ou efectivamente interposto recurso daquele despacho.
Ora, isto não é um modo diferente de formular a interpretação normativa que no despacho de fls. 270 se atribuiu ao acórdão recorrido – a de que o 'habeas corpus' é uma providência que só se justifica em caso de abuso de poder ou de erro grosseiro de aplicação do direito.
Com efeito, esta interpretação – claramente menos limitativa do habeas corpus do que a interpretação imputada pelo recorrente ao acórdão recorrido – permite o
'habeas corpus' mesmo nos casos em que esteja previsto ou efectivamente interposto recurso do despacho judicial que decretou a prisão preventiva.
Vem a propósito corrigir o que no despacho de fls. 270 se disse (ou fez relevar) sobre a 'citação' do acórdão do STJ de 15/4/93 – Pº. nº. 8/93 no aresto impugnado.
A verdade é que tal 'citação' se não verifica, sendo certo que ela relevaria nos termos referidos no despacho de fls. 270, ou seja como reforço da razão que conduziu à interpretação do acórdão recorrido no sentido apontado.
Esse reforço é, no entanto, dispensável pois afigura-se claro que o acórdão recorrido expressa como fundamento do indeferimento do 'habeas corpus' – desligando-se, então, da recorribilidade do despacho judicial que decretara a prisão preventiva e da efectiva interposição, pelo arguido, de recurso ordinário do mesmo despacho – o de não ocorrer, no caso, abuso de poder ou erro grosseiro na aplicação do direito.
A verdadeira citação que é feita no acórdão recorrido reporta-se ao Acórdão do STJ de 12/2/92 in BMJ nº. 414, p. 379 que, afinal, se integra na corrente jurisprudencial mais limitativa da providência do 'habeas corpus', criticada, entre outros, por Rodrigues Maximiano e Germano Marques da Silva (in
'Direito e Justiça', 1997, vol. XI, tomo 1, pp. 187 e segs. e 'Curso de Processo Penal', vol. II, p. 264, respectivamente) e que se traduz no entendimento de que a recorribilidade do despacho judicial que decrete a prisão preventiva obsta à providência extraordinária do 'habeas corpus'.
Pode, aliás, revelar-se aqui, e mais desenvolvidamente em trecho subsequente do acórdão em causa, um fundamento concorrente do indeferimento da providência – e não apenas afirmações que devam ser compreendidas na sequência do entendimento de que a medida do 'habeas corpus' é excepcional e o recurso meio normal de fazer cessar prisões ilegais ordenadas por despachos judiciais, como se diz no despacho de fls. 270 – ou seja, o de que também a recorribilidade do despacho que determina a prisão do arguido impedia o requerido 'habeas corpus'.
Nesta medida, a interpretação normativa imputada pelo recorrente ao acórdão recorrido ajustar-se-à à que resulta desse outro fundamento.
Simplesmente, um eventual juízo de inconstitucionalidade das normas do CPP indicadas pelo recorrente com tal interpretação sempre deixaria incólume aquele primeiro fundamento, não tendo, pois, qualquer incidência no julgado – a sua reforma em cumprimento do referido juízo nunca abrangeria a interpretação normativa no sentido do deferimento do pedido de habeas corpus exigir a verificação de abuso de poder ou erro grosseiro na aplicação do direito.
Por outras palavras, o recurso de constitucionalidade que, em termos de fiscalização concreta, se justifica por incidir sobre normas (ou uma sua interpretação) cuja aplicação (ou recusa de aplicação) constitui a razão de decidir do julgado recorrido, resultaria inútil.
Em suma, pois, porque a aplicação das normas em causa, com a interpretação questionada pelo recorrente em termos de constitucionalidade constitui apenas uma razão concorrente de decidir, ao lado de outra, não impugnada, que, só por si impunha o julgado, não pode conhecer-se do recurso por inutilidade.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.
Lisboa, 5 de Janeiro de 2000 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa