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Proc. nº 37/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A Associação A... instaurou no Tribunal da Póvoa do Lanhoso, procedimento cautelar contra 'B..., SA', requerendo que se decidisse ser inidóneo o local escolhido para a eliminação dos resíduos sólidos urbanos e instalação de um aterro sanitário e que a requerida se abstivesse de proceder, na área das freguesias de Lanhoso e Pedralva, à execução de actividades ou obras que integram o objecto do contrato de concessão outorgado entre esta e o Estado português e que se tornem necessárias para o processamento, depósito ou eliminação de resíduos sólidos urbanos ou a tal equiparados nos termos da lei, designadamente, abate de árvores, execução ou construção de infra-estruturas de estações de transferência, aterro sanitário, unidades de tratamento e bem assim de quaisquer infra-estruturas associadas, tais como as que têm por objecto a depuração ou eliminação daqueles resíduos ou outras.
A providência foi indeferida e da respectiva decisão recorreu a requerente para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, pelo seu acórdão de
23/10/77, negou provimento ao agravo.
De novo inconformada, a requerente interpôs recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas suas alegações, a agravante formulou, na parte que interessa à decisão da presente reclamação, as seguintes conclusões:
'1. Os direitos ao ambiente e à qualidade de vida constituem no ordenamento jurídico-constitucional português direitos constitucionais fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias consagrados no nosso diploma fundamental, pelo que lhes é aplicável o regime constitucional específico destes.
2. Tais direitos gozam de aplicabilidade directa independentemente da eventual intervenção do legislador e vinculam imediatamente os poderes públicos e as entidades privadas.
3. A compreensão do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais ao Ambiente e à qualidade de vida e sua aplicação e consideração nos actos de administração da Justiça não podem ser suprimidos ou restringidos a este Venerando Supremo Tribunal por lei ordinária.
4. O disposto na alínea b) do nº. 1 do artigo 755º do C.P.C. encontra-se ferido de inconstitucionalidade material na medida em que apenas prevê para fundamento do presente agravo a violação ou errada aplicação da lei do processo e não já a violação ou errada aplicação da lei substantiva.
5. Tal norma viola o disposto dos artigos 17º, 18º, 66º, 205º, nº. 2, da C.R.P.
6. Uma vez que a decisão impugnada pôs termo ao processo, devem ser, em consequência daquela inconstitucionalidade material, apreciados os fundamentos do presente recurso na parte em que se alega e ocorre violação e errada interpretação da lei substantiva.'
Nas restantes conclusões, a recorrente sintetizou a sua impugnação, no sentido de (a) a escolha do local para o aterro sanitário ter obedecido a razões de puro interesse e racionalidade económica , sem estudos ou prévia indagação de outros locais que se pudessem revelar ou oferecer condições adequadas e seguras à prevenção de previsíveis riscos de sérios danos ao ambiente (b) o local escolhido, pela sua localização e morfologia, pelas suas características geológicas, hidrológicas, de ar e paisagem ser inadequado e inidóneo para nele se construir o aterro sanitário e aí se proceder à deposição de resíduos – o local situar-se-ia sobre uma ribeira e pelo menos onze nascentes, próximo de vários depósitos públicos que captam a água que se integra na rede de abastecimento público do concelho de Póvoa do Lanhoso (c) haver fundado receio de que a construção do aterro cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito do Ambiente e do direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado.
Indicou como violados, para além dos preceitos constitucionais e legais já citados, os artigos 381º do CPC, 70º e 349º do Código Civil e muitos outros, cuja discriminação para o caso não interessa, das Leis nºs. 83/95, de 31 de Agosto e 11/87, de 7 de Abril, do DL nº. 310/95, de 20 de Novembro e diversas directivas do Conselho da CEE.
O acórdão recorrido, de cujo não recebimento emerge a presente reclamação, concedeu provimento ao recurso.
Em 3.2 e 3.3 do mesmo acórdão tecem-se algumas considerações sobre os requisitos legais de que depende a concessão da providência, o fumus boni juris, decorrente de uma summario cognitio, ou o chamado juízo de probabilidade ou verosimilhança, e o receio fundado de lesão – concluindo nos seguintes termos:
'Rematando este excurso, podemos dizer, acompanhando o acórdão deste STJ, de 2 de Julho de 1996, já citado, que embora a factualidade, num processo cautelar, possa ser objecto de uma 'summario cognitio', no que concerne ao Direito, tem de decidir-se conforme os comandos legais efectivamente assumidos – o que não retira à decisão cautelar o significado jurídico de provisória.'
Mais adiante e depois de definir a questão fundamental a decidir –
'saber se a construção do aterro sanitário por parte da recorrida é susceptível de causar lesão no ambiente, ou mais concretamente, se pode fundadamente recear-se que da instalação daquele equipamento poderá resultar aquela lesão' – e de se justificar que não compete ao STJ sindicar a 'escolha unilateral' do local pela Câmara Municipal de Braga, escreveu-se no mesmo acórdão:
'Nem se diga que, assim se procedendo, se estaria a violar o regime impeditivo constante dos artigos 17º e 18º da CRP, com o argumento de se tratar de temática inserida em sede de direitos, liberdades e garantias ou de direitos fundamentais de natureza análoga.
É que, não só o sindicar contencioso da 'escolha unilateral da C. M. de Braga' extravasa de tal temática, situando-se, porventura, em sede de controlo de legalidade do acto administrativo, como também, por outro lado, não deixaremos de cuidar da conformidade constitucional do procedimento a propósito da análise do requisito relativo ao 'fundado receio de lesão' do direito que se pretende acautelar quanto ao local escolhido para a construção do aterro.
Dizendo-se isto, importa reconhecer que as conclusões 4ª a 6ª não colocam a questão em termos tecnicamente adequados.
Vai-se curar da análise da referida conformidade constitucional porque isso decorre como consequência inevitável do regime constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias, principalmente da sua eficácia directa, resultante do princípio constante do nº. 1 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa; não porque a norma da alínea b) do nº. 1 do artigo 755º esteja ferida de inconstitucionalidade material – cfr. conclusão
4ª.
É evidentemente legítimo à lei de processo fixar os fundamentos das diferentes espécies de recursos que prevê. Só que tais normas não colidem – antes se harmonizam e conformam – com o respeito pelos princípios constitucionalmente tutelados.
Nada a opor, pois, às conclusões 1ª a 3ª e 7ª.'
Depois de se proceder 'a um outro excurso, em redor dos princípios estruturantes do Direito do Ambiente', constantes da CRP e da Lei de Bases do Ambiente e de, novamente, se salientar a questão a decidir ('o objectivo consiste em apurar se, in casu, e perante a matéria de facto dada como provada, se configura, ou não, a existência do requisito relativo ao 'fundado receio de lesão'), o acórdão em causa censura as decisões das instâncias, fundamentalmente, no ponto em que não concluíram pela verificação daquele
'fundado receio de lesão'.
Isto porque:
· 'a apreciação dos parâmetros relativos ao local seleccionado permite concluir que se trata de uma escolha que, no mínimo, deixa interrogações e perplexidades quanto à sua adequação em sede de meio ambiente e de prevenção de danos futuros nessa área';
· 'a simples leitura dos segmentos agora sublinhados (matéria de facto dada como provada) evidencia a riqueza do local escolhido para a construção do aterro sanitário em águas de superfície ou subterrâneas. A quantidade de nascentes existentes nas adjacências do local, a par dos cursos de água onde vão desaguar não pode deixar de gerar muitas dúvidas a respeito das consequências que poderão advir de um qualquer acidente (incidente) gerador de contaminação por efluentes';
· 'Para além de a afirmação de que a área de implantação dos alvéolos é uma zona de aquíferos suspensos, observa-se uma 'décalage' entre o prazo previsto para o funcionamento do aterro projectado – 12 anos – e o prazo de garantia comercial das telas que vão ser utilizadas na impermeabilização do aterro dada pelo fabricante – apenas 10 anos. Facto que não pode deixar de ser preocupante, assim agravando a probabilidade das consequências nefastas resultantes de qualquer acidente ou imprevisto'; E conclui:
'Em suma: da conjugação de todos os elementos, resulta, salvo o devido respeito, como muito razoável o fundado receio de lesão, invocado pela recorrente. O que, conjugado com a verificação, in casu, como já se disse da probabilidade da existência do direito, conduz à conclusão de que a providência cautelar requerida merece provimento. Acompanha-se, pois, o essencial da conclusão 20ª da recorrente, do seguinte teor:
'À luz dos factos apurados e das regras da experiência comum existe fundado receio de que a recorrida, através da execução das obras referidas nos autos e da deposição dos resíduos no referido local conhecido por 'Vale do Chão' ou
'Cobertos', da freguesia de Lanhoso, do concelho da Póvoa do Lanhoso, cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito do Ambiente objecto da defesa e actividade da recorrente, e do direito a um ambiente de vida humano, sádio e ecologicamente equilibrado de que as representadas pela ora recorrente são legítimas titulares.' Por último, reportado às normas ditas violadas pela recorrente, diz-se no acórdão do STJ:
'Algumas disposições, de entre as citadas pela recorrente, nas suas conclusões, carecem de justificação. É, por exemplo, o caso dos artigos 70º e 349º do Código Civil ou do artigo 130º-S do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia. Faz, no entanto, sentido e tem, por isso, justificação fazer apelo à disciplina estabelecida – entre outros normativos aplicáveis em sede de Direito do Ambiente, oportunamente analisados – pelos artigos 66º nºs. 1 e 2, alíneas a) e b), 17º, 18º e 52º nº. 3 da CRP, 2º, 3º, alínea a), 5º, 6º, 10º, 11º, 21º, 24º,
26º e 40º da Lei nº. 11/87, de 7 de Abril, 1º, 2º e 12º, nº. 2, da Lei nº.
83/95, de 31 de Agosto e tendo ainda presente o disposto nos artigos 381º nº. 1 e 387º nº. 1 do CPC (correspondentes, respectivamente, aos artigos 399º nº. 1 e
400º nº. 1, do mesmo diploma, na redacção anterior à reforma de 1995/96).' Deste despacho interpôs a ora reclamante recurso para o Tribunal Constitucional. Fê-lo 'ao abrigo das alíneas a), b) e f) do artigo 70º da Lei nº. 28/82 em virtude de se considerarem violados os princípios constitucionais ínsitos nos artigos 18º, 66º, 111º e 199º da Constituição da República Portuguesa.' Segundo ela o acórdão recorrido desaplicou a norma da alínea b) do nº. 1 do artigo 755º do Código de Processo Civil que só admite o agravo em segunda instância com fundamento na 'violação ou a errada aplicação da lei de processo'; e isto porque o mesmo acórdão, depois de expressamente ter julgado improcedente a arguição de inconstitucionalidade material daquela norma, 'operou' – diz ainda a reclamante – 'uma interpretação adequada ou conforme à Constituição, ao afirmar que tais normas 'não colidem - antes se harmonizam e conformam – com o respeito pelos princípios constitucionalmente tutelados', sendo que a 'única interpretação possível deste passo é a de que, quando estejam em causa, direitos, liberdades e garantias, a sua eficácia directa garantida pelo nº. 1 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa impõe que haja recurso sem restrição de fundamentos para o Supremo Tribunal de Justiça, incluindo assim a violação de lei substantiva'.
O recurso não foi admitido pelo despacho ora reclamado nos termos que aqui parcialmente se transcrevem:
'O recurso de constitucionalidade não tem por objecto a decisão judicial em si mesma, mas apenas na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional.
Não ocorreu, no caso vertente, a recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade – alínea a) do artigo 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Questão distinta – que a requerente parece não querer compreender – é a que se prende com a concretização do princípio segundo o qual a função jurisdicional integra também a fiscalização da constitucionalidade, pelo que os tribunais – todos os tribunais, logo, também o Supremo Tribunal de Justiça – têm o poder e o dever de confrontar com a lei fundamental as normas infraconstitucionais que sejam chamados a aplicar.
Do que decorre o apelo feito ao regime constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias – aplicável aos direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17º da CRP) – cuja primeira característica consiste em que os respectivos preceitos são normas de eficácia imediata, 'sendo directamente aplicáveis' – artigo 18º, nº. 1 da CRP.
Em face do exposto, inexiste o fundamento da alínea a) do artigo 70º.
Acresce que os recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº. 1 do artigo 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer – cfr. o nº. 2 do artigo 72º da Lei do TC, na sequência do disposto pelo nº. 4 do artigo 280º da Constituição da República. Ora, já se viu que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada pela ora requerente, mas sim pela então agravante.
Assim sendo, não pode a requerente fundar a interposição do seu recurso nas alíneas b) e f) do artigo 70º.
Falta referir o fundamento relativo à alegada violação dos artigos
66º, 111º e 199º da Constituição da República, a que se alude na alínea d) do ponto 5 do requerimento em análise.
Tratando-se de matéria que repete a que foi objecto do requerimento de fls. 1461, já apreciado no despacho de 4 do corrente mês de Dezembro, remete-se para o que se escreveu no ponto 2 C) do mesmo, a fls. 1481 e 1482, que aqui se dá como reproduzido.'
A recorrente apresentou reclamação deste despacho.
Nela, a reclamante expressamente limita o recurso de constitucionalidade ao fundamento constante da alínea a) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82 e mantém o que dissera já no seu requerimento de interposição do recurso, ou seja, que
· 'confrontado com a tese da inconstitucionalidade da norma da alínea b) do nº. 1 do artigo 755º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou que a norma em causa estivesse afectada de inconstitucionalidade, mas acabou por conhecer dos fundamentos do recurso em toda a sua extensão, nomeadamente na parte em que se alegava a ocorrência de violação e errada interpretação da lei substantiva.'
· considerando o Supremo Tribunal de Justiça 'que doravante 'uma consequência inevitável do regime constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias, principalmente da sua eficácia directa, resultante do princípio constante do nº. 1 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa' a possibilidade de apreciar todos os fundamentos de um recurso jurisdicional', 'afastou ou desaplicou implicitamente o artigo 755º nº. 1 al. b) do Código de Processo Civil, aplicando directamente normas constitucionais (o artigo 18º nº. 1 da Lei Fundamental) tidos por incompatíveis (...)'
· não pode ver-se na 'harmonização ou conformação de normas de diferente previsão e de grau diverso (as normas processuais que fixam os fundamentos das diversas espécies de recursos e os princípios constitucionalmente tutelados) outra coisa senão um afastamento de norma de grau inferior com fundamento na sua contrariedade face à Constituição.
· despacho reclamado 'confirma cabalmente este entendimento quando faz apelo à 'concretização do princípio segundo o qual a função jurisdicional integra a fiscalização de constitucionalidade', daí derivando a afirmação de que
'os tribunais' - todos os tribunais, logo também o Supremo Tribunal de Justiça
- têm o poder e dever de confrontar com a lei fundamental as normas infraconstitucionais que sejam chamadas a aplicar.'
· 'não pode falar-se em interpretação conforme à Constituição da alínea b) do nº. 1 do artigo 755º do Código de Processo Civil, porque tal interpretação do Supremo não tem qualquer correspondência na letra da lei, sendo abrogante
(...) Termina sustentando que não obsta ao recurso de constitucionalidade o facto de a decisão recorrida ter sido proferida num processo de natureza cautelar, visto aquele respeitar ao âmbito de um recurso jurisdicional interposto nesse processo e não com a 'própria decisão provisória', na sua materialidade. Responderam a recorrida e o Ministério Público defendendo, com diferentes fundamentos, que se dão aqui por reproduzidos, o indeferimento da reclamação; Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - O extenso relato que se acabou de fazer deixa a claro a questão fundamental a decidir na presente reclamação: a de saber se o acórdão recorrido recusou, implicitamente, a aplicação do artigo 755º, nº. 1, alínea b) do CPC que limita os fundamentos do agravo em 2ª instância, para além da nulidade dos artigos 668º e 716º, à 'violação ou a errada aplicação da lei de processo', quando faz apelo a princípios e direitos constitucionalmente tutelados relativos ao Direito do Ambiente na decisão do recurso. E importa, desde já, salientar que ela se decidirá sem pôr em causa a doutrina constante dos Acórdãos nºs. 226/94 e 425/89 deste Tribunal que a reclamante chama em apoio da sua tese, o primeiro no ponto em que se sustenta que a mesma
'operação de 'aplicação directa' da Constituição, enquanto expressão da salvaguarda e da prevalência dos direitos, liberdades e garantias, por via de regra, e salvos casos excepcionais destinados a preencher lacunas no ordenamento jurídico, a acção do julgador acabará, por corresponder, na sua essência a uma desaplicação (ainda que meramente implícita) de uma ou mais normas legais (com fundamento na sua inconstitucionalidade) pois que a directa invocação/aplicação da Constituição visa 'criar', a partir e no contexto da própria lei fundamental, o 'direito' aplicável ao caso num sentido que se prefigura como a mais conforme
à força vinculante dos direitos, liberdades e garantias, sentido esse que não poderia ser cabalmente alcançado mediante o mero recurso aos 'pertinentes preceitos legais' e o segundo enquanto, considerando uma possível interpretação de norma em conformidade com a Constituição, se defende que 'nesse caso, não existe recusa de aplicação da norma por inconstitucionalidade' mas 'o afastamento das interpretações que pusessem a norma em colisão com a Constituição', só assim não sendo 'se, porventura, a pretexto da interpretação conforme à Constituição, se tivesse adoptado um sentido de todo incomportável pela norma.' Ora, o que se afigura decisivo na decisão da reclamação é surpreender o verdadeiro sentido com que, no acórdão do S.T.J., em particular na sua fundamentação, são chamados princípios e direitos constitucionais, cujo regime os faz ter, por força do disposto no nº. 1 do artigo 18º da CRP, 'eficácia directa'. E, de facto, há-de reconhecer-se que, já no acórdão recorrido, mas, em especial, no despacho reclamado, as referências à aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais são de molde a suscitar alguma perplexidade, do ponto de vista que importa na presente reclamação.
É certo que não se pode deixar de conceder o devido relevo ao facto de, expressamente, se ter decidido naquele acórdão que a norma da alínea b) do nº. 1 do artigo 755º do CPC não está ferida de inconstitucionalidade material, sendo
'evidentemente legítimo à lei de processo fixar os fundamentos das diferentes espécies de recursos que prevê'. Todavia, uma tal afirmação não seria, por si, bastante para fazer soçobrar a reclamação, considerando uma visão substancial das coisas que deve imperar na interpretação das decisões a que se imputa a aplicação implícita de norma inconstitucional ou a recusa, igualmente implícita, de norma julgada conforme à Constituição; mas de estranhar seria que ao peremptório juízo de constitucionalidade que se expressa no acórdão do STJ, logo se seguisse um discurso, de algum modo contraditório, no sentido de que a norma em causa, na sua harmonização e conformação com a Constituição, não admitia, afinal, apenas o recurso de agravo com fundamento em violação ou errada aplicação de lei processual, mas também com o de violação ou errada aplicação de lei substantiva. Não é isso, porém, o que o Tribunal entende ter, no caso, ocorrido.
É que essa afirmação sobre a aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais verdadeiramente não tem a ver com a questão da admissão do recurso para o STJ mas já com a verificação dos pressupostos do decretamento da providência cautelar. De facto, tal como decorre do acórdão recorrido, a impugnação da então agravante assentava na discordância quanto ao julgamento de não verificação do requisito, constante do artigo 387º nº. 1 do CPC, para decretamento da providência cautelar requerida, relativo ao fundado receio de lesão do direito invocado, pois, no que concerne à existência do direito, o STJ aceita o julgamento das instâncias 'em termos que ora se não discutem' no sentido de que 'em face da factualidade que resultou sumariamente provada resulta a existência do direito ao ambiente que se pretende ver tutelado (...)' Nesta matéria, todo o discurso argumentativo do aresto deve ser, assim, entendido com o objectivo de dar, ou não, como verificado aquele requisito, assente na matéria de facto fixada pelas instâncias. Com tal perspectiva, a invocação e exame de normas constitucionais e infraconstitucionais relativas ao direito do Ambiente surgem, no acórdão, como
'pano de fundo' da pertinente indagação acerca da verificação do aludido requisito, justificando, de algum modo, o juízo de 'periculum in mora' que deveria ser feito sobre os factos provados e que, necessariamente, pressupunha a convocação dos valores e bens juridicamente tutelados por aquelas normas. E é neste contexto que devem ser compreendidas as referências ao direito de todos a um 'ambiente de vida humano, sádio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender' consignados no artigo 66º nº. 1 da CRP, aos princípios fundamentais de uma política de ambiente (princípios da prevenção e da cooperação retirados da conjugação do artigo 66º nº. 2 com os artigos 9º alínea e), 81º alíneas a) e n), 91º e 96º alínea d), todos da CRP (na versão anterior à revisão de 97), à garantia concedida pelo artigo 52º nº. 3 da CRP e a definição dos termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de acção para a prevenção ou a perseguição judicial das infracções ali previstas, aos princípios da prevenção e da responsabilização estabelecidos no artigo 3º alíneas a ) e h) da Lei nº. 11/87, de 2 de Abril (LBA) e ao conteúdo do dever de defesa do ambiente. Do mesmo modo se tem que aceitar, numa maior aproximação ao caso dos autos, a evocação de noções como a de 'ambiente' e a referência às componentes do
'ambiente', com especial relevo para a água, e às medidas especiais de prevenção e repressão relativas à protecção da água. E é munido com estes instrumentos que o acórdão do STJ ilumina a apreciação crítica que faz da matéria de facto provada, conferindo particular relevo ao facto de o local ser rico em águas de superfície ou subterrâneas, com inúmeras nascentes nas adjacências do mesmo local e à circunstância de o prazo de garantia de impermeabilização das telas ser desfasado, para menos, com o previsto para o aterro projectado, o que lhe permite concluir pela verificação do requisito cujo preenchimento se controvertia. Sendo certo que em parte alguma do aresto se diz que a convocação de princípios e normas constitucionais de aplicação e eficácia directas implicava que o recurso fosse admissível 'sem restrição de fundamentos', o apelo a esses princípios e normas, na economia da decisão recorrida, reveste, em suma, uma característica de manifesta instrumentalidade relativamente à 'concretização, densificação e aplicação da cláusula geral constante de lei de natureza adjectiva: o artigo 381º nº. 1 do Código de Processo Civil' – no caso reportada ao fundado receio de lesão – como bem adverte o Exmo. Magistrado do Ministério Público no seu parecer. Em tal conformidade, não pode, pois, entender-se que o acórdão recorrido tenha recusado, implicitamente, a aplicação do artigo 755º alínea b) do CPC com fundamento em inconstitucionalidade, soçobrando, assim, o pressuposto que legitima o recurso previsto no artigo 70º nº. 1 alínea a) da Lei nº. 28/82 e não merecendo, consequentemente, qualquer reparo o despacho reclamado que o não admitiu. Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 8 de Julho de 1999 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa