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Processo nº 785/95 Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1. - Um grupo de deputados à Assembleia Legislativa Regional da Madeira requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo 281º da Constituição da República (CR), a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea a) do artigo 5º do Decreto-Lei nº 338/88, de 28 de Setembro, diploma que, no desenvolvimento do regime jurídico do exercício da actividade de radiodifusão estabelecido pela Lei nº 87/88, de 30 de Julho, veio estatuir a respeito da atribuição de alvarás e licenciamento de estações emissoras de radiodifusão sonora.
Dispõe a norma em causa:
'Artigo 5º - A cobertura radiofónica será considerada de âmbito geral, regional ou local, consoante abranja, com o mesmo programa e sinal recomendado, respectivamente: a) Todo o território nacional ou, no mínimo, o território continental português; b) (...) c) (...).'
Entendem os requerentes ser inconstitucional este inciso normativo, ao permitir, ainda que para fins de cobertura radiofónica, que o conceito geográfico de território nacional sofra uma 'artificial, abusiva e ilegítima amputação, ou redução'.
É que – em seu critério – se conjugadas a definição e dimensão material, jurídica e teleológica da norma com a natureza do serviço e fins da radiodifusão sonora, contidos nos artigos 4º e 5º da citada Lei nº
87/88, verifica-se a 'redutora e absurda qualificação do território nacional ao território continental', o que significa violação de vários princípios constitucionais: o princípio da unidade do Estado, o princípio da igualdade dos cidadãos portugueses e o princípio do direito à informação, consagrados constitucionalmente nos artigos 6º, 13º e 37º, nº 1, da Lei Fundamental, respectivamente.
2. - O pedido foi admitido, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, não sem, previamente, o Presidente do Tribunal Constitucional ter registado as suas dúvidas quanto à admissibilidade do mesmo em função da legitimidade dos requerentes para esse efeito.
Na verdade, antes de ordenar a notificação do seu despacho de admissão ao Primeiro-Ministro e aos requerentes, não se absteve aquela entidade de escrever o seguinte:
'Nos termos do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, os
‘deputados às assembleias legislativas regionais’ só dispõem de legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas quando fundem o correspondente requerimento 'em violação dos direitos das regiões autónomas' (isto é, da respectiva região). Ora, pode certamente perguntar-se se, ao dispor nesses termos, o legislador constitucional não terá directa (e exclusivamente) em vista os 'direitos das regiões' consignados no Título VII da Lei Fundamental - e, em particular, no seu artigo 229º -, ou seja, aqueles 'direitos' (atribuições e competência) que justa e especificamente definem e caracterizam a 'autonomia' em causa. Assim, como não se afigura vir invocado, no caso, um 'direito' desse tipo, não será descabido pôr a questão da legitimidade dos requerentes para o presente pedido. Todavia, porque a questão será, em todo o caso, duvidosa, entendo não fazer uso da faculdade prevista no artigo 52º da Lei do Tribunal Constitucional, admitindo, por agora, o pedido e deixando para final a decisão definitiva sobre essa admissibilidade - tendo em conta o preceituado no nº 4 do artigo 51º da mesma Lei'.
Notificado, o Primeiro-Ministro veio sustentar, em síntese: a) que o pedido não deveria ser admitido uma vez que não tem por fundamento a violação de direitos regionais, tal como determina a alínea g) do nº 2 do artigo
281º da CR, sendo, assim, manifesta a falta de legitimidade dos requerentes;
b) a entender-se, porém, ser de apreciar a questão de constitucionalidade material do pedido, deverá o Tribunal Constitucional não declarar a inconstitucionalidade do preceito sindicado, já que o mesmo se mostra plenamente conforme com os artigos 6º, 13º e com o nº 1 do artigo 37º da CR.
Debatido o memorando apresentado nos termos do artigo
63º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro) e fixada a orientação do Tribunal, foram os autos atribuídos ao relator por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional de 17 de Novembro
último, nos termos da parte final do nº 2 daquele artigo.
3. - Está, assim, em causa a constitucionalidade da norma da alínea a) do artigo 5º do Decreto-Lei nº 338/88, de 28 de Setembro, ao dispor que 'a cobertura radiofónica será considerada de âmbito geral, regional ou local, consoante abranja, com o mesmo programa e sinal recomendado, respectivamente: a) todo o território nacional ou, no mínimo, o território continental português [...]', no tocante a este último segmento que prevê, no mínimo, a cobertura radiofónica limitada ao território continental português.
O pedido foi subscrito, conforme se retira da leitura do requerimento inicial, por 12 deputados à respectiva Assembleia Legislativa Regional, pelo que satisfaz a exigência de um décimo, constante da citada alínea g) do nº 1 do artigo 281º da CR, considerando que o número de deputados à Assembleia Legislativa Regional da Madeira era, então, de 57 (cfr. o mapa oficial da Comissão Nacional de Eleições, publicado no Diário da República, I Série-B, de 26 de Outubro de 1992, e o disposto nos artigos 10º da Lei nº 13/91, de 5 de Junho – Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira – e 2º do Decreto-Lei nº 318-E/76, de 30 de Abril).
Coloca-se, no entanto, e desde logo, o problema da legitimidade dos deputados em questão para requerer a pretendida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral – como no despacho liminar se deixou consignado e o Primeiro Ministro, na sua resposta, reiterou, sustentando, com base na circunstância em que assentam as dúvidas expressas no despacho, a ilegitimidade dos requerentes.
Seja como for, independentemente da abordagem da questão de legitimidade, desde já uma outra se perfila, relativa ao interesse actual do conhecimento do problema de constitucionalidade.
Sublinhe-se que em recente acórdão – nº 54/99, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Março de 1999 – lavrado em sede de fiscalização abstracta de constitucionalidade, pedida, de resto, pelos mesmos requerentes e pertinente a norma semelhante, só que relativa à actividade de televisão [a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 4º da Lei nº 58/90, de 7 de Setembro], o Tribunal Constitucional decidiu não conhecer do pedido, por inutilidade superveniente, sem prejuízo de também, então, o Presidente do Tribunal ter colocado, em termos idênticos, o problema da legitimidade dos requerentes.
Como tal, será aquela a questão a equacionar.
III
1. - A Lei nº 87/88, de 30 de Julho, veio regular o exercício da actividade da radiodifusão no território nacional (cfr. nº 1 do artigo 1º), revogando a legislação anterior sobre 'licenciamento de estações emissoras de radiodifusão' (Lei nº 8/87, de 11 de Março).
Dispunha o seu artigo 2º sobre o exercício da actividade de radiodifusão, permitida a entidades públicas, privadas ou cooperativas, de acordo com o respectivo diploma e nos termos do regime de licenciamento a definir por decreto-lei, salvaguardados os direitos já adquiridos pelos operadores devidamente autorizados (nº 1 do preceito), devendo constar desse decreto-lei 'as condições de preferência a observar no concurso público de utilização de alvarás para o exercício da actividade de radiodifusão, os motivos de rejeição das propostas e as regras de transmissão, suspensão, cancelamento e período de validade dos mesmos' (nº 4).
De acordo com o artigo 51º da citada lei, foi concedido ao Governo o prazo máximo de 60 dias para aprovar o diploma a que o nº 1 daquele artigo 2º se refere.
A iniciativa do Governo, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 87/88, e nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 201º da CR, deu lugar ao Decreto-Lei nº 338/88, onde se insere a norma em sindicância.
No entanto, e como se verá, a norma questionada acha-se neste momento revogada, havendo sido substituída por outra, de teor e alcance diferentes.
Com efeito, a Lei nº 2/97, de 18 de Janeiro, procedeu à revisão do regime do exercício da actividade de radiodifusão sonora, tal como a Lei nº 87/88 o estabelecera, e, na sua sequência, o Decreto-Lei nº 130/97, de 27 de Maio, adequando o regime do licenciamento às alterações introduzidas e à experiência acumulada no sector, aprovou uma nova disciplina nessa área e na de atribuição de alvarás.
Para o efeito, no seu artigo 40º revoga-se expressamente o Decreto-Lei nº 388/88, sendo ainda certo que nele deixou de figurar qualquer norma funcionalmente equivalente à sindicanda.
Na verdade, por aditamento levado a efeito pelo artigo
2º da Lei nº 2/97 à Lei nº 87/88, passou a constar desta um novo preceito, o artigo 2º-A, do seguinte teor, na parte que interessa:
'Artigo 2º-A
(Tipologia de rádios)
1. Quanto ao nível de cobertura, as rádios podem ser de âmbito geral, regional ou local, consoante abranja com o mesmo programa e sinal recomendado, respectivamente: a) A generalidade do território nacional; b) Um conjunto de distritos no continente ou um conjunto de ilhas nas Regiões Autónomas ou uma ilha com vários municípios; c) um município;
(...).'
Na sua literalidade, o confronto entre a norma da alínea b) do artigo 2º-A e a norma objecto do presente pedido de fiscalização abstracta de constitucionalidade não deixará dúvidas quanto à diferença entre ambas que é, também, de conteúdo normativo: a determinação do espaço de cobertura territorial radiofónica é feita – agora – em função da 'generalidade do território nacional', enquanto anteriormente essa aferição fazia-se relativamente a 'todo o território nacional, ou no mínimo, o território continental português', dando, assim, aso à suscitada questão de constitucionalidade.
2. - Constitui jurisprudência pacífica e reiterada deste Tribunal o entendimento segundo o qual o facto de uma norma ter sido revogada não implica necessariamente que se deixa de conhecer do pedido de fiscalização abstracta da sua constitucionalidade.
No entanto, como, a este propósito, se observou no acórdão nº 639/98 – publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Dezembro de 1998 – se não houver um interesse jurídico relevante na apreciação do pedido não se justifica o conhecimento da questão de constitucionalidade, o que se insere na orientação jurisprudencial preponderante que não reconhece esse interesse no conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral sempre que não se detecta qualquer alcance prático na emissão de uma tal declaração –cfr., por todos, o acórdão nº 465/91, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 20 de Abril de 1992.
Esse entendimento tem sido professado – como já se salientou no acima citado acórdão nº 54/99 – seja perante a revogação de norma aprecianda, exigindo-se - não obstante eventual produção de efeitos dessa norma
- um juízo de adequação e proporcionalidade legitimante do mecanismo de índole genérica e abstracta que é a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade (caso, v.g., do acórdão nº 238/88, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 21 de Dezembro de 1988), seja nos casos de inutilidade prática da declaração quando, se esta ocorrer, razões de segurança jurídica e de equidade imponham a limitação dos respectivos efeitos (cfr., v.g., o acórdão nº 806/93, publicado no mesmo Diário, II Série, de 29 de Janeiro de
1994).
3. - Nesse acórdão nº 54/99 ponderou-se que o conhecimento do pedido e a eventual declaração de inconstitucionalidade não comportam interesse prático actual, ou seja, não consubstanciam interesse jurídico relevante. Isto porque a alteração legislativa subsequente retirou qualquer utilidade à emissão de uma decisão de mérito sobre a constitucionalidade do segmento normativo em causa.
Entende-se ser inteiramente transponível essa conclusão para o caso presente, ao qual se ajusta perfeitamente. Verifica-se não só paralelismo entre o texto da norma então sindicada e a situação a que o mesmo respeitava e o texto agora em apreço e a respectiva situação, como existe inclusivamente identidade entre estas situações, na medida em que também aí a norma já estava revogada e substituída por outra e se fez apelo ao mesmo elemento definitório que o legislador utilizou na alínea a) do nº 1 do artigo
2º-A da Lei nº 87/88.
Acrescenta-se que o acórdão nº 54/99 não deixou de referir, também, a Lei nº 31/96, de 14 de Agosto, relativa à 'Televisão e rádio nas Regiões Autónomas' como diploma susceptível de convocar-se em ordem a eliminar 'as reservas de matriz constitucional que o texto sob sindicância proporcionaria' (cfr., nº 4 do ponto II desse aresto).
Com efeito, este diploma veio dizer, no nº 1 do seu artigo 1º, que 'o serviço público de rádio e de televisão constitucionalmente consagrado inclui o acesso das Regiões Autónomas às emissoras incumbidas de tal serviço', dispondo o artigo 2º que 'o Estado deve contribuir para criar as condições necessárias para que as Regiões Autónomas possam ter acesso às emissoras de âmbito geral de televisão e de rádio, no quadro de legislação tendente a garantir as adequadas acessibilidades' (nº 1), e que essa legislação determinará que 'as taxas de telecomunicações a aplicar às emissoras, tendo em consideração, designadamente, os meios técnicos, os investimentos e as despesas operacionais para difusão do sinal nas condições específicas das Regiões Autónomas' e as compensações a conceder à empresa de telecomunicações que suporta o serviço de difusão de sinais televisivos ou radiofónicos (nº 2).
Ora, tal como se considerou no dito acórdão (cfr. nº 5 do ponto II), também no caso presente não interessa reter a argumentação eventualmente decorrente dessa constatação, dada a alteração legislativa que o texto do diploma de 1988 sofreu por via da Lei nº 2/97.
III
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido. Lisboa, 15 de Dezembro de 1999 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa