Imprimir acórdão
Proc. nº 941/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - G..., intentou, no Tribunal Judicial da comarca da Horta, acção de despejo, com processo sumário, contra AV... e mulher, M....
Invocando a sua qualidade de proprietária de prédio urbano que identifica, alega que o deu de arrendamento ao réu marido, para habitação, em 18 de Setembro de 1969, por um período de cinco anos, renovável anualmente, necessitando agora do espaço locado.
Assim, nos termos dos artigos 69º, nº 1, alínea a), e
70º do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, pede a declaração da caducidade do contrato para o fim do prazo em curso da respectiva renovação, condenando-se os demandados a despejar o prédio, nos termos dos artigos 68º a 72º do mesmo diploma.
A acção, contestada, prosseguiu seus termos que, na 1ª instância, culminaram com a sentença de 14 de Novembro de 1997 que julgou a acção procedente e condenou os réus ao despejo, mediante o recebimento de indemnização correspondente a dois anos e meio de renda.
Do assim decidido apelaram os réus mas o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 21 de Maio de 1998, julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão recorrida.
2. - Inconformados, os demandados e apelantes recorreram para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação, ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alegando
'inconstitucionalidade material do artigo 69º, nº 1, do RAU, com a interpretação, dada no Tribunal a quo, que violou os artigos 2º e 65º, nº 1, da Constituição'.
No Tribunal Constitucional foram os recorrentes convidados, ao abrigo do nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a indicar com mais clareza a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretendem ver apreciada, o que estes fizeram expondo o entendimento que o acórdão recorrido terá interpretado e aplicado o artigo 69º, nº 1, alínea a), do RAU com desrespeito pelas normas constitucionais convocadas dos artigos 2º e 65º, nº 1, da Lei Fundamental, em termos que assim condensam, como melhor se exprimem nas conclusões das alegações oportunamente apresentadas:
'a) Na sentença da primeira instância e no acórdão da Relação de Lisboa agora em recurso a norma do artigo 69º, nº 1, alínea a), primeira parte, do RAU foi interpretada e aplicada no seu sentido meramente literal, considerando que os factos assentes preenchem o conceito de necessidade a que a mesma se reporta. b) Porém, a norma em referência não pode deixar de ser interpretada e aplicada em conformidade com o princípio do Estado de direito democrático, consignado o artigo 2º da Constituição, e com a norma do artigo 65º, nº 1, da Lei Fundamental, de que decorre, para todo o cidadão, o direito à habitação ou de segurança na habitação, que é um direito social com prevalência sobre os direitos de uso e disposição ínsitos no direito de propriedade privada, que desempenha assim uma função social. c) Por consequência, quer a sentença do Tribunal de primeira instância, quer o acórdão agora em recurso, do Tribunal da Relação de Lisboa, com a interpretação meramente literal dada ao artigo 69º, nº 1, alínea a), do RAU, fazem com que esta norma deva considerar-se viciada por inconstitucionalidade material.'
A recorrida contra-alegou, concluindo assim:
'a) é matéria assente e já indiscutível a necessidade que a A . tem da casa arrendada ao R. para sua habitação, bem como ser o rés-do-chão objectiva e legalmente inabitável para qualquer pessoa; b) a sentença recorrida interpretou correctamente a alínea a) do nº 1 do art.
69º do RAU, absolutamente em nada ofendendo o nº 1 do artigo 65º da Constituição; c) a fiscalização concreta da constitucionalidade, não de uma norma mas da interpretação que dela feita judicialmente, á algo que não cabe a este Tribunal; d) improcedem assim as conclusões do recurso ao qual por isso deve negar-se provimento; e) deve porém reconhecer-se a má fé do recorrente e condená-lo em conformidade.'
Foram os demandados ainda ouvidos sobre a alegada má fé, que têm por inexistente, defendendo o desatendimento da pretensão deduzida.
II
1. - Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 69º do RAU, na medida em que, ao dispor que o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação quando necessita do prédio para a sua habitação, se lhe dá uma interpretação que, pela sua literalidade, não se compagina com o princípio do Estado de Direito Democrático consignado no artigo 2º da Constituição da República (CR) nem com o espírito do preceituado no artigo 65º, nº 1, do mesmo texto, nos termos do qual todos têm direito à habitação.
A norma em sindicância terá sido aplicada, segundo defendem os recorrentes, com menor valia daquele enquadramento constitucional, contrariando-o, ao desfavorecer um direito social, como é o direito à habitação ou de 'segurança na habitação', que entendem prevalecer sobre os direitos de uso e disposição contidos no direito de propriedade privada.
Está, por conseguinte, questionada a conformação constitucional do regime de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, na parte em que o senhorio o pode fazer por necessitar do prédio para sua habitação.
O problema subjacente é articulado pelos recorrentes directamente com o direito à habitação, com expressão constitucional no convocado artigo 65º a respeito do qual já este Tribunal tem ponderado e decidido.
Assim, e por exemplo, escreveu-se no acórdão nº 131/92, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992:
'O «direito à habitação», ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no capítulo II «Direitos e deveres sociais» do título III «Direitos e deveres económicos, sociais e culturais» da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs. 2 e 4 do artigo 65º da Constituição (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 680-682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada «reserva do possível» (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais
[cf. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia», 1984, Coimbra, 1939, p. 26, e J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976
(reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, pp. 199 e segs. e 343 e segs.] O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 205-209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo. O direito à habitação tem, assim, o Estado – e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios – como único sujeito passivo – e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei. Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio denuncie o contrato de arrendamento quando necessitar do prédio para sua habitação.'
Neste aresto parcialmente transcrito consideraram-se suficientes as considerações reproduzidas para demonstrar que a norma da primeira parte da alínea a) do nº 1 do artigo 1096º do Código Civil (a que corresponde hoje, no RAU, a norma impugnada), bem como as dos artigos 1097º e
1098º do mesmo diploma, nunca poderiam infringir o disposto no artigo 65º da CR.
Esta orientação, seguida ou retomada por outros acórdãos
(caso dos nºs. 151/92 e 174/92, publicados no citado Diário, II Série, de 28 de Julho e 18 de Setembro de 1992, respectivamente), tem aqui inteiro cabimento e, como tal, se acolhe.
Com efeito, no quadro da vocação perpétua da posição jurídica do arrendatário (sublinhado no acórdão nº 311/93, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1993), a tutela devida à estabilidade e à segurança da sua posição jurídica, como reflexo da vertente jurídico-constitucional do direito à habitação, com a consequente estatuição de limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento, não é excludente de um determinado espaço de liberdade de conformação do legislador ordinário (como, de resto, se frisou no acórdão, tirado em plenário, nº 55/99, publicado no jornal oficial citado, I Série-A, de
19 de Fevereiro de 1999).
Esta é uma asserção que, nomeadamente, vale para a possibilidade de denúncia do contrato pelo senhorio com fundamento na necessidade de utilizar o espaço locado para a sua própria habitação – como é o caso, assente em matéria que escapa, naturalmente, aos poderes cognitivos deste Tribunal -, assim resolvendo o legislador ordinário em determinado sentido o conflito gerado entre o direito à habitação do senhorio e o direito à habitação do inquilino.
Deste modo, independentemente de o artigo 65º da CR implicar para o Estado uma obrigação positiva de criação de um regime jurídico do arrendamento para habitação que (segue-se de perto o citado acórdão nº
131/92) discipline o acesso dos cidadãos a uma habitação, pela via do arrendamento – um dos instrumentos de satisfação ou de concretização do direito fundamental à habitação – e sem cuidar de saber o grau de liberdade do legislador na definição do respectivo regime jurídico do arrendamento urbano, o certo é que a atribuição de preferência ao direito à habitação do senhorio sobre o direito à habitação do inquilino, dando, por conseguinte, primazia ao direito fundamental de propriedade privada, constitucionalmente consagrado (artigo 62º, nº 1, da CR), sobre o do arrendatário, baseado no contrato de arrendamento, não se configura como inconstitucional na sua dimensão normativa.
2. - Considera a recorrida que a conduta processual dos ora recorrentes ter demonstrado 'pertinaz e reiterada obstrução à justiça', revelando continuada má fé, a configurar abuso de direito. A essa luz, o recurso de inconstitucionalidade assumir-se-ia como um expediente destinado a diferir no tempo a efectivação do despejo.
Ouvidos a este respeito, rejeitam os recorrentes que a sua atitude processual possa ser como tal qualificada, quando está em causa uma questão de interpretação e aplicação da lei e não uma abusiva utilização dos meios processuais convocáveis.
Tendo presente o conceito de má fé plasmado no artigo
456º, nº 2, do Código de Processo Civil e a 'utilização maliciosa e abusiva' do processo que o mesmo pressupõe – e tal acontece quando se recorre a juízo em casos que se sabe não assistir o direito que se invoca, quando se usam os meios processuais para fim diverso daquele para que a lei os prevê e, de um modo geral, quando se atenta conscientemente contra a verdade por acção ou omissão
(cfr. acórdão nº 103/95, inter alia, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Junho de 1995) – não consubstanciam os autos, neste momento, suficiente indiciação de um comportamento processual dos recorrentes susceptível de integrar essa conceituação. Dir-se-á que sendo inquestionável a conflitualidade de direitos e interesses existente, os recorrentes utilizaram, até à data, um comportamento processual que não preenche aquele comportamento malicioso e abusivo de que nos fala Manuel de Andrade (cfr. Noções Fundamentais de Processo Civil, Coimbra, 1976, pág. 355).
III
Em face do exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na dimensão impugnada pelos recorrentes;
b) não os condenar como litigantes de má fé;
c) negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes com taxa de justiça que se fixa em __15_ unidades de conta. Lisboa, 21 de Dezembro de 1999- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Luís Nunes de Almeida