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Proc. nº 798/99 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I O pedido e os seus fundamentos
1. O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores requereu, nos termos dos artigos 278º, nº 2, da Constituição e 57º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional, a fiscalização preventiva da constitucionalidade de todas as normas do decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 34/99 sobre
'Apoio Financeiro para o Reforço da Capacidade de Investimento das Autarquias Locais da Região'. Este diploma, aprovado em 25 de Novembro de 1999, deu entrada no Gabinete do Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores em 10 de Dezembro de 1999 e o requerimento com o pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade foi recebido pelo Tribunal Constitucional em 20 de Dezembro de 1999.
Fundamentou o seu pedido na violação por tal decreto dos artigos
112º, nº 4, e 227º, nº 1, alínea a), conjugados com o artigo 165º, nº 1, alínea q), todos da Constituição.
2. As normas que constam do decreto nº 34/99 têm o seguinte teor: Artigo 1º Objecto
1. O presente diploma cria o apoio financeiro regional excepcional às autarquias locais da Região Autónoma dos Açores, nos termos previstos no artigo 44º da Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro.
2. O apoio financeiro traduz-se na assunção pelo Governo Regional de 75% das dívidas de cada câmara municipal da Região Autónoma dos Açores.
3. O apoio financeiro previsto no número anterior é, obrigatoriamente, afecto ao investimento da câmara municipal, que deve constar do plano no protocolo previsto no artigo 3º.
Artigo 2º Dívidas Consideram-se dívidas das câmaras municipais as referentes a empréstimos contraídos, até 31 de Dezembro de 1997, para financiar investimentos.
Artigo 3º Protocolos
1. O apoio financeiro, previsto no artigo 1º, formaliza-se mediante protocolo a celebrar entre a câmara municipal interessada e o Governo Regional, representado pelos Secretários Regionais Adjunto da Presidência e da Presidência para as Finanças e Planeamento, no prazo máximo de 90 dias, contados a partir da entrada em vigor do presente diploma.
2. No protocolo deve constar um plano de investimento proposto pela câmara municipal que corresponda, no mínimo, ao valor da dívida assumida pelo Governo Regional.
3. No plano de investimentos, referido no número anterior, deve constar, de forma discriminada, as acções que justificam o apoio financeiro, que reforça a capacidade de investimento da câmara municipal.
Artigo 4º Prazo de apresentação das propostas As câmaras municipais devem apresentar as suas propostas para a assunção de dívidas pelo Governo Regional, no prazo de 30 dias, contados a partir da entrada em vigor do presente diploma.
Artigo 5º Assunção da dívida A assunção da dívida pelo Governo Regional efectiva-se no momento da assinatura do protocolo.
3. A argumentação que sustentou o pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade considerou que o decreto emitido pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores teria regulado matéria referente ao 'regime das finanças locais', matéria da reserva relativa da Assembleia da República. O âmbito de tal reserva seria definido pela conjugação do artigo 165º, nº 1, alínea q), com o artigo 227º, nº 1, alínea a), da Constituição. Na medida em que deste último preceito resultaria, inequivocamente, como limite negativo dos poderes legislativos das Regiões Autónomas a matéria reservada à competência própria de um órgão de soberania, teria sido violada essa norma constitucional e, simultaneamente, teria sido invadido o âmbito da reserva relativa de lei.
Tal invasão da reserva relativa de lei quanto ao regime das finanças locais derivaria de as normas cuja fiscalização preventiva é pedida não terem, desde logo, fundamentação nos preceitos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas nem no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, não consistindo, segundo o Ministro da República, contrariamente ao que é pretendido pela exposição de motivos do decreto regional, num mero desenvolvimento e concretização do artigo 44º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas (na medida em que esta prevê a possibilidade de apoio financeiro às autarquias locais 'para além do previsto na lei', na condição de tal apoio Ter por objectivo o reforço da capacidade de investimento das autarquias apoiadas).
As normas do decreto nº 34/99, pelo contrário, desrespeitariam tanto o artigo 43º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas como o artigo 104º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que salvaguardam
'o regime financeiro das autarquias locais'. E contradiriam a reserva estabelecida em tais preceitos, desde logo, porque não encontrariam qualquer habilitação, dada a sua natureza não meramente regulamentar, na própria Lei das Finanças Locais. Esta, apesar de prever possibilidades de alargamento da cooperação financeira regional com as autarquias insulares (artigo 7º da Lei das Finanças Locais), não habilitaria as Assembleias Legislativas Regionais a exercerem poderes de natureza legislativa em matéria de finanças das autarquias locais, pois não poderia, enquanto lei ordinária, atribuir, restringir ou alargar uma competência que apenas pode derivar da própria Constituição.
Assim, o artigo 7º da Lei das Finanças Locais não preveria o exercício de faculdades legislativas pelas Assembleias Legislativas Regionais, porque desse modo seria inconstitucional, ultrapassando os casos em que a própria Constituição admite delegação de faculdades legislativas, e apenas possibilitaria o exercício de poderes regulamentares, nos termos dos artigos
227º, nº 1, alínea a), e 232º, nº 1, da Constituição.
4. Por outro lado, as normas em análise não poderiam ser fundamentadas no artigo
44º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas e no artigo 108º do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, se do seu conteúdo se inferisse contradição com princípios das leis gerais da República – neste caso a Lei das Finanças Locais. Aliás, desrespeitariam, se fosse esse o caso, a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, proferida pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 631/99.
Segundo o Ministro da República, as normas do presente decreto regional reproduziriam o essencial das normas do decreto regional já declaradas ilegais pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 631/99 (D.R., I Série-A, de
28 de Dezembro de 1999) e contrariariam, igualmente, o princípio contido no nº 1 do artigo 7º da Lei das Finanças Locais, segundo o qual 'não são permitidas quaisquer formas de subsídios de comparticipações financeiras aos municípios e freguesias por parte do Estado, das Regiões Autónomas , dos institutos públicos ou dos fundos autónomos'.
5. Finalmente, segundo o Ministro da República, a matéria que constitui objecto das normas em apreciação não revelaria, igualmente, interesse específico, não satisfazendo o parâmetro positivo de competência legislativa regional previsto nos artigos 112º, nº 4, e 227º, nº 1, alínea a), da Constituição.
As dívidas das autarquias locais açorianas não assumiriam nem qualitativa nem quantitativamente particular configuração em confronto com as das demais autarquias do país.
6. Ao abrigo dos artigos 54º, 55º e 56º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores pronunciou-se sobre o pedido, juntando um parecer. No parecer, contestou a alegada inconstitucionalidade das normas em análise, sublinhando o facto de o decreto não poder ser considerado consubstanciador do regime das finanças locais 'sem o inevitável risco de excesso', dada a falta de carácter permanente e duradoiro do apoio financeiro excepcional que prevê, bem como a natureza regulamentar do decreto da Assembleia Legislativa Regional, em face da Lei das Finanças Locais e do artigo 44º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas.
7. Enunciada, sucintamente, a ordem de razões que assistiu ao pedido formulado pelo Ministro da República e atenta a natureza das objecções formuladas pela Assembleia Legislativa Regional, deverá o Tribunal Constitucional decidir.
II Fundamentação
8. O fundamento do pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto legislativo regional nº 34/99 apresentado pelo Ministro da República para os Açores é a violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165º, nº 1, alínea q), em conjugação com os artigos 112º, nº 4, e 227º, nº 1, alínea a), da Constituição], na medida em que
é objecto da reserva o regime das finanças locais.
Tal fundamento analisa-se nos seguintes termos: a. As normas constantes do decreto legislativo regional nº 34/99 não se integram ou coincidem com o conteúdo normativo da Lei das Finanças Locais, na medida em que não consubstanciam nenhuma das formas de cooperação técnica e financeira prevista no nº 3 do artigo 7º da mesma lei para as Regiões Autónomas nem se fundamentam nas outras formas de cooperação financeira previstas pelo artigo 7º, nº 7, daquela lei; b. Como o artigo 7º, nº 7, da Lei das Finanças Locais, não prevê o exercício de faculdades legislativas pelas Assembleias Legislativas Regionais
[artigos 35º da Lei das Finanças Locais e 227º, nº 1, alínea d), e 232º, nº 1, da Constituição], pois se o fizesse seria inconstitucional, justificando apenas poderes regulamentares, as normas questionadas desenvolvem o regime das finanças locais para além dos limites de cooperação financeira autorizada com as autarquias locais regionais; c. O conteúdo normativo do decreto legislativo regional também não desenvolve e concretiza o artigo 44º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas
(que prevê a possibilidade de apoio financeiro às autarquias locais, para além do já previsto na lei, na condição de tal apoio Ter por objectivo o 'reforço da capacidade de investimento'), pois tal norma exige o respeito pelo regime financeiro das autarquias locais definido na lei, isto é, na própria Lei das Finanças Locais e no artigo 104º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores; d. Deste modo, o desrespeito pelo artigo 7º da Lei das Finanças Locais impede a caracterização das normas em questão como mero desenvolvimento e concretização regulamentar daquele preceito; e. A inconstitucionalidade orgânica depende, assim, essencialmente de uma ultrapassagem do regime da Lei das Finanças Locais em dois aspectos cruciais - a falta de credenciação do esquema previsto no decreto legislativo regional como modo de cooperação financeira e a ausência de natureza normativa regulamentar das suas normas.
A pertinência deste esquema argumentativo como fundamentação da inconstitucionalidade do diploma em apreço depende da resposta que se der a algumas questões, tais como a do âmbito da reserva relativa de competência legislativa quanto ao regime das finanças locais e, pelo menos na perspectiva de um certo âmbito da reserva do regime, a respeitante à natureza meramente
'regulamentar' dos preceitos agora sindicados.
Na verdade, independentemente daquele esquema argumentativo, são estas as questões de cuja resposta há-de brotar qualquer juízo sobre a constitucionalidade de tais normas. Com efeito, tanto o âmbito da reserva relativa de competência prevista na alínea q) do artigo 165º, nº 1, como a natureza legislativa ou puramente regulamentar das normas questionadas são aspectos cruciais do problema que é suscitado perante o Tribunal Constitucional: se o decreto legislativo regional não invadir materialmente o âmbito do regime das finanças locais ou, até numa certa perspectiva do âmbito da reserva do regime, tiver natureza de regulamento de execução, não se verificará a invocada inconstitucionalidade orgânica do diploma regional.
9. Quanto à primeira questão, a questão do âmbito da reserva relativa de competência em matéria de regime de finanças locais, é desde logo problematizável se de tal regime fazem parte todos os aspectos da regulação sobre as finanças locais ou apenas os seus traços essenciais. No caso deste decreto, deve apurar-se se o conteúdo normativo que agora se fiscaliza interfere, em algumas destas interpretações, com a reserva de competência legislativa relativa ao regime das finanças locais.
Mesmo que se entendesse que a resposta a esta última questão consideraria que uma reserva relativa de competência quanto ao regime seria, pelo menos tendencialmente, uma 'reserva horizontal', isto é, enquanto reserva relativa de regime e não reserva de regulação da matéria ainda flexibilizaria alguma intervenção normativa de conteúdo regulamentar sobre certos aspectos da mesma matéria (cf., sobre a distinção entre reserva horizontal e vertical, Maria Lúcia Amaral, 'Reserva de Lei', em Enciclopédia Pólis, vol. 5, cols. 428-433), Ter-se-ia de concluir, no caso concreto, que a reserva de lei teria sido violada. Com efeito, as normas questionadas apresentam-se como um modo de realização de investimento através da assunção de dívidas das autarquias pelo Governo Regional e é um critério fundamental da Lei das Finanças Locais, que regula o regime financeiro dos municípios e freguesias (artigo 1º, nº 1), que não sejam permitidas quaisquer formas de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios e freguesias por parte do Estado ou das Regiões Autónomas (artigo
7º), com excepção dos casos enunciados no artigo 7º, nºs 3 e 7. Assim, embora entendendo-se que tal proibição só consubstancia o regime das finanças locais por expressar uma efectiva garantia da autonomia autárquica perante os poderes centrais, Ter-se-á de concluir que tal garantia se concretiza, no regime legal vigente, pela proibição de apoios financeiros, não apenas em função do dano concreto na autonomia autárquica, mas enquanto modo de preservação de riscos para a autonomia autárquica. O sistema da lei é, com efeito, o de uma proibição geral de apoios financeiros com várias excepções e, por isso, conexionam-se com ele todas as disposições legais que se refiram a apoios financeiros, independentemente do seu efeito concreto na autonomia autárquica. A proibição geral de apoios financeiros corresponde, assim, a uma configuração do próprio sistema de relacionamento das autarquias com o poder central. Por outro lado, ainda que o concreto regime legal não tivesse tal expressão garantística, seria sempre matéria de regime das finanças locais, no sentido previsto no artigo 165º, nº 1, alínea q), uma regulação que versasse sobre apoios financeiros, pela necessária interferência desta com o modelo concreto de autonomia autárquica e mesmo que se referisse a apoios financeiros sem carácter contínuo e duradoiro. Assim, pelo facto de se estar perante um aspecto respeitante à disciplina do relacionamento financeiro entre as autarquias e o Governo Regional incorrer-se-á inevitavelmente no âmbito do regime das finanças locais.
10. Por outro lado, como a regulação que o decreto legislativo regional prevê incide, como se referiu, sobre o âmbito do relacionamento financeiro entre o Governo Regional e as autarquias contemplado no artigo 7º, nº 1, da Lei das Finanças Locais, é essencial averiguar se as normas do decreto legislativo regional contradizem, inovam ou meramente concretizam aquela norma da Lei das Finanças Locais, pois neste último caso ainda se poderia estar no domínio regulativo do regime legal vigente e, por isso, poderia não ser violada a reserva relativa de lei. Quanto a esta Segunda questão, parece claro que a orientação que o Tribunal Constitucional seguiu no Acórdão nº 631/99 é aplicável, sendo o ponto de partida de qualquer resposta ao problema suscitado. Com efeito, a cooperação financeira exclui meros subsídios ou situações completamente diversas (mesmo que de outro tipo) das previstas no nº 3 do artigo 7º, em que o Governo Regional não surja como 'parceiro no suporte financeiro de um projecto ou de um empreendimento a realizar', mas apenas como entidade que a posteriori vai suprir o endividamento da autarquia relativamente a anteriores investimentos.
Ora, as normas em crise, apesar de deverem Ter como efeito uma libertação da capacidade de investimento das câmaras endividadas, exigindo como condição da assunção de dívidas pelo Governo Regional um projecto de investimento das autarquias, não consubstanciam senão um aumento virtual das verbas destinadas ao investimento, tanto mais que essas verbas, correspondentes ao investimento a realizar, poderão nem sequer chegar a existir - ou o projecto poderá não chegar a concretizar-se. Não traduz, pois, tal esquema legal uma típica cooperação financeira, sendo antes um modelo de subsidiação sui generis em que se assume o pagamento parcial de dívidas na base da mera apresentação de projectos de investimento, sem que 'o apoio financeiro' tenha de ser justificável por um conteúdo específico do projecto ou por um objectivo determinado.
Estamos, assim, perante normas que não se coadunam com o conteúdo do artigo 7º, nºs 3 a 7, da Lei das Finanças Locais, não consubstanciando uma concretização regulamentar das excepções à proibição de comparticipações financeiras por parte dos governos das Regiões Autónomas às autarquias. Não se trata, com efeito, de um esquema aplicativo da participação do Governo Regional na realização de investimentos públicos pelas Câmaras, mas de um meio indirecto de potencial aumento de capacidade de investimento autárquico, que o artigo 7º, nºs 3 a 7, da Lei das Finanças Locais, não contempla.
11. Só não seria assim, se num certo sentido o pensamento legislativo do artigo 7º, nº 7, ainda incluísse aquela regulação como modalidade sui generis de cooperação financeira. Desse modo, as normas em crise seriam um mero desenvolvimento concretizador do artigo 7º, nº 7, da Lei das Finanças Locais. Tal interpretação é, porém, inadmissível, como se demonstrará. Na verdade, o artigo 7º, nº 7, da Lei das Finanças Locais estabelece uma excepção ao princípio da proibição de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios por parte do Estado que, em si mesma, permite, ainda, a manutenção na sua essência daquele princípio. Quer isto dizer o seguinte: permitem-se certas formas de cooperação financeira justificadas de tal forma pelo interesse público que não desvirtuem a separação entre o Governo Regional e as câmaras, no plano financeiro, a autonomia autárquica e a igualdade entre as câmaras nem possibilitem qualquer modo de tutela política central das autarquias locais ou de adulteração do sistema autárquico que vigora no país. Nesse sentido, as excepções não poderão ser uma negação da essência do princípio contemplado no nº 1 do artigo 7º, cujo relevo constitucional resulta do artigo
238º da Constituição, mas apenas verdadeiras excepções, em que, por razões de interesse público, se justifica claramente o apoio financeiro dos Governos às autarquias, sem serem 'beliscados' o princípio e critérios de autonomia autárquica.
A cooperação financeira no investimento local nas Regiões Autónomas não é em si mesma autorizada, mas é-o, apenas, enquanto a especificidade das Regiões Autónomas o justifique concretamente. O nº 7 do artigo 7º da Lei das Finanças Locais é, assim, uma excepção do mesmo tipo das excepções contidas no nº 3 do artigo 7º e não a previsão de uma ampliação indiscriminada das possibilidades de apoio financeiro descaracterizadora do princípio consagrado no nº 1 do artigo
7º.
Assim, por um lado, a especificidade regional justificará formas de cooperação financeira diversas das previstas no nº 3 do artigo 7º e, por outro lado, tais formas de cooperação, ainda que diversas das previstas no nº 3 do artigo 7º (providências orçamentais e auxílios financeiros), hão-de Ter uma justificação análoga (exprimindo uma mesma lógica de proporcionalidade entre a gravidade e especificidade dos objectivos e a autonomia financeira das autarquias) embora em função de razões especificamente regionais.
A interpretação jurídica do artigo 7º da Lei das Finanças Locais, nomeadamente do seu nº 7, conduz, inevitavelmente, a negar a caracterização das normas questionadas como mera concretização do nº 7 do artigo 7º. Com efeito, tais normas não revelam uma razão especificamente regional justificativa de uma forma sui generis de cooperação financeira e não radicam em necessidades proporcionalmente justificativas de uma limitação ao princípio proibitivo contido no nº 1 do artigo 7º da Lei das Finanças Locais. Efectivamente, o endividamento autárquico não é exclusivo dos Açores nem a assunção de dívidas é um modo de apoio ao investimento que seja especialmente indicado nos Açores. Os projectos de investimento constantes do protocolo previsto no diploma não têm que exibir qualquer objectivo especificamente regional, impondo-se, assim, a assunção de dívidas como o único objectivo prévio e concretamente configurável.
Nestes termos, poder-se-á concluir que as normas questionadas extravasam o pensamento legislativo contido no nº 7 do artigo 7º da Lei das Finanças Locais, para além de se pronunciarem sobre matéria atinente aos aspectos essenciais do regime das finanças locais previsto na alínea q) do artigo 165º, nº 1, da Constituição.
12. Ainda se poderá questionar, porém, se o Estatuto Político-Administrativo da Região não legitimará, por seu lado, tais modalidades de apoio financeiro, de modo que poderíamos confrontar-nos com uma matéria em que o próprio regime das finanças locais seria integrado pela especificidade autonómica das finanças regionais. Isto é, admitindo-se, como antes se sustentou, que estaríamos perante uma regulação de matéria do regime de finanças locais e perante uma alteração dos princípios essenciais dessa lei não se poderá tratar, contudo, de uma matéria especificamente regional em que a própria reserva de lei quanto às finanças locais deverá ser comprimida pelos critérios da autonomia regional, enquanto pertencentes ao Estatuto das Regiões Autónomas?
Todavia, desde logo, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores resulta que o regime financeiro das autarquias insulares é o definido na Lei das Finanças Locais (cf. artigos 97º e 104º do Estatuto). E, decisivamente, a Constituição impõe que todas as autarquias locais tenham património e finanças próprios e que o respectivo regime seja o estabelecido por lei, que, genericamente, visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias (artigo 238º, nºs 1 e 2, da Constituição). Na Constituição, convivem, assim, a autonomia regional e o sistema autárquico, unitário para todo o território nacional, sendo ambas, indiscutivelmente, elementos essenciais da organização do Estado.
Também eventuais razões derivadas dos financiamentos comunitários, associadas aos custos da insularidade, não justificam derrogações genéricas do princípio da autonomia autárquica.
13. As razões anteriormente expendidas hão-de implicar, igualmente, que o Regime das Finanças das Regiões Autónomas não poderá inflectir regras gerais quanto às autarquias insulares estabelecidas na Lei das Finanças Locais. Deste modo, não é autorizada qualquer interpretação do artigo 44º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas que não tenha sustentação no artigo 7º da Lei das Finanças Locais, nomeadamente nos nºs 3 e 7 daquele diploma (é isso, aliás, o que resulta do próprio artigo 43º, nº 2, da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, que prevê como limite o regime das finanças locais).
Não é, assim, concebível que as normas em causa regulamentem o artigo 44º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, pressupondo uma interpretação daquele preceito que supere os princípios ínsitos quanto às autarquias locais, nomeadamente as insulares, no diploma que define, em geral, o regime de tal matéria, e para o qual a lei em que se insere o artigo 44º remete.
E muito menos seria admissível que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores ou a própria Lei das Finanças das Regiões Autónomas viessem autorizar quaisquer iniciativas legislativas não meramente regulamentares nesta matéria, em contradição com o artigo 112º, nº 6, da Constituição.
14. Definidas as questões nestes termos, deverá concluir-se que as normas do Decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 34/99 extravasam os poderes legislativos das regiões autónomas [artigos 227º, nº 1, alínea a), e 112º, nº 4, da Constituição], por invadirem a reserva relativa da Lei da Assembleia da República [artigo 165º, nº 1, alínea q)], na medida em que regulam, aliás de modo inovatório, matéria atinente ao regime das finanças locais.
III Decisão
15. Em face do que anteriormente se expôs, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade de todas as normas do decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 34/99, por violação do artigo 165º, nº 1, alínea q), em conjugação com os artigos 112º, nº 4, e 227º, nº 1, alínea a), da Constituição. Lisboa, 5 de Janeiro de 2000 Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa