Imprimir acórdão
Proc.º 349/99
2.ª Secção (Plenário). Relator:- BRAVO SERRA.
1. O Procurador-Geral Adjunto em funções junto deste Tribunal veio, nos termos do artº 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o plenário do Acórdão nº 176/2000, proferido nos presentes autos em 22 de Março de 2000, por isso que, disse, nesse aresto 'se julgou a questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 28º, nº 7 do Decreto-Lei nº
123/94, de 18 de Maio, na redacção emergente da Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, em sentido divergente do anteriormente adoptado no acórdão nº 327/99'.
Por despacho de 26 de Abril de 2000, admitiu o ora relator o interposto recurso, conquanto não deixasse de sublinhar que sempre se poderiam levantar dúvidas quanto à questão de saber se ao aludido preceito, na sua literalidade, foi, nos dois arestos, conferida divergente solução quanto à sua compatibilidade constitucional.
Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a alegação por si produzida defendo que deve ser seguido o entendimento seguido no aresto ora impugnado, assim se solucionando 'o conflito jurisdicional no sentido do juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão nº 176/2000'.
O recorrido P... não apresentou qualquer alegação.
2. Aquando da elaboração do memorando, o relator, nos termos do nº 1 do artº 704º do Código de Processo Civil, proferiu o seguinte despacho:-
1. No despacho proferido em 26 de Abril de 2000, por intermédio do qual foi admitido o recurso interposto para o Plenário pelo Representante do Ministério Público em funções junto deste Tribunal e referentemente ao Acórdão nº 176/2000, foi referido expressamente que não deixava de haver espaço para dúvidas quanto à questão de saber se o julgamento de inconstitucionalidade que naquele mesmo aresto se tomou, foi, quanto à norma ali em apreciação, divergente do efectuado no Acórdão nº 327/99.
Tão somente por ter havido lugar a essas dúvidas é que o recurso veio a ser admitido e, em consequência, determinada a feitura de alegações.
Encontrando-se os autos em fase de elaboração de memorando, tem o ora relator para si como acentuadamente plausível sustentar- -se que, na realidade, o julgamento da questão de inconstitucionalidade levada a efeito naqueles dois acórdãos não foi efectuada de modo divergente.
2. Efectivamente, no Acórdão nº 327/99, disse-se, a dado passo:-
‘...........................................................................................................................................................................................................................................
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. A sentença recorrida, parte do princípio de que o mencionado n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio (redacção da Lei n.º
52-C/96, de 27 de Dezembro) prevê, como efeito necessário (automático), da aplicação da coima correspondente à respectiva contraordenação, a perda do veículo que, sem estar legalmente habilitado para o consumo desse combustível, utilize gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados; e, na sequência desse entendimento, conclui que tal norma viola o artigo 30º, n.º 4, da Constituição. E, depois de sublinhar que ‘impende sobre o órgão que exerce a autoridade a demonstração dos elementos que permitam formular esse juízo fundamentador da aplicação da sanção’, mas que, ‘no caso concreto dos autos é manifesta a insuficiência de dados para formular tal juízo’ - ou seja: ao cabo e ao resto, depois de dizer que, só pelo facto de o juiz não dispôr, no caso, de elementos que lhe permitam ajuizar se a perda do veículo é ou não proporcionada ao grau de ilicitude da conduta, ao modo da sua execução, à gravidade das respectivas consequências e à intensidade da culpa do agente, é que ela ‘surge como desproporcionada’ - extrai a consequência de que a norma em causa estabelece a perda do veículo ‘sem qualquer margem de apreciação da respectiva proporcionalidade’, por isso que, também por essa razão, seja inconstitucional.
4.2. Se a norma sub iudicio - a norma constante do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro - previsse a perda do veículo como efeito automático da coima aplicada pela contraordenação prevista no n.º 2 do mesmo artigo 28º, seria, de facto, inconstitucional: desde logo, poder-se-á dizer que ela violaria, directamente, o artigo 30º, n.º 4, da Constituição. E se - nos dizeres do Ministério Público - a perda do veículo fosse aplicada, ‘independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente’, a mesma norma violaria também o princípio da necessidade e da proporcionalidade das sanções, decorrentes do artigo 18º, n.º 2, da Constituição e do próprio princípio do Estado de Direito. Na verdade, o artigo 30º, n.º 4, da Constituição dispõe que ‘nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos’. Esta norma não proíbe que as penas possam traduzir-se, elas próprias, na perda de direitos civis, profissionais ou políticos (por exemplo, na interdição do exercício de uma profissão por determinado período de tempo ou na demissão da função pública). Questão é que tal pena seja aplicada pelo juiz de acordo com as regras competentes (princípio da culpa, regra da tipificação, adequação da pena
à gravidade da infracção, etc.). A norma em causa proíbe, isso sim, que essa perda de direitos se siga, automaticamente (ou seja: por mero efeito da lei e independentemente de decisão judicial), à condenação em certas penas ou pela prática de certos crimes.
É que, se tal fosse permitido, estar-se-ia a acrescentar à pena do crime uma outra pena, que redundaria na ‘morte civil, profissional ou política’ do cidadão. E a fazê-lo, de maneira mecânica - ou seja: sem respeito pelas exigências dos princípios da culpa, da necessidade das penas e da jurisdicionalidade. E, com isso, ao mal da pena aplicada, que é inevitável, ia ainda juntar-se, de forma automática, um efeito estigmatizante ou infamante que serviria para dificultar a ressocialização do delinquente [ cf., sobre esta matéria, entre outros, os acórdãos nºs 16/84, 91/84, 310/85, 75/86, 94/86,
249/92, 209/93, 442/93 e 748/93 (publicados no Diário da República, II série, de
12 de Maio de 1984, I série, de 6 de Outubro de 1984, II série, de 11 de Abril de 1986, de 12 de Junho de 1986, de 18 de Junho de 1986, de 27 de Outubro de
1992, de 1 de Junho de 1993, de 19 de Janeiro de 1994 e I-A série, de 23 de Dezembro de 1993, respectivamente)] . O que acaba de dizer-se vale não apenas para os crimes, mas também para os restantes domínios sancionatórios (maxime, para as contraordenações), como este Tribunal decidiu no seu acordão 282/86 (publicado no Diário da República, I série, de 11 de Novembro de 1986). Neste aresto, estava em causa a norma constante do § único do artigo 160º do Código da Contribuição Industrial, que previa que, se a decisão fosse condenatória, a inscrição do técnico de contas seria cancelada. Escreveu-se, aí: O facto de não se estar aqui no terreno criminal não impede a aplicação do princípio constitucional do artigo 30º, n.º 4. Se às penas criminais não pode acrescentar-se, a título de efeito da pena, a perda de direitos profissionais, por maioria de razão, isso está vedado quando se trate de penas sem carácter criminal. Assim, pois, à aplicação da coima prevista no mencionado n.º 2 do artigo 28º, não pode seguir-se, ope legis, como efeito automático, a perda do veículo. E esta perda também não pode ter lugar, ‘independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente’.
É que, do artigo 18º, n.º 2, da Constituição e do próprio princípio da proporcionalidade, inerente ao Estado de Direito, decorre o princípio da necessidade das sanções: estas (no caso das contraordenações, as coimas e as respectivas medidas acessórias) só devem ser aplicadas quando outros meios menos onerosos de política social se mostrem insuficientes ou inadequados para organizar a protecção dos respectivos bens jurídicos. E mais: as coimas impostas pela prática de contraordenações devem ser proporcionadas à gravidade da contraordenação e, bem assim, à intensidade da culpa e à situação económica do agente. Do mesmo modo, as apreensões de objectos, visando o seu perdimento a favor do Estado, não devem decretar-se, se isso for desproporcionado à gravidade da contraordenação e à culpa do agente.
............................................................................................................................................................................................................................................’
Só depois destas considerações é que o Acórdão nº 327/99 trilhou o caminho consistente em conferir ao nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº 123/94, de
18 de Maio, na redacção conferida pela Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, uma interpretação conforme à Constituição, tendo, para tanto, dito:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................ Pois bem: contrariamente ao que pretende a sentença, a norma sub iudicio não prevê o decretamento da perda do veículo como efeito necessário (automático) da prática da respectiva contraordenação. Nem tão-pouco essa perda tem que ser imposta, toda a vez que se pratique a respectiva infracção, independentemente da sua gravidade e da responsabilidade do agente. Ao invés, ela há-de ser decretada com observância das regras competentes; e, por isso, só o deve ser, se, em face dos contornos do caso, se apresentar como necessária e adequada (proporcionada)
à gravidade da contraordenação e à intensidade da culpa do agente, como claramente resulta do que se prescreve no artigo 21º, n.º 1, alínea a), da mencionada lei-quadro das contraordenações (citado Decreto-Lei n.º 433/82, na redacção do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro). Na interpretação da norma sub iudicio deve, na verdade, atender-se às restantes normas que o caso convoca, designadamente ao que, a propósito, se preceitua no Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
376-A/89, de 25 de Outubro), pois o artigo 27º do citado Decreto-lei n.º 123/94, de 18 de Maio (redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro) manda aplicar esse Regime Jurídico às infracções previstas nele e na respectiva regulamentação. Ora, aquele Regime Jurídico prescreve, no artigo 4º, alínea a), que são subsidiariamente aplicáveis as disposições da lei-quadro das contraordenações, constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro - ou seja, para o que aqui importa, o referido artigo 21º, n.º 1, alínea a). E mais: na alínea b) do artigo 45º, n.º 1, do mesmo Regime Jurídico, dispõe-se que a perda dos meios de transporte utilizados na prática de certos crimes se não decretará, se o tribunal a considerar ‘um efeito desproporcionado face à gravidade da infracção e, nomeadamente, ao valor das mercadorias objecto da mesma’. Sendo este o quadro legal em que se inscreve a norma sub iudicio, é óbvio que uma sua interpretação razoável conduz ao entendimento de que a perda do veículo aí prevista (ou seja, do veículo com que foi cometida a contraordenação) não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada, nem pode ser decretada, se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente. Assim interpretada, a norma sub iudicio já não é inconstitucional.
Por isso, sendo esta uma interpretação que a norma consente, é ela que o intérprete deve preferir.
............................................................................................................................................................................................................................................’
2.1. Por outro lado, no Acórdão nº 176/2000, o aludido nº 7 do artº
28º do Decreto-Lei nº 123/94 (na redacção indicada) foi julgado inconstitucional por violação do nº 4 do artigo 30º e do artigo 62º - em conjugação com o princípio da proporcionalidade -, ambos da Lei Fundamental.
Não obstante este julgamento de inconstitucionalidade englobar a totalidade daquele preceito, o que é certo é que da respectiva fundamentação se extrai, sem grande margem para dúvidas, que o vício de desconformidade com o Diploma Básico era de perspectivar como incidindo sobre a parte do mesmo de onde resultava o perdimento automático dos veículos.
Elucidativas desta consideração são as seguintes afirmações que se surpreendem no Acórdão nº 176/2000:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................
2. Na sentença impugnada, como resulta da transcrição acima efectuada, a recusa de aplicação da norma constante do preceito vertido no nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº 123/94 incidiu sobre aquela norma interpretada que foi no sentido de na mesma ser determinado o perdimento automático dos veículos que não estejam legalmente habilitados ao consumo de gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados.
E, sendo assim, entende-se que constitui objecto do vertente recurso a norma ínsita no mencionado preceito com a indicada interpretação ou, se se quiser, na dimensão normativa que lhe foi conferida na decisão ora sob censura, e isto independentemente de se entrar na questão de saber se, em face do teor do preceito, este não permitiria outra interpretação, designadamente aquela que foi levada a efeito no Acórdão deste Tribunal nº 327/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 19 de Julho de 1999), tendo, inter alia, em consideração que não existe subordinação hierárquica entre o regime geral consagrado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 17 de Outubro, e o diploma onde o dito preceito se insere (cfr. voto de vencida aposto a esse aresto pela Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
Vejamos, pois, se tal norma padece do vício de inconstitucionalidade.
2.1. Consagrando-se no nº 4 do artigo 30º da Constituição que
[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, daí decorre que a Lei Fundamental veio estabelecer uma proibição, não de existência de penas que impliquem a perda de direitos daquela natureza, mas sim que essa perda seja uma mera decorrência automática (isto é, sem que seja resultado de uma aplicação concreta pelo juiz, ponderadas que sejam a tipificação da infracção, a culpabilidade e a adequação da sanção à gravidade do ilícito, a culpa e outras circunstâncias rodeadoras do ilícito e do respectivo cometimento) da condenação em outra pena ou pela comissão de um determinado ilícito (cfr. a discussão transcrita no Diário da Assembleia da República, 1ª Série, de 9 de Junho de 1982, aquando dos trabalhos visando a revisão do Diploma Básico e que veio dar origem à Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro e, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 16/84, in Diário da República, 2ª Série, de 1 de Maio de 1984, 75/86, idem, idem, de 12 de Junho de 1986, 165/86, idem 1ª Série, de 3 de Junho de
1986, 353/86, idem, 2ª Série, de 9 de Abril de 1987, 209/93, idem, idem, de 1 de Junho de 1993, e 748/93, idem, 1ª Série-A, de 23 de Dezembro de 1993).
É duvidoso que, tendo em conta a interpretação normativa sub iudicio, dela resulte inequivocamente que a perda dos veículos se possa subsumir a uma situação de perda dos instrumenta sceleris em que se visa obstar ao risco de continuação criminosa e, assim, se configurar como se pretendendo adoptar uma sanção de natureza similar à das medidas de segurança.
2.2. Seja como for, e como da referida interpretação resultou o carácter automático do perdimento dos veículos que não estejam legalmente habilitados ao consumo de gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados
(ou seja, sem a prévia formulação de um juízo ponderador das circunstâncias do caso, onde relevam as anteriores e posteriores ao cometimento da infracção, o tipo de instrumento, a sua relevância quanto à ocorrência do ilícito, a gravidade deste, a perigosidade do agente quanto à utilização e a própria gravidade objectiva do instrumento), a questão que se coloca é, justamente, a de saber se aquele carácter automático vai conflituar com a Constituição.
Desde logo se sustentará que um tal automatismo se iria postar como violador do nº 4 do artigo 30º da Lei Fundamental, pois que a perda do veículo tinha, inequivocamente, repercussão no direito de propriedade (e, desta sorte, num direito de natureza civil) do agente que desse direito ficou privado em consequência da prática de um acto ilícito ou da condenação por essa prática.
..............................................................................................................................................................................................................................................
2.3. Mas, independentemente da sustentação agenciada no precedente número, a verdade é que o analisado preceito, com a interpretação que dele foi feita, se revela desproporcionado.
Efectivamente, a ablação, efectuada de modo automático, da propriedade dos veículos ditada pela norma sub specie (e não estando agora em causa, como parece claro, uma situação de perigosidade especial, nomeadamente quanto ao uso de determinados instrumentos) não respeita, em face desse automatismo, o princípio segundo o qual se deverá ponderar as adequação e proporção dessa reacção criminal incidente sobre o direito civil de propriedade (quer a título de medida análoga às medidas de segurança, quer como efeito necessário do cometimento do crime, quer como efeito da condenação por um determinado ilícito, o que não importará dilucidar) em face das concretas circunstâncias do caso
(cfr., sobre a questão da exigência da proporcionalidade tocantemente às soluções normativas de perda de instrumentos do crime, Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime, 1993, § 999).
............................................................................................................................................................................................................................................’
3. Haverá, ainda, que assinalar que na decisão judicial lavrada em 7 de Dezembro de 1998 no Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa e que deu origem ao Acórdão nº 327/99, não se deixou de sublinhar que deveria o organismo administrativo que impôs a sanção demonstrar a existência de determinado circunstancionalismo para poder decretar o perdimento da viatura, sendo que somente porque não havia nos autos quaisquer elementos que permitissem ajuizar se a perda do veículo era, ou não, adequada e proporcionada ao grau de ilicitude da conduta, ao seu modo de execução, à gravidade das suas consequências e à intensidade da culpa do agente é que não se pôde decretar aquele perdimento, que, em face do automatismo preceituado no nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº
123/94, se apresentava, assim, como algo de desproporcionado.
Igualmente na decisão judicial prolatada pelo mesmo Tribunal, mas desta feita em 18 Maio de 1998 e que deu origem ao Acórdão nº 176/2000, foi ponderado se, no caso então submetido a apreciação, havia circunstâncias que justificavam o perdimento da viatura determinado pelo organismo administrativo, tendo-se concluído que, perante a inexistência dessas circunstâncias, a perda não era justificada, sendo que o preceito dela determinante, ao ser entendido como impositor de perda automática, era inadequado e desproporcionado.
Significa isto que, verdadeiramente, as duas decisões judiciais que vieram a ser impugnadas perante este Tribunal e originaram os Acórdãos números
327/99 e 176/2000 se apresentaram como substancialmente idênticas.
4. Perante o que se deixou dito, difícil não será concluir-se que, no que tange à questão de saber se o preceito do nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº
123/94, na redacção conferida pela Lei nº 52-C/96 - no entendimento de harmonia com o qual o mesmo prevê a perda automática dos veículos que utilizem gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados e que não estejam legalmente habilitados a consumir estes carburantes -, era ou não desconforme com a Constituição (ou seja, quanto à questão de constitucionalidade), não efectuaram julgamento em sentido divergente.
Antes, e pelo contrário, aquela dimensão normativa foi, por ambos os acórdãos, considerada como conflituante com a Lei Fundamental.
E, sendo assim, não se reúne, in casu, o condicionalismo do recurso a que se reporta o nº 1 do artº 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
4.1. E mesmo que porventura se entendesse que quiçá não deixariam de estar subjacentes a esta última disposição razões ligadas ao desiderato de não deixar subsistir decisões deste Tribunal cuja respectiva execução, em face do respectivo teor, viesse a ser contrastante, então, revertendo aos casos tratados nos Acórdãos números 327/99 e 176/2000, tendo em consideração o que acima se disse no ponto 3., sempre se haveria que concluir pela não existência de decisões cuja execução viesse a ter divergentes implicações.
5. Perante o que se deixou dito, opina o ora relator no sentido de se não tomar conhecimento do objecto do recurso, motivo pelo qual, atento o disposto no nº 1 do artº 704º do Código de Processo Civil, se determina a notificação das «partes»'.
Em resposta, o impugnante veio sustentar que:-
- o recurso interposto para o plenário assentou no proferimento de duas decisões não coincidentes das Secções e reportadamente à mesma questão de inconstitucionalidade normativa, consubstanciando uma delas um juízo de inconstitucionalidade parcial e outra optando pela formulação de uma decisão interpretativa conforme à Constituição;
- muito embora se possa concordar que, do ponto de vista prático, as decisões tomadas por este Tribunal porventura conduzirão a resultados análogos, sempre será possível o entendimento segundo o qual, no prisma jurídico-constitucional, as duas referidas decisões têm diferente natureza, com consequentes efeitos diferenciados;
- na sua óptica, as decisões em causa não se poderão considerar, pura e simplesmente, como 'as duas faces da mesma moeda' - assim se apresentando como irrelevante e discricionária a opção por um ou outro daqueles tipos de decisão -, já que o conflito jurisprudencial que se intentou resolver por intermédio do presente recurso radicou 'no facto de, num caso, se ter julgado que a norma era insusceptível de aproveitamento, quando confrontada com a Lei Fundamental - e na outra corrente jurisprudencial se haver considerado que a mesma norma ainda era susceptível de aproveitamento, desde que interpretada no sentido fixado pelo Tribunal Constitucional'.
Cumpre decidir.
3. O Tribunal anui, no essencial, ao que se contém no despacho proferido pelo relator e acima transcrito.
E, assim, conquanto, como ali se disse, o julgamento de inconstitucionalidade levado a efeito no Acórdão nº 176/2000 englobasse a totalidade da norma constante do nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº 123/94, na redacção dada pela Lei nº 52-C/96, o que é certo é que, em rectas contas e tendo por referência a fundamentação carreada àquele aresto, o mesmo tão só surpreendeu um tal vício na parte em que do indicado normativo resultava o perdimento automático dos veículos que não estejam legalmente habilitados a consumir gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados.
Ora, este segmento normativo ou, se se quiser, esta dimensão normativa, foi alvo, no Acórdão nº 327/99 e tendo por parâmetro a sua corte argumentativa, de um juízo de invalidade semelhante ao efectivado no Acórdão nº
176/2000, muito embora na decisão tomada naquele primeiro aresto se tivesse concluído que o preceito em apreciação deveria ser, no caso (cfr. nº 3 do artº
80º da Lei nº 28/82), interpretado e aplicado por sorte a que tais segmento ou dimensão não resultassem desse mesmo preceito.
Pode-se, pois, dizer que, no fundo, o decidido pelo Acórdão nº
327/99 leva a que se entenda que o preceito do dito nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº 123/94 não enferma de incompatibilidade com o Diploma Básico na parte em que dele não decorra o perdimento automático do veículo, o que não deixa de ser o mesmo que dizer, como o disse o Acórdão nº 176/2000, que o mencionado preceito é contrário à Constituição se dele resultar um tal perdimento.
E é justamente por isso que o Tribunal perfilha a óptica de harmonia com a qual, tocantemente a esta questão de constitucionalidade, não houve, por parte dos Acórdãos em causa, um divergente julgamento.
4. Em face do exposto, não toma o Tribunal conhecimento do objecto do recurso. Lisboa, 7 de Novembro de 2000 Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida Declaração de voto
Com razões, no essencial, semelhantes às constantes das outras declarações de voto, discordei da decisão do Tribunal Constitucional quanto ao não conhecimento do objecto do presente recurso, na medida em que estando em causa - acerca de uma mesma norma (artigo 28º, nº 7, do Decreto-Lei nº 123/94, de 18 de Maio) - uma interpretação conforme à Constituição e um juízo de inconstitucionalidade, haverá, inevitavelmente, uma decisão divergente sobre a mesma questão normativa (artigo 79º-D, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
Com efeito, uma interpretação conforme à Constituição da norma não considera inválida a norma, mas reconstrói-a num sentido constitucional e, por isso, julga-a válida. O julgamento de inconstitucionalidade não permite a subsistência no ordenamento jurídico de tal norma, não reconhecendo a possibilidade, por via interpretativa, da preservação de uma outra dimensão. Os efeitos jurídicos dos dois juízos são, necessariamente, diferentes, pois um suscita uma necessidade de reformulação parcial do acórdão recorrido e o outro uma total reformulação da base normativa da decisão recorrida.
Existe, assim, a possibilidade do efeito jurídico do juízo de inconstitucionalidade ser divergente: na situação de interpretação conforme, o tribunal a quo está vinculado à interpretação conforme; no caso do juízo de inconstitucionalidade sobre a norma, o tribunal a quo terá de procurar no ordenamento jurídico uma outra base normativa da sua decisão. Maria Fernanda Palma
Declaração de voto
Votei vencida o presente acórdão, e pronunciei-me no sentido de admitir o recurso para o plenário, pelas razões que sucintamente passo a expor.
O n.º 1 do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional permite o recurso para o plenário quando o Tribunal Constitucional julgue a questão da inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma.
No acórdão n.º 327/99, o Tribunal Constitucional procedeu a uma interpretação conforme à Constituição da norma constante do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção conferida pela Lei n.º
52-C/96, de 27 de Dezembro. Segundo essa interpretação, a perda do veículo prevista naquele preceito não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada, nem pode ser decretada se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contra-ordenação e da culpa do agente.
No acórdão n.º 176/2000, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 30º e do artigo 62º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, a mencionada norma constante do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção conferida pela Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, na medida em que tal norma previa a perda do veículo como um efeito automático da coima aplicada, perda essa que podia ser decretada mesmo que fosse manifestamente desproporcionada à gravidade da contra-ordenação e da culpa do agente. Aparentemente, não existe contradição entre os dois referidos acórdãos, já que em ambos se considera constitucionalmente desconforme a possibilidade de a perda do veículo, prevista no n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, ser um efeito automático da coima aplicada e ser decretada se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contra-ordenação e da culpa do agente. A contradição entre os dois acórdãos verifica-se, todavia, quanto ao modo como em ambos se delimitou o objecto do recurso. No primeiro acórdão (o acórdão n.º
327/99), o Tribunal Constitucional entendeu dever apreciar a conformidade constitucional da norma do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, em si mesma considerada, para depois extrair dessa norma um sentido conforme à Constituição; no segundo acórdão (o acórdão n.º 176/2000), entendeu dever apreciar apenas uma determinada interpretação dessa norma (embora tenha afinal proferido uma decisão a julgar inconstitucional toda a norma) e como tal não logrou obter uma outra interpretação da norma que já pudesse ser conforme à Constituição. Dito de outro modo: no primeiro acórdão, o Tribunal Constitucional julgou que a norma em causa, quando confrontada com a Constituição, era ainda susceptível de aproveitamento, desde que interpretada no sentido fixado pelo Tribunal, e, no segundo acórdão, julgou que a mesma norma era insusceptível de tal aproveitamento. Ora, o n.º 1 do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional não restringe o recurso para o plenário aos casos em que, sobre a mesma questão normativa, recaia um juízo de inconstitucionalidade e um juízo de não inconstitucionalidade, exigindo apenas que a mesma questão normativa seja resolvida em sentido divergente. Claro que o objectivo primário do recurso para o plenário consiste em evitar contradições de natureza substantiva quanto à mesma norma. Mas não há razão para excluir tal recurso quando das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional sobre a mesma norma resultem, ou possam resultar, consequências divergentes para o tribunal a quo. É o que pode suceder quando, em relação a uma determinada norma submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, o Tribunal entenda, numa decisão, descobrir na norma um sentido harmónico com a Constituição e, na outra, proferir um juízo de inconstitucionalidade, sem procurar outras dimensões possíveis dessa norma. E foi o que sucedeu nos recursos que estiveram na origem dos acórdãos n.ºs 327/99 e 176/2000. Entendo, assim, que o Tribunal Constitucional deveria tomar conhecimento do objecto do presente recurso, pois que nos acórdãos n.ºs 327/99 e 176/2000, perante duas decisões judiciais substancialmente iguais, se equacionou e, portanto, resolveu de forma divergente a mesma questão normativa. Finalmente, considero que o conhecimento do presente recurso teria uma vantagem clarificadora suplementar: a de permitir ao Tribunal Constitucional verificar se a norma do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, comporta ou não um sentido conforme à Constituição. Não se tendo conhecido desse objecto, subsiste a dúvida quanto a esse concreto aspecto, o que em nada contribui para a certeza na aplicação do Direito. Maria Helena Brito
Declaração de voto
Deveria ter sido admitido o recurso para o plenário. O Acórdão nº 176/200, ao julgar inconstitucional a norma constante do nº 7 do artigo 28º do Decreto-Lei nº 123/94, de 18 de Dezembro, decidiu a questão de inconstitucionalidade em sentido divergente do adoptado, quanto à mesma norma, pelo Acórdão nº 327/99, que interpretou em conformidade com a Constituição aquele nº 7, no sentido de que a perda do veículo nele prevista (ou seja, do veículo com que foi cometida a contraordenação) não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada, nem pode ser decretada se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente.
Com efeito, segundo este último juízo de constitucionalidade, existe na ordem jurídica um comando sancionatório de perda do veículo com que foi cometida a contraordenação tipificada no nº 2 do artigo 28º. Esta sanção, que é acessória da coima de 200.000$00 a 100.000$00 também prevista no mesmo número, deverá ser imposta não só na condição da utilização de gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados, por veículos que não estejam legalmente habilitados para tal consumo, que é o tipo da contraordenação, e ainda na condição, que se deduz a contrario do nº 7 do artigo 28º, de ao proprietário do veículo poder ser atribuída responsabilidade pelo cometimento da infracção, mas também na condição, explicitada pela interpretação conforme à Constituição feita pelo Acórdão nº 327/99, de não ser desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente. Em consequência deste juízo de constitucionalidade, o tribunal a quo fica obrigado, conforme se decide no Acórdão nº 327/99 e resulte do nº 3 do artigo 80º da lei do Tribunal Constitucional, a aplicar o nº 7 do artigo 28º com a interpretação que se indicou. Em contraposição, dado o juízo de inconstitucionalidade do Acórdão nº 176/200, a norma constante do nº 7 do artigo 28º, sem qualquer restrição, não pode ser aplicada (artigo 204º da Constituição). Quer isto dizer que também a norma mais restrita, que se obtém ao adicionar a condição expressa pela interpretação conforme já referida, não pode ser aplicada. Assim, fez-se julgado quanto à não aplicabilidade no processo da norma nº 7 do artigo 28º, por inconstitucional
(artigo 80º, nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional e artigo 204º da Constituição), e transitou também, com esse conteúdo, a decisão recorrida
(artigo 80º, nº 4 da Lei do Tribunal Constitucional). Mas se decisão recorrida tivesse sido no sentido da aplicabilidade no processo da norma do nº 7 do artigo
28º, em uma determinada interpretação, tal juízo de constitucionalidade implicaria a reforma daquela decisão (artigo 80º, nº 2 da Lei do Tribunal Constitucional). Assim seria, mesmo nos casos em que se verificasse a condição de a perda do veículo não ser desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente. Nestes casos, se o Tribunal Constitucional tivesse interpretado a norma do nº 7 do artigo 28º em conformidade com a Constituição, manter-se-ia, como consequência, a decisão de perda do veículo. Torna-se assim patente, nos casos em que a decisão de constitucionalidade implicaria a aplicação da norma questionada, que a interpretação conforme com a Constituição
é contraditória ao julgamento de inconstitucionalidade da mesma norma. A mesma contradição torna-se igualmente evidente se pensarmos que o juízo de inconstitucionalidade do Acórdão nº 176/2000, em lugar de se impor apenas no processo, se pode consolidar na ordem jurídica através da sua declaração com força obrigatória geral, o que pode acontecer se ele for repetido em mais dois casos concretos (artigo 281º, nº 3 da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional). Uma suposta declaração com força obrigatória geral implica que na ordem jurídica deixa de vigorar a norma do nº 7 do artigo 28º, incluindo a interpretação restritiva ou condicional da mesma norma nos termos de interpretação conforme dada pelo Acórdão nº 327/99. Note-se, aliás, que o facto de constituir um elemento do pressuposto complexo de uma declaração com força obrigatória geral é um sentido normativo da decisão do Acórdão nº 176/2000, que é divergente do da decisão do Acórdão nº 327/99, visto que uma interpretação conforme à Constituição nunca pode conduzir, através da sua repetição, a uma declaração com força obrigatória geral. Temos aqui um novo argumento demonstrativo da existência de julgados com sentido normativo divergente ou contraditório, embora se deva acentuar que esta última divergência de sentido normativo não é visada como fundamento do recurso para o plenário, porque não deriva do conteúdo dos acórdãos, mas da conjugação de apenas um deles com as normas dos artigos 281º, nº 3 da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional. Nada disto impede que haja relações lógicas entre os juízos de inconstitucionalidade e de constitucionalidade aqui contrapostos. É certo que o Acórdão nº 327/99 ao dizer que a perda do veículo prevista no nº 7 do artigo 28º
'não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada' implica a inconstitucionalidade da norma expressa no mesmo nº quando interpretada 'no sentido de na mesma ser determinado o perdimento automático dos veículos'. Também é certo que os dois acórdãos tem uma fundamentação substancialmente idêntica, tendo o Acórdão nº 176/2000 retomado expressamente as razões do Acórdão nº 321/99, que cita extensivamente. Tendo cada um dos acórdãos dado uma interpretação diferente ao nº 7 do artigo 28º, lógico é que tenham chegado a conclusões divergentes quanto à sua constitucionalidade. Sendo o objecto diferente, não há contradição lógica entre as conclusões enquanto tais, deduzidas dos mesmos princípios. Resultam, porém, diferentes normas obrigatoriamente aplicáveis e da não aplicabilidade da norma do nº 7 do artigo
28º, na interpretação do Acórdão nº 176/200, não devia a aplicabilidade da interpretação da mesma norma dada pelo Acórdão nº 321/99. Para tanto, sem prejuízo da compatibilidade lógica, falta a vontade normativa, que foi suspensa pelo juízo de inconstitucionalidade, mas que foi mantida pela interpretação conforme. Também nada se deduz em contrário de não haver disparidade prática de consequências, por parte do tribunal recorrido, que ao nível das decisões recorridas, que foram de não decretar a perda do veículo, quer a final. Mesmo que, em consequência do Acórdão nº 321/99, o tribunal a quo, possa ter mantido a decisão de não decretar a perda do veículo, o que é certo é que igualmente poderia, em face da sua reapreciação da matéria de facto, ter afinal, em cumprimento do mesmo Acórdão, decretado a perda do veículo. Confirma-se assim, a divergência de sentido, relativamente ao Acórdão nº 176/2000. José de Sousa e Brito
Declaração de voto Votei no sentido de se tomar conhecimento do presente recurso, com os fundamentos que passo a expor: O artigo 79º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional prevê o recurso para o plenário quando o Tribunal Constitucional venha 'a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma por qualquer das suas secções'. A meu ver, foi isto o que aconteceu com os Acórdãos n.ºs 327/99 e 176/00, nos quais ao mesma norma foi objecto de julgamentos divergentes, quanto à sua conformidade constitucional, pela 2ª e 3ª secção do Tribunal Constitucional. Em primeiro lugar, tais arestos pronunciaram-se sobre a mesma norma, sendo idêntico o objecto de ambos os recursos: a apreciação da conformidade constitucional do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio
(redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro), interpretado no sentido de prever, como efeito necessário (automático) da aplicação da coima correspondente a perda do veículo que, sem estar legalmente habilitado para o consumo desse combustível, utilize gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados. Bastava, para o concluir, notar que os respectivos recursos de constitucionalidade, interpostos ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, resultavam ambos da recusa de aplicação daquela mesma norma, em idênticos termos (e, aliás, pelo mesmo Tribunal), e que, evidentemente, a interpretação conforme à Constituição efectuada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 327/99 não delimitava o objecto do recurso de constitucionalidade, sendo antes um resultado expresso da sua decisão. Por outro lado, esta conclusão não é infirmada pelo facto de na decisão do segundo aresto se ter julgado inconstitucional, sem restrição expressa a uma determinada dimensão interpretativa, o n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio (redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro). Na verdade – para além de tal objecção não excluir a identidade parcial das normas cuja conformidade constitucional foi apreciada –, não só, como se disse, o âmbito normativo da recusa de aplicação efectuada nas decisões recorridas e dos respectivos recursos de constitucionalidade era o mesmo, como os fundamentos do Acórdão 176/2000
(ponto II, 2) deixam claro que neste estava apenas em questão 'aquela norma interpretada que foi no sentido de na mesma ser determinado o perdimento automático dos veículos que não estejam legalmente habilitados ao consumo de gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados.' Verifica-se, além disso, o outro requisito do recurso para o plenário: o julgamento da 'questão de inconstitucionalidade' em sentido divergente de outro anterior. Que em algo o sentido dos Acórdãos n.ºs 327/99 e 176/2000 divergiu, é a todas as luzes evidente – basta ler as respectivas decisões. O que se poderia sustentar é que a divergência não recaiu sobre a 'questão de inconstitucionalidade' substancial, mas sim sobre as possibilidades interpretativas da norma em questão (rectius, sobre a possibilidade, hermenêutica ou processual, de in casu alterar, por razões de constitucionalidade, a interpretação do mesmo preceito e impô-la ao tribunal recorrido), e que apenas aquela relevaria para que coubesse recurso para o plenário. A meu ver, tal argumentação enferma, porém, no plano conceptual, de um entendimento limitado do que é o julgamento da 'questão de inconstitucionalidade' de normas pelo Tribunal Constitucional, e, no plano funcional ou dos efeitos das decisões, de uma não consideração plena da ratio do recurso para o plenário.
É claro, antes do mais, que a 'questão de inconstitucionalidade' cujo julgamento este Tribunal efectua – referida no citado artigo 79º-D, n.º 1 – não é uma questão abstracta, relativa apenas à interpretação da Lei Fundamental. Trata-se, antes, da questão de inconstitucionalidade de normas existentes no ordenamento jurídico, isto é, da interpretação e aplicação da Constituição da República a determinados critérios normativos, com as suas possibilidades interpretativas. Por outro lado, o julgamento efectuado pelo Tribunal não é mera constatação ou asserção de (des)conformidade constitucional, tendo, antes, um sentido preceptivo, com reflexos, desde logo, na decisão recorrida. Assim, não pode, a meu ver, deixar de concluir-se que a alternativa entre julgar inconstitucional – total ou parcialmente – uma norma e enunciar a sua interpretação conforme à Constituição, para 'ser aplicada com tal interpretação no processo em causa'
(artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), deve ainda ser considerada uma 'questão de inconstitucionalidade', objecto de decisão fundamentada pelo Tribunal, cujas divergências abrirão recurso para o plenário. Tal conclusão é, a meu ver, decisivamente reforçada pela consideração de que a ratio uniformizadora do artigo 79º-D, com vista à redução da incerteza do Direito vigente, recomenda ainda a decisão do plenário sobre os diversos efeitos de que um julgamento de inconstitucionalidade e uma interpretação conforme à Constituição indubitavelmente se revestem, quer no processo, quer, mediatamente, para a ordem jurídica em geral. Enquanto no processo um julgamento de inconstitucionalidade – total ou parcial – conduz, nos recursos da alínea a) como os presentes, à confirmação da decisão recorrida e ao seu trânsito em julgado, a interpretação conforme à Constituição impõe a reformulação da decisão
à luz do sentido tido por conforme (no caso, designadamente, a ponderação da inexistência de desproporcionalidade manifesta na perda do veículo). E manifesta divergência de efeitos deixa-se, ainda, ver quando a norma consinta um terceiro sentido interpretativo – enquanto tal sentido terá de ser irrelevante, para o tribunal recorrido, se for efectuada uma interpretação conforme, poderá, em caso de julgamento de inconstitucionalidade parcial, vir a ser o preferido por tal tribunal. Para a ordem jurídica em geral, a decisão apresenta a utilidade de tornar claro se a norma é irremissivelmente inconstitucional (eventualmente deixando de existir sanção) e pode mesmo vir a ser declarada inconstitucional na sequência do seu julgamento como tal em três casos concretos (artigo 82º da Lei do Tribunal Constitucional), ou se pode continuar a ser aplicada com um sentido constitucionalmente compatível, sem risco de interposição (aliás, obrigatória para o Ministério Público) de recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo
70º do citado diploma e de subsequente decisão de inconstitucionalidade. E também assim se confirma a utilidade de considerar casos como o presente abrangidos pelo artigo 79º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
Paulo Mota Pinto