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Processo nº 169/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. E... interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Fevereiro de 2000, que indeferiu a arguição de nulidades por si apresentada na sequência da notificação do acórdão do mesmo Tribunal, de 20 de Dezembro de 1999.
Pretende se aprecie a constitucionalidade das seguintes normas:
(a). 'a alínea d) do nº 2 do artigo 72º do Código Penal, quando a respectiva interpretação e aplicação emergem de qualquer outro limite que extravase do seu teor, equivalendo tal a fazer sofrer ao réu pena mais grave do que a prevista no momento da respectiva conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos';
(b). 'a do artigo 731º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável nos presentes autos ex vi do disposto no artigo 1º, § único, do Código de Processo Penal, quando interpretada e aplicada de molde a permitir que um novo acórdão final do Supremo Tribunal de Justiça deixe de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e conheça de questões que não podia tomar conhecimento';
(c). 'o artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929, quando a respectiva interpretação e aplicação abarquem a possibilidade de ser idêntico e o mesmo o Meritíssimo Senhor Conselheiro Relator de acórdão proferido após o anterior haver sido anulado pelo tribunal de recurso (in casu, respectivamente o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional)'.
O recorrente foi condenado, na 8ª Vara Criminal de Lisboa, pela co-autoria material de um crime de abuso de confiança agravado, cometido na forma continuada, na pena de 6 anos e 3 meses de prisão (da qual lhe foram perdoados 3 anos) e no pagamento de 26.648.414$00 de indemnização à C.... Recorreu, depois, para a Relação de Lisboa, mas sem êxito. Recorreu, seguidamente, para o Supremo Tribunal de Justiça que, pelo acórdão de 5 de Março de 1997, negou provimento ao recurso. Arguiu, então, nulidades desse aresto, sendo essa arguição desatendida pelo acórdão de 11 de Junho de 1997.
Desse acórdão de 5 de Março de 1997, interpôs ele recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade das seguintes normas:
(a). dos artigos 72º, nºs 1 e 2, alínea d); 73º, nº 1, alínea a); e 205º, nº 4, alínea b), do Código Penal, 'quando preterida a sua aplicação';
(b). dos artigos 649º e 664º do Código de Processo Penal de 1929, 'quando a sua aplicação permita que o julgamento ali mencionado se faça sem a presença do arguido';
(c). do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, 'tendo sido aquela norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional'.
Este Tribunal, pelo seu acórdão nº 135/98, não conheceu do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, na parte em que ele tinha por objecto as normas dos artigos 72º, nºs 1 e 2, alínea d), 73º, nº 1, alínea a), e 205º, nº 4, alínea b), do Código Penal, e as dos artigos 649º e 664º do Código de Processo Penal de 1929, em virtude de o recorrente não haver suscitado a sua inconstitucionalidade durante o processo. E, na parte em que o recurso vinha fundado a alínea g) do nº 1 do mesmo artigo
70º e tinha por objecto a norma do mencionado artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, o Tribunal negou-lhe provimento, já que, fazendo aplicação do acórdão uniformizador nº 150/93, não julgou inconstitucional tal norma,
'interpretada no sentido de que, ‘se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a punição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem’', pois 'o Supremo Tribunal de Justiça não considerou que o parecer do Ministério Público tivesse agravado a posição do recorrente, nem este aduziu quaisquer argumentos que contrariassem tal entendimento'. Deste acórdão nº 135/98, interpôs ele recurso para o Pleno, invocando estar tal aresto em contradição com o acórdão nº 150/87, que julgara inconstitucional o referido artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929. Este Tribunal, no seu acórdão nº 533/99, embora com vozes discordantes, entre elas a do ora relator, entendeu que o facto de o acórdão nº 150/93 – cuja doutrina o acórdão nº 135/98 se limitou a aplicar – ter sido tirado em plenário; e de, posteriormente ao acórdão recorrido (dito acórdão nº 135/98), não ter sido tirado qualquer aresto em contrário dele (e, assim, do referido acórdão nº
150/93), não impedia o recurso para o Pleno. E, passando ao conhecimento do objecto desse recurso (interposto do acórdão nº 135/98) concedeu-lhe provimento, e ordenou que o Supremo Tribunal de Justiça reformasse o seu acórdão de 5 de Março de 1997, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma constante do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, que não foi julgado inconstitucional, 'interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar, deve ser dada aos réus a possibilidade de responderem'.
Face ao decidido no citado acórdão nº 533/99, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 24 de Novembro de 1999, declarou sem efeito o seu acórdão de 5 de Março de 1997 e os actos subsequentes e determinou que o recorrente fosse notificado do parecer do Ministério Público, emitido antes da prolação do acórdão de 5 de Março de 1997, que é do seguinte teor: 'Visto. Tendo em conta a bem elaborada resposta do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa (fls.2484), para o seu conteúdo remetemos, nele nos fundamentando para emitir um parecer no sentido da confirmação do acórdão recorrido'. Em resposta à notificação, o recorrente, no que concerne a esse parecer disse:
'É pena que o Digno Magistrado do Ministério Público junto do [...] Supremo Tribunal de Justiça se haja cingido a uma remissão para o que o Exmº Senhor Procurador junto da Relação, tempos antes, havia escrito'. O Supremo Tribunal de Justiça, então, pelo acórdão de 20 de Dezembro de 1999 – depois de ponderar ter sido respeitado 'o contraditório em relação ao referido parecer do Ministério Público, como o citado acórdão nº 533/99 do Plenário do Tribunal Constitucional, de 12 de Outubro de 1999, considerou ser devido'; e que o juízo de inconstitucionalidade proferido nesse acórdão nº 533/99 'em mais nada interfere no decidido [...] no anterior acórdão de 5 de Março de 1997', 'afora a decisão de declarar sem efeito [...] este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Março de 1997 proferido neste processo e os actos subsequentes e determinar-se que o citado parecer do Ministério Público seja notificado ao réu Eduardo Paiva para este, querendo, dizer o que se lhe oferecer, conforme já foi decidido pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de
1999' – negou provimento ao recurso interposto do acórdão da Relação. E, para assim concluir, transcreveu o acórdão de 5 de Março de 1997, 'tendo, porém, em conta e acrescentando-lhe também o decidido no [...] acórdão de 11 de Junho de
1997', e pelo que se considerar oportuno acrescentar-lhe no concernente ao alegado na referida resposta'.
O recorrente, notificado que foi do acórdão de 20 de Dezembro de 1999, reclamou por nulidades, consistentes em:
(a). ter o acórdão reclamado deixado de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado ('boa conduta do réu, acrescida ao excessivo decurso do tempo sobre os factos a ele imputados') – o que constitui 'interpretação e aplicação da alínea d) do nº 2 do artigo 72º do Código Penal, que a torna inconstitucional';
(b). ter conhecido 'de questões de que não podia tomar conhecimento, quer ao atender a factos noticiados (equivocamente) na comunicação social, quer ao atender ao teor de peça processual anulada pelo [...] Tribunal Constitucional, pelo que, além da nulidade prevista no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, tornam inconstitucional a norma do artigo 731º do mesmo compêndio normativo';
(c). 'ao sustentar a interpretação e aplicação do artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929 que permite a manutenção do mesmo Meritíssimo Senhor Conselheiro Relator de acórdão proferido no Supremo Tribunal de Justiça em idênticas vestes no acórdão posterior à anulação daquela operada por doutíssima decisão do [...] Tribunal Constitucional, torna tal preceito inconstitucional'. O Supremo Tribunal de Justiça, pelo seu acórdão de 15 de Fevereiro de 2000, indeferiu, como já atrás se disse, tal arguição de nulidades.
Recorda-se que é deste acórdão de 15 de Fevereiro de 2000 que vem interposto o presente recurso.
Neste Tribunal, o RECORRENTE concluiu como segue a sua alegação:
1ª - O decurso de dezoito anos desde a prática dos factos por que foi condenado o ora recorrente compromete a finalidade ressocializadora da pena, uma vez que o réu manteve sempre durante esse prazo boa conduta.
2ª - A manutenção da pena neste contexto não pode deixar de traduzir retaliação social sobre o agente, que sendo livre se pôde corrigir, e não sobre os seus actos pontuais, de que foi então ele, a essa distância de tempo, responsável.
3ª - Questão prévia à matéria aprecianda é contudo a da prescrição do procedimento criminal, que se verificava quando foi julgado o ora recorrente, visto o disposto nos arts. 117º nº 1 al. b) do CP de 82 e 118º do actual, o máximo da pena aplicável que era de oito anos e a pena efectivamente aplicada que, sendo de seis anos se encontra agora reduzida a três anos, se tivermos em linha de conta que os factos são de 1982 e o ora recorrente não foi notificado do despacho de pronúncia até 1992.
4ª - A mesma questão prévia da prescrição do procedimento criminal se coloca também, já que ao exposto acresce que nos termos do nº 3 do art. 121º do actual CP, o tempo normal de prescrição acrescido de metade, aponta para o limite temporal de 1997, que se encontra já transposto, visto serem os facto de 82 e o prazo de prescrição ser de dez anos acrescido de metade.
5ª - A al. d) do nº 2 do art. 72º do CP actual (ou do art. 73º do anterior) é inconstitucional quando a respectiva interpretação e aplicação lhe conferem limites contra-legem ou para além da lei, que daquele preceito não constam expressamente, designadamente que a pena continua a ser necessária quando decorreu muito tempo para além da prática dos factos, mantendo o réu boa conduta, mas a ilicitude dos factos ou a culpa do agente se não mostram diminuídas, visto que assim se mostra violado o disposto no nº 4 do art. 29º da CRP.
6ª - A omissão de obtenção de Relatório do Instituto de Reinserção Social e de análise do Certificado de Registo Criminal do réu ora recorrente, bem como o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, designadamente a do impacto mediático da momentânea tramitação do processo, inquinam o aliás douto acórdão final do STJ, para além do acima já explanado, quer da nulidade prevista no art. 668º nº 1 al. d) do CPC, aplicável como já se disse, ex vi do §
único do art. 1º do CPP de 29, quer de interpretação e aplicação da norma do art. 731º nº 1 do CPC que a torna inconstitucional, por oposição ao disposto no nº 1 do art. 32º da CRP.
7ª - Enferma ainda o aliás douto acórdão recorrido do vício que, consentindo na manutenção do mesmíssimo Senhor Conselheiro Relator quer do acórdão revogado quer do proferido após revogação operada pelo Alto Tribunal Constitucional, na decisão do STJ, e tendo-se em conta que o art. 104º do CPP de 29 sofre lacuna a colmatar pelo nº 1 do art. 122º do CPC, se traduz na preterição, aquando de tal interpretação e aplicação daquele art. 104º do disposto pelo nº 1 do art. 32º da CRP, o que o torna inconstitucional.
8ª - Quando outro não for o entendimento, com todo e o maior respeito se requer que, em correcção da aplicação inconstitucional dos preceitos enumerados, se ordene a suspensão da execução da pena a cumprir pelo ora recorrente em face do aliás douto acórdão mantenedor da decisão proferida na 1ª instância. Termos em que pelo exposto e pelo mais que certa e doutamente será suprido por Vossa Excelências, se requer a revogação do aliás douto acórdão recorrido e a sua substituição por outro que declare extinto o procedimento criminal pelos factos imputados ao ora recorrente, ordenando-se o arquivamento dos autos; ou, quando assim se não entenda, que determine a suspensão da execução da pena; ou, quando assim se não entenda, que se ordene a prolação de novo acórdão que acate a interpretação e aplicação dos preceitos legais fundamentadores com o texto constitucional, com o que se fará a costumada justiça.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em funções neste Tribunal também alegou, formulando as seguintes conclusões:
1 – Não se mostra suscitada, em termos idóneos e adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, relativamente às normas dos artigos 72º, nº 2, alínea d) do Código Penal e 731º, nº 1 do Código de processo Civil, já que o recorrente se limita a questionar a constitucionalidade do acórdão recorrido, na parte em que neste se procedeu à escolha e medida da pena (valorando as concretas circunstâncias do caso e entendendo que elas justificavam a condenação do arguido em pena efectiva de prisão) e em que se fez constar certo comentário lateral, qualificado de mero – e irrelevante – 'obter dictum', como tal insusceptível de originar a nulidade decorrente de 'excesso de pronúncia'.
2 – Traduzindo a suscitação de pretensas questões de constitucionalidade, reportadas àqueles preceitos legais, verdadeiro 'abuso' do 'conceito de interpretação para se forjar uma norma fiscalizável pelo Tribunal Constitucional' (Cfr. Rui Medeiros. A Decisão de Inconstitucionalidade, pág.
347).
3 – Tendo a rejeição do incidente de impedimento de um dos juízes Conselheiros que proferiram o acórdão condenatório do arguido assentado – na lógica argumentativa do acórdão recorrido – num duplo fundamento – a intempestividade da dedução de tal incidente, por força do disposto no artigo 110º do Código de Processo Penal de 1929, e a respectiva improcedência, por razões de mérito, já que a situação procedimental dos autos se não enquadraria no elenco de causas de impedimento, tipificadas no artigo 104º daquele Código – e limitando-se o recorrente a questionar a constitucionalidade da interpretação normativa deste
último preceito, é inútil a apreciação da questão da constitucionalidade suscitada.
4 – Na verdade, qualquer que fosse a decisão a proferir sobre tal questão, sempre subsistiria inteiramente incólume a decisão recorrida, com base no outro e autónomo fundamento invocado para a rejeição – a interpretação do disposto no artigo 110º do Código de Processo Penal de 1929 e a consequente
'intempestividade' da dedução do incidente.
5 – Termos em que, pelas razões apontadas, não deverá conhece-se do recurso interposto.
A recorrida C..., SARL, não apresentou alegação.
Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, veio concluir como nas alegações, o que significa que, em seu entender, se deve conhecer do recurso.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Advertência prévia: Este Tribunal apenas pode pronunciar-se sobre se estão preenchidos os pressupostos do recurso interposto e, caso estejam, sobre a questão ou questões de constitucionalidade que constituam o seu objecto. Não pode, por isso, contrariamente ao que vem pedido, pronunciar-se sobre a eventual extinção do procedimento criminal, nem tão-pouco determinar a suspensão da execução da pena.
É pela questão de saber se se acham preenchidos os pressupostos do recurso que vai começar-se.
4. O objecto do recurso:
4.1. Relativamente às normas indicadas pelo recorrente para serem apreciadas por este Tribunal ratione constitutionis, tem, desde logo, que excluir-se do objecto do recurso o artigo 72º, n.º 2, alínea d), do Código Penal. E isto, porque, no processo, já foi decidido, com trânsito em julgado, pelo acórdão n.º 135/98, que se não podia conhecer dessa questão de constitucionalidade, em virtude de a mesma não ter sido suscitada durante o processo (cf. artigo 80º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
A esta conclusão não obsta o facto de, agora, o recorrente formular tal questão de um modo diferente de como o tinha feito quando impugnou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Março de 1997.
É que, embora na sequência do que este Tribunal decidiu no acórdão n.º 533/99 o Supremo Tribunal de Justiça tivesse que reformular aquele seu aresto de 5 de Março de 1997, essa reformulação apenas implicava que desse cumprimento ao que, relativamente ao artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, ali fora decidido, a saber: que este artigo 664º não é inconstitucional, quando interpretado 'no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar, deve ser dada aos réus a possibilidade de responderem'. Ou seja: o Supremo Tribunal de Justiça, antes de proferir nova decisão sobre o recurso interposto do acórdão da Relação, apenas tinha que dar ao réu a possibilidade de responder. E isso foi o que efectivamente fez: anulou o seu anterior acórdão de 5 de Março de 1997 (e os actos subsequentes) e mandou ouvir o recorrente sobre o parecer que o Ministério Público havia lançado nos autos. Ao julgar o recurso (acórdão de 20 de Dezembro de 1999), o Supremo Tribunal de Justiça transcreveu, é certo, o seu anterior aresto, ou seja, o acórdão de 5 de Março de 1997. Mas não era exigível que o Supremo Tribunal de Justiça fizesse de outro modo, pois o julgamento que este Tribunal proferiu sobre a questão de constitucionalidade não tinha, para além da indicada, outras implicações sobre a
'questão penal'. Ao que acresce que a resposta que o recorrente deu, ao ser ouvido sobre o parecer do Ministério Público, também não foi de molde a impor a reconsideração do julgamento da 'questão penal': de facto, nessa resposta – recorda-se – o recorrente apenas lamentou que o Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça se tivesse cingido a uma remissão para o parecer do Ministério Público junto da Relação. O julgamento da 'questão penal' não carecia, por isso mesmo, de novos desenvolvimentos; bastava transcrever o que anteriormente tinha sido dito.
A conclusão de que, no processo, já foi decidido, com trânsito em julgado, não poder conhecer-se do recurso, na parte em que ele tem por objecto a questão de constitucionalidade do artigo 72º, nº 2, alínea d), do Código Penal, também não
é afastada pelo facto de, agora, o recurso vir interposto de outra decisão. E não o é, porque a anulação do processado a que o Supremo Tribunal de Justiça procedeu não atingiu uma fase processual em que ao recorrente ainda fosse legítimo suscitar tal questão de inconstitucionalidade.
Mas, ainda que assim não fosse, continuaria a não poder conhecer-se do recurso:
é que, como sublinha o Ministério Público, 'é verdadeiramente ininteligível a pretendida violação do n.º 4 do artigo 29º da Constituição' por aquele artigo
72º, n.º 2, alínea d), do Código Penal, 'quando a respectiva interpretação e aplicação emergem de qualquer outro limite que extravase do seu teor, equivalendo a fazer sofrer ao réu pena mais grave do que a prevista no momento da respectiva conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos'. É ininteligível, porque não se está perante qualquer problema de aplicação da lei penal no tempo: o Supremo Tribunal de Justiça decidiu tão-só que não se justificava qualquer atenuação especial da pena, apesar de, entre o momento da prática da infracção e o da prolação da sentença condenatória, ter decorrido um certo lapso temporal e o arguido ter tido 'bom comportamento'. Mas dizer isto é sublinhar que a questão de constitucionalidade atinente ao artigo 72º, n.º 2, alínea d), do Código Penal não foi suscitada em termos processualmente adequados.
4.2. Também da questão de constitucionalidade atinente ao artigo 731º, n.º 1, do Código de Processo Civil se não deve conhecer.
De facto, como sublinha o Ministério Público, é também 'verdadeiramente ininteligível qual a questão de inconstitucionalidade que o recorrente realmente pretende imputar a tal preceito legal, que se limita a prescrever sobre a reforma do acórdão' quando se julguem procedentes certas nulidades. Ora, no caso, isso não aconteceu, pois o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de
15 de Fevereiro de 2000, decidiu que, no seu anterior aresto (ou seja, no acórdão de 20 de Dezembro de 1999), não deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse conhecer, nem conheceu de questões de que não pudesse conhecer - e, em consequência, desatendeu a arguição de nulidades imputadas a esta última decisão. Sublinhou, de resto, que o 'comentário lateral' (feito a propósito de certa afirmação do recorrente) 'não constituiu decisão de qualquer questão e não importou fundamento de decisão da questão que estava a ser apreciada'. Mas, sendo assim - para além de a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada em termos processualmente adequados -, o artigo 731º, n.º 1, do Código de Processo Civil não foi sequer convocado pelo acórdão recorrido; e, por isso, tão-pouco foi aplicado com o sentido inconstitucional que o recorrente lhe imputa.
De resto, como sublinha o ministério Público, 'é, aliás, evidente que – vendo as coisas em termos substanciais – o que o recorrente verdadeiramente pretende questionar – sob a capa formal da invocação de pretensas inconstitucionalidades normativas, reportadas a preceitos legais totalmente desfocados e desprovidos de relevância para a dirimição do caso sub iudicio - é a constitucionalidade do próprio acórdão condenatório, na medida em que este – na óptica do recorrente – teria violado garantias de defesa do arguido, ao condená-lo em pena efectiva de prisão – tida por desproporcionada às circunstâncias do caso – e ao ter feito transcrição e alusão a certa notícia da comunicação social referente aos factos'.
Ora, como é sabido, o Tribunal Constitucional não pode sindicar a constitucionalidade das decisões judiciais consideradas em si mesmas, mas apenas a das normas que essas decisões desapliquem com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que apliquem não obstante a respectiva constitucionalidade ter sido questionada, durante o processo.
4.3. Resta considerar o caso da norma constante do artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929, que o recorrente também indica como constituindo objecto do recurso, entendendo que tal norma, 'quando a respectiva interpretação e aplicação abarquem a possibilidade de ser idêntico e o mesmo Meritíssimo Senhor Conselheiro Relator de acórdão proferido após o anterior haver sido anulado pelo tribunal de recurso (in casu, respectivamente o Supremo tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional) ', colide com o artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
Pois bem: o recorrente, ao colocar esta questão de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiças, disse que 'em parte alguma do artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929 se contempla a previsão de o juiz haver que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, o que acontece na alínea c) do n.º 1 do artigo 122º do Código de Processo Civil, que desse modo colmata, ao abrigo do artigo 1º daquele compêndio normativo, a lacuna' [cf. também a alegação apresentada neste Tribunal, B), III, 3 e 4, e conclusão 7ª]. Com dizer isto, o recorrente parece querer imputar a inconstitucionalidade a um acto ou a uma decisão judicial : recte, ao acto ou decisão do Supremo Tribunal de Justiça de entender que o Conselheiro relator - que proferiu o acórdão que, em recurso, o Tribunal Constitucional revogou quanto ao julgamento da questão de inconstitucionalidade - se não encontra impedido de julgar o caso de que emergiu esse mesmo recurso. Acto ou decisão que, em seu entender, conduziu o mesmo Supremo Tribunal de Justiça a ignorar o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo
122º do Código de Processo Civil, não lançando mão dele para julgar aquele Conselheiro relator impedido de intervir no aresto a proferir na sequência do julgamento do Tribunal Constitucional, assim preenchendo a lacuna que ele, recorrente, detecta no artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929. A ser esta a impostação correcta da questão, a conclusão a tirar seria a de que o Tribunal não podia conhecer do recurso, pois este só pode ter por objecto a questão da inconstitucionalidade das normas que as decisões recorridas apliquem não obstante essa inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo, e não também a inconstitucionalidade das próprias decisões judiciais consideradas em si mesmas.
O recorrente, porém, aponta um sentido ou interpretação com que o referido artigo 104º não pode ser aplicado, por esse sentido ou interpretação, em seu entender, colidir com o artigo 32º, n.º 1, da Constituição. Por isso, na dúvida, deve aceitar-se que, não obstante aquele modo de dizer, o que o recorrente pretende é colocar a este Tribunal uma questão de inconstitucionalidade normativa – ou seja: uma questão para cujo conhecimento este Tribunal tem competência. Pode, no entanto, sustentar-se que o recorrente, ao colocar essa questão de inconstitucionalidade normativa, não soube identificar com suficiente precisão e clareza a norma que pretende ver apreciada ratione constitutionis. De facto, o dito artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929 - que trata dos impedimentos do juiz – tem cinco números e outros tantos parágrafos e o recorrente indica-o, a todo ele, como inconstitucional. Não seria, por isso, excessivo concluir que, também quanto a este artigo 104º, a questão de inconstitucionalidade que o recorrente coloca não foi suscitada em termos processualmente adequados. E, concluindo-se desse modo, logo por aí, também dessa questão este Tribunal não deveria conhecer. Na dúvida, porém, e porque o recorrente, apesar de tudo, quiçá com algum abuso, enuncia um sentido normativo que reputa inconstitucional, imputando-o ao mencionado artigo 104º, poderá concluir-se que, como objecto do recurso, sempre restará a seguinte questão: é inconstitucional o citado artigo 104º, quando interpretado no sentido de que o Conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, que lavrou o acórdão que, quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade nele decidida, foi, depois, em recurso dele interposto, revogado pelo Tribunal Constitucional, não fica impedido de relatar o acórdão
(ou acórdãos) a proferir pelo mesmo Supremo Tribunal na sequência do aresto do Tribunal Constitucional? Só que esta questão de constitucionalidade é absolutamente infundada, pois não se vê como possa o Juiz Conselheiro, que no Supremo Tribunal de Justiça lavrou o acórdão de que antes se recorreu para este Tribunal, ser suspeito para, em cumprimento do aqui decidido, proceder à reformulação de tal aresto, já que nenhum interesse pessoal o move. O direito de defesa do arguido em nada é, assim, beliscado. Nesta parte, há, pois, que negar provimento ao recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não conhecer do recurso, na parte em que ele tem por objecto a norma constante do artigo 72º, nº 2, alínea d), do Código Penal e a constante do artigo 731º, nº 1, do Código de Processo Civil;
(b). julgar improcedente o recurso, na parte em que o mesmo tem por objecto a norma constante do artigo 104º do Código de Processo Penal de 1929; e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento dessa questão de inconstitucionalidade;
(c). condenar o recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 13 de Julho de 2000 Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida