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Processo nº 804/97
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. AC recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Outubro de 1997 'ao abrigo das alíneas b e f do nº 1 do artº
70º da Lei 28/82 de 15 de Novembro', sustentando a inconstitucionalidade do
'artº 3º/1/c/ do DL 321-B/90, de 15 de Outubro (...), por ofender o princípio básico do contraditório' e dos 'arts. 393º e 394º do CPC e [d]os arts. 1251º,
1267º/b/ e 1279º do Código Civil' que 'foram interpretados inconstitucionalmente, com violação do artº 65º/1/ da Constituição – o direito à habitação: um cônjuge com 2 habitações e o outro sem uma única casa –, brigando e afrontando também os princípios da igualdade e da proporcionalidade, em pleno arbítrio, discriminação familiar, sem peso nem medida – arts. 13º e 18º/2/ da Lei Fundamental. A ilegalidade e a inconstitucionalidade da interpretação dos referidos normativos foi problematizada quando o podia ser, designadamente nas alegações de 3.2.97, de fls , onde o balanceamento da desigualdade entre os cônjuges foi devidamente equacionado e sopesado, bem como contraalegado e ajuizado. Sobressai a desigualdade entre o feminino e o masculino, inferiorizando e ridicularizando este até ao ponto de ficar sem o seu próprio lar. O desequilíbrio é confrangedor!!!'. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Outubro de 1997, de fls. 135, negou provimento ao recurso de agravo interposto por AC da decisão do Tribunal Judicial da Comarca do Barreiro que julgara procedente o pedido de restituição provisória da posse do imóvel, devidamente identificado nos autos, que constituía a casa de morada da família, formulado por sua mulher, MC. Para o que agora releva, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou que 'não foram interpretados inconstitucionalmente os arts. 393º e 394º do C.P.C., e 1251º,
1267º/b) e 1279º do Código Civil, com violação do art. 65º/1 da Constituição
(...) [que] é uma norma programática, incumbindo ao Estado assegurar tal direito
[à habitação], mediante políticas adequadas. Não compete aos particulares e, consequentemente, à agravente, assegurar tal direito'. Igualmente decidiu que o artigo 394º do Código de Processo Civil (na versão anterior à reforma de 1997, introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), aplicável mesmo quando o imóvel cuja restituição provisória se pede é a casa de morada de família, por ter sido revogado o Decreto-Lei nº 293/77, de
20 de Julho, pela al. c) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, que 'impõe que se ordene a restituição sem citação nem audiência do esbulhador', não ofende os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. O recurso foi admitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo despacho de fls.
146.
2. Notificada para o efeito, o recorrente veio apresentar as respectivas alegações, concluindo da seguinte forma:
'TERMOS em que deve deliberar-se: a. Julgar inconstitucional a norma do artº 3º/1/c do DL 321-B/90, de 15 de Outubro, por ofender o princípio do contraditório processual civil, no âmbito do contencioso familiar, em que é princípio assente que o Tribunal deve tentar sempre a conciliação entre os cônjuges, no diálogo e no debate ‘inter partes’; b. Julgar inconstitucional as normas dos arts. 393º e 394º do CPC e os arts.
1251º, 1267º/b/ e 1279º do Código Civil, na interpretação anti-familiar que lhes foi encrostada pelo Acórdão recorrido, por violação dos arts. 13º, 18º/2/,
65º/1/, 66º/1/ e 67º/1/ da Lei Fundamental. c. Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar o Acórdão recorrido, que deve ser reformado, de acordo com o aqui alegado sobre a questão de ilegalidade/inconstitucionalidade'. A recorrida não contra-alegou.
3. Considerando não poder conhecer parcialmente do objecto do recurso, a relatora elaborou o parecer de fls. 175, que foi notificado às partes, e do qual se transcreve a parte relevante:
'(...) Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 25º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e do artigo 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, considero que o Tribunal Constitucional não pode conhecer parcialmente do objecto do presente recurso, pelas seguintes razões:
1ª) Quanto ao recurso interposto ao abrigo da al. f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, por não ter sido invocada nenhuma das ilegalidades nela previstas;
2ª) Quanto à questão da inconstitucionalidade da norma constante da al. c) do nº
1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, por não ter sido alegada oportunamente. Com efeito, apenas foi suscitada no requerimento de interposição de recurso, sendo certo que a al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 exige que tenha sido levantada 'durante o processo', nos termos definidos pelo nº 2 do artigo 72º; c) Não tomar conhecimento da questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1251º e 1267º, b), do Código Civil, por não terem sido aplicadas na decisão recorrida.' Nem o recorrente nem a recorrida responderam.
4. Cumpre então conhecer do objecto do recurso, que, pelas razões constantes do parecer atrás referido, se circunscreve à alegada inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 393º e 394º do Código de Processo Civil, na sua anterior redacção, e 1279º do Código Civil, cujo texto é o seguinte:
Artigo 393º
(Em que casos tem lugar a restituição provisória de posse) No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
Artigo 394º
(Termos em que a restituição é ordenada) Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador. Artigo 1279º
(Esbulho violento) Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
Mesmo tendo em consideração que o bem cuja restituição foi ordenada no caso presente foi a casa de morada de família, em nada estas normas violam o direito
à habitação, constitucionalmente tutelado pelo nº 1 do artigo 65º da Constituição. O recorrente, aliás, também não esclarece em que consistiria a alegada violação. O artigo 65º, como já por diversas vezes foi afirmado por este Tribunal (ver, a título de exemplo, os acórdãos nºs 101/92 e 346/93, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 18 de Agosto de 1992 e de 19 de Maio de
1994), tem por objectivo incumbir o Estado de uma série de tarefas destinadas a garantir que todos disponham, efectivamente, de uma habitação condigna e adequada. Do seu conteúdo obviamente programático não decorre – nem poderia decorrer, sob pena de impor um regime absurdo – que não possa ser aplicável à casa de morada de família a providência da restituição provisória da posse. O recorrente coloca também a questão da violação, pelo disposto no artigo 394º do Código de Processo Civil, do princípio do contraditório, por permitir que, em casos como o presente, se ordene a restituição provisória da posse da casa de morada de família sem audiência prévia do esbulhador.
É sabido que o princípio do contraditório é um dos princípios fundamentais do Processo Civil, e que tem tutela constitucional. É uma exigência clara do princípio da igualdade das partes, por sua vez manifestação do princípio da igualdade perante a lei e do próprio Estado de Direito. Isso não significa, porém, que não existam situações em que ele tem de ceder face à necessidade de eficácia de determinadas medidas judiciais, inoperantes se precedidas de audiência da parte contra quem são requeridas. É o que em geral, sucede com a justiça cautelar (cfr., nomeadamente, o acórdão nº 739/98, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Março de 1998), onde se integra a providência da restituição provisória da posse, cuja constitucionalidade não se vê que possa ser posta em crise, salvo se for manifestamente desproporcionado o sacrifício do contraditório. Não é, porém, o caso, pois que a restituição da posse só é ordenada se o tribunal, julgada a prova admissível (oferecida pelo requerente ou ordenada pelo juiz, oficiosamente), concluir pela existência de esbulho violento. Não são, pois, inconstitucionais as normas impugnadas pelo recorrente.
Assim, decide-se: a) Não tomar conhecimento do recurso interposto ao abrigo da al. f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, por não ter sido invocada nenhuma das ilegalidades nela previstas; b) Não tomar conhecimento da questão da inconstitucionalidade da norma constante da al. c) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de outubro, por não ter sido suscitada oportunamente; c) Não tomar conhecimento da questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1251º e 1267º, b), do Código Civil, por não terem sido aplicadas na decisão recorrida; d) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 393º e 394º do Código de Processo Civil, na versão anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro; e) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 1279º do Código Civil. Consequentemente, nega-se provimento ao recurso, na parte em que se toma conhecimento do seu objecto. Lisboa, 2 de Novembro de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida